Visão da Graça - Opinião de Elisabete Tavares

O novo ‘Muro de Berlim’ que nos quer ‘proteger’ dos ‘fascistas’ e da ‘desinformação’

pasture fence, barbed wire, fencing

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Era um documento simples e fácil de compreender. Nele constava uma lista específica, ordenada, de casas com as respectivas áreas e preços. Havia na redacção quem não conseguisse entender o que lá estava escrito, incluindo uma jornalista que tempos depois acabou a escrever duas manchetes falsas que o jornal publicou.

Infelizmente, ao longo de mais de 25 anos no jornalismo económico, constatei que este caso que aqui relato está longe de ser o único. A maioria dos jornalistas que encontrei não lida bem com números, tabelas, estatísticas – e factos científicos. Em muitos jornalistas mais jovens, junta-se a falta de ‘memória’ sobre acontecimentos históricos, como o ‘Muro de Berlim’, o qual era visto pelo regime soviético como essencial para ‘proteger’ o povo dos elementos e influências ‘fascistas’ e a sua ‘desinformação’.

A baixa literacia em várias áreas, que afecta como um vírus a classe jornalística, é bem vista por governos e grandes empresas. Torna-se mais fácil fazer passar os comunicados de imprensa com números e dados falsos ou enviesados. Com jornalistas desgastados, cansados, com jornalistas com baixa literacia em áreas-chave, com ausência de pensamento crítico, é muito fácil transformar a imprensa em ‘colaboracionista’. E é isso que temos, hoje, em geral.

person covering the eyes of woman on dark room

A baixa literacia matemática, estatística, financeira – e também científica – não afecta apenas jornalistas. E o objectivo é que tudo se mantenha assim.

Ainda no dia 21 de Dezembro foi chumbada no parlamento uma recomendação ao governo para que “dê a preponderância devida à literacia financeira em contexto escolar”. A proposta teve os votos contra do PS e do Bloco e a abstenção do PCP e do Livre.

Manter a população na ignorância é bom para quem quer governar (ou lucrar a vender produtos e bens) sem grandes perguntas ou oposição.  

Uma proposta sobre reforço da promoção da literacia financeira em contexto escolar foi chumbada.

No caso dos jornalistas, se poucos souberem fazer cálculos simples, melhor. Se poucos (raros) souberem ler artigos científicos, compreender metodologias e interpretar dados, melhor. Viu-se na pandemia de covid-19 como a maior parte dos jornalistas demonstrou ser fácil de enganar. (Pudera. Se não conseguem contestar dados, fazer cálculos simples ou relacionar eventos da actualidade com a História…)

Este terreno de baixos conhecimentos em áreas-chave, nomeadamente por parte de jornalistas, é ideal para a construção do novo ‘Muro de Berlim’, que está em marcha avançada. Como o muro erguido para dividir a Alemanha, que o regime soviético via como essencial para ‘proteger’ o povo de ‘más’ influências e ‘propaganda’ fascista.

Desta vez, é um muro invisível mas bem real que está a ser erguido por um regime político ocidental capturado por interesses económicos, minado pela corrupção e conflitos de interesses, assente numa ideologia tecno-totalitária. Um regime que está a legalizar, através da aprovação de novas leis, a censura de jornalistas e de notícias verdadeiras, o silenciamento de ‘dissidentes’.

Muro de Berlim. Antes era físico.

O ‘combate’ à ‘desinformação’ e ao ‘discurso de ódio’ é a desculpa deste regime e desta ‘revolução cultural’ para reprimir o povo, a liberdade e a imprensa. Como no tempo do regime soviético e do Muro de Berlim que ‘protegia’ o povo dos ‘fascistas’ e da sua ‘desinformação’. As desculpas mudam. Os objectivos são os mesmos: reprimir, silenciar, vigiar e controlar.

Um regime que premeia o lucro e a ganância (veja-se o caso, na União Europeia, da milionária compra opaca e suspeita de vacinas contra a covid-19, a recente prorrogação por uma década da autorização do uso do perigoso glifosato na agricultura ou as medidas políticas restritivas impostas na pandemia sem qualquer base científica, as quais levaram grandes empresas e bancos a obter lucros recorde e obscenos estes últimos anos, face aos danos gigantescos provocados à população e pequenos negócios).

Um regime que promove guerras enquanto apoia o legalizar da repressão da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no espaço digital (e na saúde, através de actualizações previstas ao Regulamento Sanitário Internacional). Um regime que está a legalizar o silenciamento de ‘dissidentes’, pessoas com visões diferentes das do regime. Um regime que está a trabalhar para garantir que impedir alguém de circular ou aceder ao seu dinheiro será tão fácil quanto carregar numa única tecla.

Um regime que está a legalizar o que em 2020 ainda não era legal: censurar; coagir; prender sem culpa; deixar alguém à fome, sem acesso ao seu dinheiro. Da União Europeia, passando por países como a Irlanda, o Canadá, o Brasil, as leis de repressão avançam.

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Desta vez, não é um muro feito de betão, mas de leis, financiamento, regulamentos e cumplicidade entre o grande poder económico e político. Desta vez, o muro não tem arame farpado, mas normas, reguladores, grandes tecnológicas e comités políticos que podem decidir o que é ‘verdade’ e quem está autorizado a se expressar. Mas este muro tem o mesmo propósito: manter os cidadãos reféns do regime.

Este novo muro de Berlim também não divide a Alemanha; ele está a ser construído em redor dos países do chamado mundo ocidental onde os cidadãos vivem cada vez mais controlados, manietados e vigiados – e não é para o seu bem.

Os media têm um papel crucial em qualquer ‘revolução cultural’. Por isso, outra ‘pedra’ que está a ajudar a erguer este muro são os incentivos financeiros e políticos criados – as ‘cenouras’ – para que os media produzam notícias exclusivamente dentro das narrativas oficiais. São disso um exemplo os apoios para alegado ‘fact-checking‘ (que tem sido, em geral, muito tendencioso e com pouco rigor científico, por exemplo) ou apoios e contratos comerciais diversos vindos de entidades públicas ou privadas.

question mark, pile, questions

Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Restringir a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão é uma das ‘pedras’ necessárias para a construção do novo muro e está a ser implementada em diversos países e também na União Europeia, com a aprovação de directivas comunitárias criadas alegadamente para defender jornalistas e combater a ‘desinformação’ e o ‘discurso de ódio’, mas que conferem poderes às ‘autoridades’ que podem usar usados abusivamente para minar a democracia, os direitos digitais e o Jornalismo.

Como em qualquer ‘revolução cultural’ – como a que está em marcha –, ‘para o bem de todos’, estão a ser criadas leis cuja consequência poderá ser o continuar da censura de notícias verdadeiras – que ‘desautorizam’ a versão ‘oficial’ –, o silenciamento de jornalistas e dos que questionem as políticas de governos e ‘autoridades’. Como nos regimes totalitários – fascistas ou comunistas.

Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Outra ‘pedra’ que está a servir para construir o novo muro é o acto de se ameaçar e intimidar os grandes espaços de informação digital (como as plataformas que operam rede sociais) – como o Digital Services Act na UE ou legislação drástica anunciada na Irlanda. Como aconteceu durante a pandemia, continua a ser eliminada informação verdadeira e silenciadas vozes que contrariam comunicados ‘oficiais’, sob o falso pretexto de ‘desinformação’ (para regimes totalitários, tudo o que não estiver alinhado com as narrativas oficiais é obviamente desinformação).

Sob o comando de Ursula von der Leyen, antiga ministra da Defesa da Alemanha, os lucros de gigantes das indústrias farmacêutica, de armamento e do sector financeiro prosperam ajudados por dinheiros europeus. Além disso, sob o seu mandato, a Comissão Europeia implementou, desde 2020, medidas anti-democráticas, sem base científica, que deixaram um rasto de empobrecimento, doenças e excesso de mortalidade, tendo ainda violado direitos humanos e civis (como o apartheid infame do ‘passaporte de vacina’). Mais recentemente, têm estado a ser aprovadas directivas comunitárias que abrem a porta a abusos políticos e ataques à liberdade de imprensa, de expressão e direitos digitais.

Nova legislação imposta para alegadamente proteger os jornalistas e os media contém artigos que, segundo alguns, são autênticos cavalos de Tróia e potenciais ameaças ao Jornalismo e a todas as notícias verdadeiras que as autoridades ou as Big Tech decidam classificar como ‘desinformação’. É o caso de legislação imposta no Canadá e o Media Freedom Act aprovado preliminarmente, em meados deste mês, na UE.

Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Artistas, actores, escritores, políticos, comediantes, cientistas, professores, jornalistas que falem algo que contrarie ou questione os comunicados ‘oficiais’, são postos de lado, difamados, cancelados, despedidos. São postos num novo Gulag invisível mas eficaz, onde são denegridos, difamados e ostracizados pelos media, não têm trabalho ou apoios públicos e são atirados para o deserto dos classificados como ‘teóricos da conspiração’.

Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Nos media, é bem visível a onda de se cobrir de forma idêntica os principais temas, além do recurso a insultar e enxovalhar ‘vozes dissidentes’ (lembram-se dos termos ‘chalupas’ ou ‘negacionistas’, ‘putinistas’, etc?) – a onda de ‘revolução cultural’ assente numa ideologia/religião minada de fanatismo.

Factos e dados não valem nada nesta cultura actual, onde alguns temas ascenderam a categoria de ‘religião’ – seja na saúde, na Ciência, ou na política internacional. Os ‘dissidentes’ são difamados como sendo de ‘extrema-direita’ (em outros regimes eram ‘fascistas’ ou ‘comunistas’) ou com outras acusações falsas que visam apenas desacreditá-los. Os nomes e acusações mudam mas a táctica é a mesma.

green and white typewriter on black textile

Até factos históricos e literatura são ‘reconstruídos’ ou mesmo eliminados neste regime – esta revolução ‘cultural’ – que nasce com o novo muro.

Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Com identidade e dinheiro digitais – em desenvolvimento acelerado –, o controlo e vigilância potenciais são absolutos. Totais. E poderão ser meios usados abusivamente para restringir a liberdade e o acesso a rendimentos de ‘vozes dissidentes’.

Um muro invisível aos olhos da imprensa, dos jornalistas cegos ou alinhados, mas um muro real. Tão real como um muro de betão e arame farpado e protegido por guardas armados.

Como sucedeu tantas vezes na História, de forma silenciosa e gradual, um ciclo de totalitarismo ameaça estar à espreita. Do lado de dentro deste novo ‘Muro de Berlim’ não estão parte da Alemanha, ou países como a outrora subjugada Polónia pela Rússia, … Dentro deste muro de Berlim invisível estamos todos nós, ocidentais.

Este muro não existia nos últimos anos, mas o início deste regime totalitário já era visível. Para implementar medidas anti-democráticas, desde 2020, foram violadas as leis fundamentais dos países. Foram detidos cidadãos, alguns com recurso a violência extrema, em certos países. Foram congeladas ilegalmente contas bancárias a cidadãos que questionaram medidas em países, como o Canadá. Foram impostos mandatos que violaram os direitos humanos e civis e que deixaram um rasto de mortes e mortalidade em excesso e doenças. A pobreza disparou e os mais vulneráveis foram dos mais prejudicados.

Tudo foi feito de forma ilegal. As novas leis, o novo muro que está a ser construído, ameaça tornar todo esse tipo de violações ‘legais’ no futuro. A normalização da ideia iniciada na pandemia de que quem decide o que é ‘verdade’ não são jornalistas ou cientistas mas reguladores e ‘Big Techs’. A tentativa de eliminação do conceito de direitos humanos em políticas de saúde, bem como o adulterar do conceito de direitos digitais. A normalização da ideia de que não somos soberanos sobre o nosso próprio corpo. A legalização da ideia de que não somos guardiões nem educadores últimos dos nossos próprios filhos.

E está em marcha a normalização do silenciamento de jornalistas – sob o falso pretexto de ‘desinformação’ – e até do encarceramento de jornalistas – veja-se o caso de Assange, jornalista e preso político num país do Ocidente.

Memorial relativo ao Muro de Berlim

O fanatismo, a ganância (por lucro e poder) e a ignorância foram a base para a instalação de regimes totalitários, para a repressão e para crimes contra a Humanidade.

As novas ‘religiões’ criadas em torno de temas ‘incontestados’, o fanatismo alimentado pelos media, a ganância de grandes indústrias tecnológicas (e não só) e a ignorância são, hoje, de novo, os alicerces para a construção deste novo muro de Berlim.

(Por falar em fanatismo que se sobrepõe aos factos científicos, veja-se, por exemplo, o caso do artigo científico que comprovou, de vez, a ineficácia do uso de máscara em crianças mas, ainda assim, apesar dos factos, os media citam, sem questionar, os que ainda recomendam erradamente o seu uso, perante os enormes malefícios causados a crianças).

São novos fanatismos, ideologias totalitárias em pleno século XXI. Mas é, sobretudo, cegueira. Uma perigosa cegueira que contribui para ajudar este muro a levantar-se em torno do mundo ocidental. Um muro silencioso e invisível mas que está a erguer-se.

Mas, tal como vivemos neste regime pré-totalitário, também surgiram, nos últimos anos, na sociedade ocidental, novas estruturas e plataformas em defesa dos direitos humanos e civis, novos meios de comunicação social independentes, processos na Justiça para aceder a informação escondida e combater os fanatismos, os actos de ganância e a censura.

Se é verdade que um muro se está a erguer, também a sociedade civil está mais forte, hoje, do que estava em 2020, está mais organizada e preparada para lidar com ataques à democracia, à liberdade de imprensa e aos direitos humanos, civis e direitos digitais.

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E, como diz o ditado, não se consegue enganar toda a gente, o tempo todo. E não se consegue comprar toda a gente, nem para sempre.

O muro pode estar a ser construído, mas junto com ele está a erguer-se uma sociedade civil mais consciente e atenta. Estão a erguer-se estruturas – desde jornais independentes a organizações de profissionais e de direitos no mundo digital – que colocam em causa o novo regime que ameaça mergulhar o mundo ocidental numa ditadura comandada, não pela repressão política ou militar, mas pela repressão ideológica, tecnológica e financeira.

E, se a sociedade civil prosseguir com o reforço dessas novas estruturas e organizações, no final, o mundo ocidental sairá mais forte e também mais consciente. Haverá mais consciência de que é urgente preservar o conhecimento acumulado e a História. E de que é preciso estar atento. Porque, afinal, mesmo com tudo o que a História nos ensina sobre os perigos das ditaduras e ‘revoluções culturais’ com censura à mistura, mesmo com toda a evolução científica e tecnológica, haverá sempre quem esteja disposto a tentar eliminar a democracia, a imprensa e o livre arbítrio. A tentar eliminar o que é preciso preservar a todo o custo: a liberdade.

Elisabete Tavares é jornalista


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