Efeitos negativos da covid-19 e da gestão política da pandemia continuam pelo quarto ano consecutivo

Ano de 2023 acaba próximo de 119 mil óbitos e ‘normalidade’ ainda não regressou

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por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 3, 2024


Categoria: Exame

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Os dados provisórios do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) revelam uma redução da mortalidade em 2023, abaixo da fasquia dos 120 mil mortes, que foi ultrapassada sempre em 2020, 2021 e 2022. Mas uma análise pedida pelo PÁGINA UM a um investigador da Faculdade de Ciências de Lisboa mostra que a ‘normalidade’ ainda não regressou a Portugal. As causas para a persistência da crise sanitária ainda em 2023, num ano em que a covid-19 em fase endémica foi apenas responsável por 1,8% dos óbitos, continua a ser uma incógnita, porque o Ministério da Saúde adiou sine die um relatório que prometeu no Verão de 2022.


O fim da Emergência de Saúde Pública, decretado pela Organização Mundial da Saúde em Maio passado, não deu por terminado os efeitos directos e indirectos da gestão da pandemia em Portugal. Quatro anos depois do surgimento do SARS-CoV-2 em território nacional – e apesar de o número de óbitos em 2023 (118.864) ter ficado abaixo da fasquia dos 120 mil registados em cada um dos anos no triénio 2020-2022, os indícios de excesso de mortalidade mantêm-se.

Uma análise feita a pedido do PÁGINA UM a João Gomes, investigador e professor do Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa mostram que Portugal ainda está longe de uma normalização da mortalidade. Ou seja, mesmo com a covid-19 numa fase endémica – causou, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde, 2.106 óbitos em 2023, até ao dia 29 de Dezembro, ou seja, 1,8% do total –, a situação de Saúde Público não apresenta um  cenário nada favorável.

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De acordo com um modelo de regressão simples linear, a partir do período 2006-2019 – em que já se sentiam os sinais de tendência de envelhecimento populacional, com um acréscimo ‘natural’ de cerca de 760 óbitos a mais em cada ano –, seria previsível que, sem qualquer efeito anormal (como a pandemia e os efeitos da gestão política), se registasse no quadriénio 2020-2023 um total de 456.332 óbitos, com um intervalo de confiança entre os 440.183 e os 472.481 óbitos.

No entanto, a realidade foi muito pior. Em 2020 foram contabilizados 123.720 óbitos, aumentando para os 125.223 óbitos no ano seguinte, sobretudo devido à mortalidade de Janeiro e Fevereiro, mesmo apesar do programa de vacinação contra a covid-19.

Em 2022, o cenário não foi pior em termos absolutos – registaram-se 124.892 óbitos –, mas observou-se um excesso de mortalidade persistente, mesmo em meses ‘amenos’ da Primavera e Verão. Recorde-se que, em Agosto de 2022, a então ministra da Saúde, Marta Temido, anunciou a realização de um estudo sobre as causa deste fenómeno, mas até agora nunca foi apresentado. Com os óbitos de 2023, o último quadriénio totalizou 492.649 óbitos.

Mortalidade registada (barras azuis), previsão (fit, bolas amarelas) e intervalos de confiança inferior (bolas castanhas) e superior (bolas vermelhas) para os anos de 2020, 2021, 2022 e 2023 em função da série 2006-2019. Análise: João Gomes/FC-UL

Considerando o valor da linha de regressão ajustada aos dados (fit) – que, de forma simplificada, representa a melhor estimativa no modelo de regressão –, seria expectável que, sem os efeitos do SARS-CoV-2 e da gestão da pandemia, morressem 112.944 pessoas no ano de 2020, estimando-se assim um excesso de 10.776 óbitos. No ano de 2021, face ao fit, o excesso foi de 11.520 óbitos, sendo de 10.429 óbitos em 2022. No ano passado, esse valor reduziu-se para os 3.642 óbitos. Somando os valores anuais, o desvio entre os valores registados e o fit foi de 36.367 óbitos no quadriénio, ou seja, de 8%.

Caso seja tomado em conta o limite superior do intervalo de confiança, o excesso de mortalidade no quadriénio desce para um total de 20.218 óbitos, sendo o excesso no quadriénio de cerca de 4,3%. No caso do ano de 2023, admite-se mesmo, do ponto de vista estatístico, que possa considerar-se a inexistência de um nível de mortalidade ‘anormal’, uma vez que o valor real dos óbitos, apesar de bastante acima do fit, se encontra ligeiramente abaixo desse limite superior do intervalo de confiança para esse ano.

Contudo, como o ano de 2023 sucedeu a três anos sucessivos com um inquestionável (e muito elevado) excesso de mortalidade – ‘antecipando’ a morte de muitas pessoas já vulneráveis que apresentavam então já uma expectativa de vida muito curta –, seria expectável que o número de óbitos registados fosse substancialmente inferior ao fit, ou mesmo abaixo do limite inferior do intervalo de confiança.

Mortalidade total entre 2006 e 2019 e valores obtidos no modelo de regressão simples. Fonte: João Gomes/FC-UL.

“Somente com um modelo auto-regressivo para os resíduos se aprimoraria ainda mais estas previsões incorporando o efeito da redução da população mais vulnerável na mortalidade dos anos seguintes”, salienta João Gomes ao PÁGINA UM, referindo ainda que, com grande grau de probabilidade, a sua aplicação para o último quadriénio levaria a concluir que mesmo 2023 teve um claro excesso de mortalidade.

Aliás, em situações normais, os fenómenos de ‘compensação demográfica’ natural decorrem mesmo ao longo das estações do ano. Por exemplo, a um período invernal com surtos gripais agressivos e elevada mortalidade sucede depois, em regra, um abaixamento no número de óbitos nos meses seguintes; enquanto depois de ondas de calor mortíferos no Verão, os dias ou semanas seguintes ‘beneficiam’ de uma redução da mortalidade.

Somente quando existem problemas estruturais de saúde pública, como parece ser o caso do quadriénio 2020-2023, o excesso de mortalidade se mantém sem se observar qualquer ‘compensação demográfica’ Note-se que o surto de gripe A deste Inverno, apesar de ter feito subir a mortalidade, está em níveis relativamente similares aos períodos invernais de 2015 e 2017, quando também surgiu em Portugal o subtipo H1N1.

Output intermédio da análise estatística de João Gomes com programação R.

Saliente-se que a análise desenvolvida por João Gomes, com recurso a programação R, poderia ser aplicada, com maior acuidade e com séries mais longas, à mortalidade por causas para identificar eventuais desvios estatisticamente significativos.

Essa análise somente pode ser realizada com o acesso à base de dados integral e anonimizada do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), mas o Ministério de Saúde recusa-se a fornecê-la. Neste momento, este diferendo encontra-se em fase de recurso pelo Tribunal Central Administrativo Sul desde Outubro de 2022, ou seja, há mais de 14 meses.

N.D. A escolha da série 2006-2019 deveu-se ao facto de a partir desse ano ter-se registado um maior incremento natural da mortalidade total. A escolha de uma série mais longa (a partir dos anos 90, por exemplo), implicaria uma tendência de crescimento mais ténue até 2019, o que implicaria estimativas de excesso ainda maiores para o quadriénio 2020-2023. No dia 4 de Janeiro, pelas 2h15, efectuou-se uma actualização dos óbitos registados em 2023 pelo SICO: 118864 óbitos (um aumento de 50 em relação ao número contabilizado aquando da escrita da versão inicial deste artigo).


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