A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”
Jorge de Sena
ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)
Então, mas…
…é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?
Caraças, estes malditos detalhes.
Dão com os escribas em doidos.
Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoas – mas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, o Natal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.
Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.
Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.
Na primeira década do século XVI?
Gaita que isto foi rápido.
Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.
Esse Papa adoptara o nome Gregório III.
Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.
Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.
Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.
Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].
Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.
Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.
A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.
A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.
É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.
Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”
Ewh.
Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.
É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:
“As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]”
Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.
Que esta Luz caminhe agora convosco.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.
[2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos
[3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.
[4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.
[5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.
[6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.
[7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.
[8] E uma vez mais.
[9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.
[10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.
[11] Ver Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.
[12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.
[13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.
[14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.
[15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.
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