RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Mercenários e meninos soldados

por Rui Araújo // Dezembro 28, 2023


Categoria: Exame

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O PÁGINA UM publica a segunda reportagem do jornalista Rui Araújo sobre uma guerra esquecida em África, mais precisamente na República Centro-Africana, palco de interesses geoestratégicos, comerciais e de delapidação de recursos, e onde mercenários e crianças se digladiam.

Em 2021, o jornalista Rui Araújo esteve (pela segunda vez no espaço de três anos durante mais de um mês outra vez) na República Centro-Africana, um país dilacerado por uma contínua e atroz guerra . Inicialmente, esta reportagem foi publicada na revista galega Luzes, na revista espanhola FronteraD e ainda no jornal digital português Sete Margens e na edição online da CNN Portugal

Apesar de algumas fotografias chocantes, pelo que avisamos, desde já para este facto, o PÁGINA UM decidiu publicar as imagens colectadas pelo Rui Araújo, por serem testemunhas da crueldade das guerras e, infelizmente, da natureza humana.



Bria. República Centro-Africana.

A quietude é perfeitamente enganadora. O país está a ferro e fogo há quase 10 anos. Catorze grupos armados continuam a controlar 80 por cento do território onde o Estado faz figura de ausente. Os mercenários estrangeiros, incluindo russos, matam indiscriminadamente a torto e a direito e pilham e estoiram o que podem. A impunidade é total…

Ao meu lado uma mangueira frondosa. Diante de mim, no campo de futebol de terra ocre, os miúdos de pé descalço correm desenfreadamente no meio dos apitos do árbitro branco sem presunção.

(Foto: Movimento Rebelde)

Bakita Ousma assiste à partida com deleite. A cachopa não é uma espectadora qualquer. Encontrou, aqui, na associação Esperança a salvação ou o apaziguamento. E alguém que cuide dela (com o apoio, designadamente, das Nações Unidas). Tem doze anos. É orfã. Aos oito entrou para o grupo de guerrilheiros numericamente mais importante do país.

— A minha mãe e o meu pai morreram quando os cristãos atacaram a aldeia e é por isso que eu fui para o grupo armado FPRC (Front Populaire pour la Renaissance de la Centrafrique).

O desabafo é claro e sincero. Tinha oito anos bem contados. Um ano depois escapou-se, mas a sua tenacidade nem por sombras esmoreceu. A guerrilha foi para ela o lenitivo ou o remédio de encarar a morte dos pais, matar a fome e quiçá a solidão. Mesmo se tivesse nascido noutro lugar a sua postura seria exactamente igual. A doçura da voz de Bakita é falaciosa. É uma resistente…

— E como era a vida lá? — indago por indagar.

— Estava no mato. 

— E que mais?

— Já não tinha família…

As primeiras vítimas da guerra… (Foto: Rui Araújo)

Bakita olha maquinalmente para os jogadores mais ruidosos. Queira ou não queira — como diria Miguel Torga —, vive duas vidas. Uma que se vê e outra que não se vê. Como todos nós, aliás.

— Tens um sonho? Qual é?

A menina, alheia à minha conversa, limita-se a sorrir. Insisto.

— Qual é?

— Quero ser comerciante. Quero fazer negócios… — lá me responde com convicção ao fim de uma eternidade.

Segundo uma estimativa da UNICEF, datada de Setembro de 2015, os movimentos rebeldes da República Centro-Africana recrutaram 10.000 crianças.

A única certeza é que os 14 principais grupos rebeldes — muçulmanos e cristãos — contam nas suas fileiras com muitos meninos combatentes. O seu número exacto, hoje, é uma incógnita.

Encontro seguinte: Koyo Haroune, futuro grande fotógrafo. Tem 15 anos cumpridos. Foi para a guerra aos nove. Passou cinco com os rebeldes da FPRC.

As crianças só terão um futuro se a guerra acabar, mas… (Foto: Rui Araújo)

— Os rebeldes, que se chamam anti-Balaka, mataram o meu irmão mais velho.

— Os cristãos…

— Sim.

— E ele tinha 36 anos…

— 36 anos.

— E tu foste para a FPRC para fazer o quê?

— Os anti-Balaka mataram o meu irmão mais velho. Foi por isso que fui para o grupo armado. Queria vingá-lo!

— E foste para soldado com 9 anos de idade…

— Com 9 anos de idade.

— E o que fazias lá?

— No grupo armado? Eu só matava as pessoas. Ia para o terreno…

— E viste muita gente morrer?

Ninguém passa impunemente pela guerra. (Foto: Rui Araújo)

Koyo deve ter sentido qualquer coisa fender-lhe o peito e desata a rir, envergonhado, com a mão a tapar-lhe a boca.

— Sim. Eu matei muita gente.

— Muitas?

— Muitas. — responde-me.

— E muitas são quanto?

— Eu não conto. Eu não conto…

— E matar. É o quê? — pergunto, teimoso.

— Matar? Eu mato com as armas.

— AK-47. Kalashnikov…

— Kalashnikov. E com foguetes RPG…

— O que sentiste a primeira vez?

— Não me faz nada.

— Nem depois?

— Nada.

Dois guerrilheiros da UPC… (Foto: Rui Araújo)

— E vingaste-te?

— Sim, é verdade. Vinguei-me.

— Qual é a principal lição desses anos com o grupo armado?

— Perdoei tudo.

— E a guerra? O que pensas da guerra hoje?

— Hoje, penso que a guerra não é boa. A guerra não é boa… Na guerra perdem-se muitas vidas. É por causa disso que me fui embora.

— E… E para o teu irmão?

— Para o meu irmão… Ele está morto. Os anti-Balaka (ndr: cristãos) mataram-no. Os filhos dele ficaram sozinhos. Os filhos, agora, andam na rua ao Deus dará. Custa-me ver isso. Andam aí pelos caminhos. São meninos de rua…

— Ouvi dizer que tens um sonho lindo… —  alvitro sem cálculo.

— O que eu gostava de fazer na vida?

Reparo na alegria a arder nos seus olhos irrequietos. Há utopias que se realizam.

— Sei lá… Fotógrafo. Trabalhei uma vez como fotógrafo num estúdio de fotografia. 

— A fotografia também é memória…

— É a memória!

— E a memória não é um problema?

— Não é um problema para mim…

Miséria generalizada num país rico… (Foto: Rui Araújo)

Dito e feito. Koyo tem carradas de razão. Eles estão destinados a desafiar o passado para poderem vencê-lo e conciliarem-se com a vida, mas não é fácil…

O insólito árbitro de apito nos lábios acicata os putos. Mahamat Damine senta-se diante de mim, aflito. Foi soldado durante cinco anos. Tinha 11 quando abalou para a guerra. Foi pelas melhores razões, não vá o Diabo tecê-las…

— Os cristãos massacraram a minha família. Os meus pais! Via muitos anciães a sofrer. É por isso que eu fui para o grupo armado FPRC. Queria salvar as pessoas que estavam a sofrer…

— A guerra é o quê para ti?

O adolescente coça a cabeça embora conheça a resposta.

— A guerra? Brincamos muitas vezes à guerra, mas a guerra não é boa. Vi muitos homens morrer. Mulheres. Crianças… A guerra não é boa.

— Mataste também?

— Sim, também matei.

— Sabes quantos?

— Sim, eu sei.

— Quantos?

— O máximo foram 11.

— E depois?

A capital não escapa ao flagelo da violência… (Foto: Rui Araújo)

O rapaz hesita, pensa, torna a pensar e desata a rir.

— Depois, nada. Eu queria deixar aquilo. Agora, já não creio que podia fazer aquilo. Eu só queria largar a guerra. A guerra não é boa. Eu queria abandonar o grupo armado.

— E havia muitas crianças nesse grupo?

— Sim. Há muitas crianças nesse grupo.

— A partir de que idade?

— Há homens… há uns a partir dos 11 anos, 12 anos, 13 anos, 14 anos, e mesmo 15 anos também. Há crianças pequenas…

— Ainda hoje?

— Sim. Ainda as há hoje.

— Qual é a coisa mais bonita hoje na tua vida?

— Pois… A coisa mais bela na minha vida? Acho que jogar futebol é uma boa solução para a minha vida.

— E uma namorada?

— Nenhuma. Não tenho… É a vida. Não é mentira!

Guerrilheiros cristãos: matar de qualquer maneira… (Foto: Serviço secreto ocidental)

O seu ídolo é Leo Messi, que foi recentemente condenado pelo Tribunal Provincial de Barcelona a pagar as custas do processo contra el Economista. A empresa LIMECU (acrónimo de Lionel Messi Cuccittino) declarou prejuízos sucessivos, não pagou impostos e não registou lucros desde a sua criação em 2010.

Nos dias de hoje, a reinserção e a adaptação psico-social de muitos meninos soldados passa pela escola, o desporto, a música e a reconstrução dos afectos e porventura das quimeras da infância.

O guarda-redes arregaça as mangas e posiciona-se. Tem um ar soturno, claro está. O jogo está renhido. E estes miúdos estão habituados a lutar. Todos eles passaram pelos grupos armados. Uns, foram recrutados. Os outros, raptados. Tinham oito, nove ou 12 anos de idade. Eram combatentes, informadores, mensageiros, cozinheiros ou guardas das barreiras. Muitas meninas foram violadas e eram escravas sexuais.

Bria continua a ser um dos bastiões da FPRC, que controla o centro da urbe. Os muçulmanos da UPC (L’Unité pour la paix en Centrafrique), do RPRC (Le Rassemblement patriotique pour le renouveau de la Centrafrique) e os cristãos anti-Balaka (AB) mandam no resto. O campo PK 3 com mais de 90.000 deslocados é dos cristãos. Mas mesmo os lugares onde a vida é uma porcaria têm direito a nome…

Os guerrilheiros cristãos anti-Balaka são iguais ou piores que os muçulmanos.
(Foto: Serviço secreto ocidental)

Pé ante pé, calado, avanço em direcção à porta. O insólito comité de recepção é composto por dois rapazes de espingarda-automática 7,62 pendurada no ombro. São os guarda-costas do general Ali Ousta, chefe de Estado-Maior da FPRC. Explico ao que vou. Penetro numa assoalhada esconsa a cismar nas perguntas incómodas que tenciono fazer.

— No Norte não há estradas. Não há escolas. Não há hospitais. Não há electricidade. O governo esqueceu-se do Norte desde a independência…

O chefe rebelde podia arrotar postas de pescada, mas não o faz. Dou a mão à palmatória. É verdade aquilo que me diz. 

— Mas há personalidades e países que estão por detrás disto tudo. Fazem com que as pessoas andem a matar-se umas às outras…

— São os recursos que constituem, hoje, a principal causa do conflito?

— O que penso é que as pessoas mandadas para cá para nos proteger andam a roubar as riquezas do país…

— E os russos, que estão a apoiar o regime?

— Não há um único russo que tenha entrado nesta sala. Foi o governo que os trouxe. É com o governo que eles falaram…

Mercenários armados do grupo russo Wagner na cidade “sem armas” (segundo a ONU) de Bria.
(Foto: Rui Araújo)

— Os grupos armados estão associados ao crime, à extorsão, aos raptos, roubo, violações. Fala-se de coisas verdadeiramente sombrias… É tudo mentira?

— Senhor jornalista, tudo isso são mentiras. Quem diz isso são as pessoas que não gostam dos grupos armados e fazem relatórios falsos. 

É mentira. Com quem me fui meter? Sondei o general com mais uma pergunta.

— A FPRC tem meninos soldados?

— Libertámos todos os que tínhamos. Já não há mais nenhum!

Não quis saber. Fui-me embora.

O comerciante Mahamat Zène Abrass foi assassinado pelos bandidos de Wagner.
(Foto: Movimento Rebelde)

19 de Abril de 2021.

A mensagem de Hassan, um jovem  “peul” que conheci no mato há uns anos, é terminante: “Os russos chegaram ao PK7 (ndr: quilómetro 7 antes da cidade) de Bria: Pensamos que eles vão entrar esta noite. Estamos cheios de medo. Muitos querem fugir para o mato e levar as famílias.”

De facto, segundo um relatório militar da MINUSCA (ONU) a que revista LUZES teve acesso, “12 veículos, incluindo seis blindados russos”, oriundos de Ippy entraram nesse dia em Bria. 

“O comboio ocupa duas posições: BASE MINE no centro de Bria e BASE GARAGE na periferia de Bornou (eixo PK3 – OUADDA).”

A avaliação U2 (elaborada pelo responsável da secreta da MINUSCA) em Bria é a seguinte: a missão dos russos e das Forças Armadas da República Centro-Africana (FACA) é “um reconhecimento ofensivo nos eixos BRIA-IPPY e BRIA-YALINGA” onde os rebeldes muçulmanos da UPC e da FPRC “estão particularmente activos”.

Mercenários do grupo Wagner no interior da RCA. (Foto: Serviço secreto ocidental)

“BRIA é uma cidade estratégica para a CPC” (La Coalition des patriotes pour le changement), uma aliança de seis grupos armados que controlam os dois terços do país), cujo objectivo confesso é derrubar o presidente Touadéra.

As operações de CORDON e SEARCH por parte das forças bilaterais sucedem-se nos dias seguintes.

A 2 de Maio, Hassan envia-me outra mensagem sobre os mercenários russos. 

“Em Zako, eles pediram ao senhor presidente da câmara para registar as pessoas com idades entre os 25 e os 45 anos. Dão-lhes 500 francos (ndr: 500 francos CFA correspondem a 0,76 €) e uma lata de sardinhas por dia para lavarem o cascalho. As que andavam à cata dos diamantes fugiram…”

“URGENTE URGENTE! Os mercenários russos também mataram, ontem, em Kaga-Bandoro o influente comerciante árabe Mahamat Zène Abrass, mais conhecido por 11-11. O corpo foi descoberto hoje. Foi raptado no mercado. Depois foi levado para a base dos russos. Foi torturado com selvajaria e a seguir cortado aos pedaços antes de ser decapitado e queimado. Uma morte atroz e abominável. O povo descobriu ao lado de 11-11 um outro corpo sem vida. A cidade de Kaga-Bandoro está a transformar-se numa cidade fantasma. Os mercenários russos estão a transformar a RCA noutra Ucrânia…”

Mais um crime sem castigo dos pulhas do grupo Wagner.
(Documento classificado da ONU)

A Federação Russa aumentou as operações com as firmas tecnicamente ilegais de mercenários (ChVK’s) a partir de 2014. As principais firmas são a MSGroup, a RSB, a MAP, a CENTRE R, a ATK Group, a SLAV CORPS, a ENOT, a COSSACKS e a PMC WAGNER, que está presente, designadamente, nos teatros de operações da Ucrânia, Síria e República Centro-Africana.

A “exportação” de mercenários (ex-operacionais das Forças Especiais e do serviço militar de intelligence GRU) permite à Rússia criar condições favoráveis para os negócios de armamento e a exploração dos recursos naturais.

O grupo de mercenários mais proeminente é o da firma Wagner (fundada em 2013 por Dimitri Utkine, um neonazi que tinha a patente de tenente-coronel no GRU).Especialidades: fomentar a exploração ou o saque dos recursos naturais, propagandear as teses de Putin, divulgar fake news, desinformar as opiniões públicas, raptar e matar com total impunidade…

Mercenários do grupo Wagner (ao serviço de Moscovo) numa bomba de gasolina.
(Foto: Serviço secreto ocidental)

Os operacionais (“contractors”) da Wagner são acusados de “matar crianças, violar e torturar mulheres como animais e de executar homens nas mesquitas”. 

A demissão das consciências chegou a Nova Iorque e a Bangui. A ONU fecha-se em copas. Há mesmo quem questione o peculiar “pacto de silêncio” celebrado entre a MINUSCA e os mercenários russos…

De acordo com o Instituto Francês das Relações Internacionais, “a única investigação realizada até hoje pela MINUSCA sobre as violências cometidas pelos russos diz respeito a um centro-africano que foi torturado em Bambari em 2019.”

No início desse ano, ainda segundo o IFRI,“a operação militar contra a CPC teria provocado numerosas vítimas civis, nomeadamente numa mesquita de Bambari em Fevereiro desse ano, mas a MINUSCA optou pelo silêncio.”

A MINUSCA é a ONU. Está tudo dito… (Foto: Rui Araújo)

O imã Hamat Hamadi da mesquita Central de Bambari é um homem moderado, inteligente e particularmente bem informado. Já nos conhecemos pessoalmente há vários anos. Peço-lhe para me contar.

— Foi a 15 de Fevereiro às 13 horas no exterior da mesquita Al Takwa, no bairro Carrefour, aqui em Bambari. Uma coluna de homens da Seleka (grupos armados muçulmanos), dirigida pelo General Amadou Boungou da UPC apareceu diante dos russos e dos soldados das FACA.

Perante a força de ataque de estas forças, os rebeldes recuaram e penetraram na mesquita. Havia nessa altura muitos fiéis no interior.

Quando os grupos armados fugiram, algumas pessoas tentaram escapar, e os russos e as FACA apareceram. Pensaram que eram rebeldes e dispararam na sua direcção.

Confirmo a morte de três civis na mesquita. O balanço é de 18 mortos, sobretudo rebeldes. Uma mulher morreu. Levou com uma bala perdida. A vítima mais jovem tinha 20 anos…

Escuto o religioso. A desgraça não tem nome. É toda a gente ou quase que é culpada…

— Combater nas zonas habitadas é o modus operandi dos homens armados. É uma maneira de transformar civis em escudos humanos…

Adiante. O relato da imprensa local não deixa margem para dúvidas: “Os mercenários não queriam saber quem era rebelde e quem era civil: Eles queriam era matar, declarou uma testemunha ocular. Os mercenários teriam executado três jovens no interior da mesquita e outros 15 terão sido abatidos no decorrer do ataque à mesquita, incluindo crianças e velhos.”

Acampamento e camião dos mercenários de Wagner no interior da RCA.
(Foto: Serviço secreto ocidental)

A Amnistia Internacional denunciou os crimes, mas a MINUSCA fez ouvidos de mercador…

Os jornalistas russos Orhan Djemal, Alexandre Rastorguev e Kirill Radchenko, que estavam a fazer um documentário sobre as actividades do grupo Wagner na RCA, foram misteriosamente assassinados perto de Sibut em 2018. Teriam sido eliminados pelos mercenários ou pelos seus capangas locais. A investigação da MINUSCA é, aparentemente, inconclusiva…

A demissão das consciências é real.

Em Nova Iorque, o Conselho de Segurança da ONU modificou o mandato da MINUSCA. 

O parágrafo sobre a “exploração ilícita e o tráfico de recursos naturais” da resolução votada em 2017, desapareceu, entretanto, na que foi adoptada a 13 de Dezembro de 2018.

Um país imensamente rico sem infra-estruturas. (Foto: Rui Araújo)

É a luz verde para a rapina organizada do país.

Doravante, a MINUSCA deixou de ter legitimidade ou competência para atacar as redes de traficantes e impedir o rapinanço dos diamantes, ouro, urânio e de todos os outros recursos naturais do país…

Pelo menos 2.500.000 habitantes (mais de metade da população da RCA) continuam a precisar de ajuda humanitária. 100.000 civis refugiaram-se desde o último processo eleitoral no interior e na capital enquanto que mais 60.000 procuraram abrigo nos países vizinhos. 

O regime de Moscovo oferece armas e munições (desde 2018), treina e apoia as operações das Forças Armadas (FACA), propõe medidas políticas, garante a protecção do presidente Touadéra, e desenvolve ainda tarefas supostamente humanitárias (com comboios de camiões blindados provenientes do Sudão que ninguém controla ou com hospitais como o de Bria, que não tinha médicos nem enfermeiros).

A influência da Rússia não pára de aumentar na República Centro-Africana desde, pelo menos, 2017. À medida dos crimes dos 1.700 mercenários da Wagner (1), a parceira privada do governo de Bangui, que estariam a ser investigados pela MINUSCA.

A França, antiga potência colonial, não consegue travar o avanço da Rússia. O último episódio da rivalidade entre os dois países ocorreu a 10 de Maio de 2021 quando a unidade especial da Polícia centro-africana OCRB deteve o ex-pára-quedista francês Juan Rémy Quignolot, 55 anos por posse de armas de guerra, em Bangui.

O russo Valery Zakharov, ex-agente do FSB e actual conselheiro nacional de segurança do presidente Touadéra, deu a notícia num tweet: “Um cidadão estrangeiro foi detido em Bangui com uma enorme quantidade de armas e de munições”.

Os soldados das FACA começam a estar fartos de Wagner…. (Foto: Rui Araujo)

Quignolot é apresentado na RCA como um bandido ou um mercenário.

O governo de Paris denunciou, entretanto, a “manifesta instrumentalização de esta detenção” numa terra que já foi o seu “pré carré”…

Nas redes sociais circularam algumas imagens do ex-militar com o general Ali Darassa, responsável da UPC. Tentei falar com ele, porquanto já o entrevistei em anos diferentes no quartel-general da UPC (Bokolobo), mas o líder rebelde encontra-se no mato. As minhas perguntas foram, portanto, enviadas por um canal mais moroso…

Juan Rémy Quignolot é “malgré lui” uma vítima da guerra suja dos russos na RCA.
(Foto: Captura de ecrã)

Seja como for, as recentes acusações onusianas de “graves violações dos direitos humanos”  cometidas pelos mercenários da Wagner e as tropas centro-africanas não impedem as autoridades de Bangui de louvar a cooperação com Moscovo.

“Falam-nos do grupo Wagner, mas o governo centro-africano não assinou nada com um grupo Wagner, nem com nenhum outro. O governo celebrou um acordo com outro governo, o da Rússia, com instrumentos que ela considerou úteis, pôs à nossa disposição instrutores, armas e coisa e tal”, afirmou Ange-Maxime Kazagui, ministro da Comunicação e porta-voz do governo, ao canal TV5 Monde.

É dia de mercado e dia do Senhor. Entro no campo de deslocados PK 3. É o maior do país. Com as abominações da guerra mais de 90.000 cristãos e animistas procuraram refúgio neste monte desolado. Soa um sino. É a hora da missa.

A detenção em Bangui do ex-paraquedista foi anunciada por um oficial russo…
(Foto: Captura de ecrã)

Redentora ou nem por isso, pouco importa.Cada um traz o seu banco ou cadeira. A igreja da paróquia de São Luís de Bria fica ali ao lado. Alguns, poucos, aparecem de traje domingueiro. O que conta, agora, é a santa oração… a partilha da desgraça e da angústia, mas sobretudo da esperança. A celebração é efectuada dentro e fora do barracão. É o que há para tantas almas.

O calor é tanto que já nem se presta atenção. Ninguém arreda pé. Penitência e fé andam de mãos dadas… Os pobres dão uma nota ou uma moeda. Os que podem. A seguir, é o momento crucial da comunhão. Da salvação sem glória. Fim da liturgia. Meto conversa com o abade Bruno Kongbo. Os putos brincam à guerra…

— Estas crianças terão um futuro se esta guerra acabar. Mas no preciso momento em que lhe falo, nem as escolas funcionam sequer. E há muitas crianças neste campo. Chega a haver 400 alunos numa sala de aulas…

Wagner é sinónimo de terror e de impunidade na RCA. (Foto: Movimento Rebelde)

—  Não há água potável… — insinuo, acanhado, fazendo de jornalista.

—  Não há água potável nem centro de saúde. A comida… A escola. Tudo deixou de funcionar…

—  Foi a guerra que os levou a refugiarem-se, aqui, neste lugar. Se olhar para eles, se os vir, pode sentir o que estão a viver nos confins do seu corpo e nos confins da sua alma e do seu espírito também. Olhe, olhe, olhe…

É impossível arrepiar caminho sem olhar primeiro. Imaginar a desgraça é sempre pior do que vê-la… quem o diria… Calcorreio as veredas. A banca do merceeiro. O carregador de telemóveis… A latrina ao ar livre (já que não há esgoto). A roupa a secar… e o céu. O Céu que, aqui, fica longe.

Na penumbra um homem tenta esconjurar o sofrimento ou perdeu mesmo a razão. Uma vida amortalhada, mais uma. Mais adiante, um recém-nascido deixa correr as horas, que, aqui, já ninguém mede…

Saio atordoado.

A vida continua… (Foto: Rui Araújo)

As tréguas com Deus raramente deixam um sabor tão amargo na boca…

Fora do PK 3, do outro lado do caminho, está o atelier de costura dos ex-combatentes anti-Balaka – o nome que dão às milícias cristãs. Anti-Balaka quer dizer em sango, uma das duas línguas do país, “anti-catana” ou “anti-balas de AK-47”.

Aqui há gente que não consegue pedir esmola e recusa o absurdo. 

(1) Oficialmente há apenas 535 mercenários da Wagner no país. Uma parte deles garante a segurança do presidente Touadéra.


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