RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

A sombra

por Rui Araújo // Janeiro 4, 2024


Categoria: Exame

minuto/s restantes


Histórias de marinheiros que bebem e que choram, putas, tubarões, tartarugas, peixes-voadores com fartura, e solidão.

Diário das desventuras no mar a Norte de parte alguma de um tipo a contas com o Diabo. E a morte.


5 DE JANEIRO

Largamos cabos do Mindelo, ilha de São Vicente. Cabo Verde. São duas da tarde. O mar está bravo. O calor pesado e húmido é insuportável. Fico acordado até ao alvorecer.

(Foto: Rui Araújo)

6 DE JANEIRO

Às oito da manhã, avistamos a Brava. Rumamos em direcção a Furna, porto e aldeia piscatória.

Às nove em ponto atracamos. O mestre Luís Laje oferece moreia e cavala-preta aos ilhéus que nos esperam no cais.

Nova Sintra fica mil e tal curvas mais acima — é a principal vila da ilha, tem vegetação e um clima frio. Falo com o padeiro — pão, só da parte da tarde. Tomamos um café de frasco numa casa que também serve de estabelecimento comercial. O mestre e eu encontramos um velhote que não vai para o mar há dois meses por causa do mau tempo. Os botes de três metros (que mais parecem os dóris de antanho da pesca do bacalhau) não permitem devaneios marítimos.

— Vivem da fome… — diz Luís.

Estranhamente ou talvez não, há por estas bandas muitas crianças.

— É fazer filhos e deixá-los de pé na tchon. Ao Deus dará…

É a realidade.

— Há dois anos, cinco moças, que tinham entre treze e catorze anos, apostaram qual delas engravidava primeiro. Acabaram por ficar todas prenhas ao mesmo tempo… — conta um pescador.

Abandonamos a ilha às duas. A nossa «maré» fica a umas 250 milhas a Sul. O tempo continua incerto. Força 6, pelo menos, vagas de três a quatro metros.

7 DE JANEIRO

Estou sentado no passadiço, de costas para a porta que dá acesso à casa do leme. Os peixes-voadores acompanham o Intrujão. Voam 30 a 100 metros, mesmo por cima das ondas, antes de mergulharem nas cristas das vagas.

O vento continua a soprar de nordeste. Largada de palangre de superfície: 44 milhas (uns 80 quilómetros) de artes compostas por balizas emissoras, dezenas de bóias e milhares de anzóis de cavala congelada, que teremos de recuperar com o peixe que aparecer: espadarte, atum, serra, blue marlin e tubarão, sobretudo tubarão, que será exportado para a Galiza (e daí enviado para a Ásia).

Está a anoitecer, os peixes-voadores desapareceram, mas avisto um pássaro negro, lindo.

— É um painho, um stormy petrel! À popa, aparecem muitos. Têm pulgas que parecem “chatos” e cheiram mal p’a caraças — explica-me o mestre.

— Os painhos, de noite, com o barco iluminado, encandeiam-se e caem no convés — diz um pescador.

Não caiu nenhum.

— E cagarraz? — quero saber.

Cagarraz é um mergulhão, uma ave marinha.

— Hoje, cá ten — responde o ancião em crioulo, a língua franca em Cabo Verde. «Hoje, não há.» Português, a língua oficial, é só às vezes.

Lat. 11.01.587 N. Long. 23.18.510 W. Às 21h00, paramos os motores. A faina só recomeçará às 4h30: recuperar quarenta e quatro milhas de linha com dois mil e quinhentos anzóis.

O jantar é atum com feijão-frade. O chefe José é excelente — e cozinhar nestas condições requer perícia. O espaço é exíguo, o movimento do barco permanente e o calor sempre intenso. Depois, vamos à pesca da lula. E o cozinheiro é o melhor apanhador. Eu apanho só quatro — das médias. As lulas são castanhas, mas mudam progressivamente de cor, até ficarem brancas, depois de caírem no convés.

8 DE JANEIRO

Desperto em sobressalto.

— Levanta, levanta! Dentro dessa cabeça só tens merda. É uma cabeça de merda com cabelo por fora — grita o mestre a um pescador mais lento.

No parque de pesca, os homens matam e prepararam o peixe. O tubarão é «anestesiado» com umas pauladas na cabeça, cortam-lhe a cauda (que é perigosa), decepam-no. Depois, espetam-lhe uma vara de metal na espinha e retiram as alhetas. O resto é atirado borda fora. Mata-se um animal com meia tonelada ou mais para aproveitar 30 de quilos de alhetas…

Os peixes-voadores continuam a acompanhar-nos. Acabamos por içar uma tartaruga de 300 quilos, ainda viva. Enrolou-se na linha e por lá ficou.

10h30.

A tartaruga vai morrer a bordo. Tem um sem número de fios enrolados em torno da cabeça e de uma barbatana. Pedi para os cortarem. Mendonça e Magrás (alcunha do marinheiro mais magro) respondem-me que não podem — são ordens do mestre. «A linha não se desperdiça.» De cabeça para o ar, a tartaruga «chora». É um pranto pungente.

Refugio-me na cozinha. Ti John insiste que é necessário ter cuidado com «o mar, o fogo e as mulheres» — a propósito de uma panela sem tampa que o ia queimando. Esqueceu o mais perigoso: a terra. E a terra, para quem está no mar é frequentemente sempre sinónimo de desastre.

13h20.

A recuperação do aparelho é cadenciada pelos berros do mestre e os pachorrentos oito nós do Intrujão. Uma ou duas toneladas de peixe seria um resultado óptimo, mas até agora só apanhámos quatrocentos quilos. Os dias e as noites, aqui, sucedem-se ao ritmo da faina. Somos capazes de ir mais para Sul…

14h00.

Os homens estão no convés a cortar barriga de tubarão-martelo. As tiras são, seguidamente, colocadas num alguidar com sal. Serão vendidas pela tripulação. Tonton diz-me que tenho direito à minha parte.

— Dá-te para três putas na Achada de Santo António.

Pois.

9 DE JANEIRO

Não consigo pregar olho com o calor, humidade e o estado do mar. Mau tempo no Atlântico Norte. Primeiro, as pernas e os pés travam o movimento de estibordo para bombordo. Depois, agarro a aresta da cama (que se resume a um colchão gasto colocado em cima de pires, cinzeiros, canetas, pilhas, cadernos, latas, etc.). Depois, agarro o rebordo da cama para o corpo não deslizar para trás. É toda a noite assim, só adormeço quando o Sol começa a despontar no horizonte.

Esta manhã, as capturas não são famosas: sete tubarões e três espadartes. E mais uma tartaruga…

13h00.

Avistamos e falamos com o capitão galego de um arrastão britânico. O navio começa por ir buscar tripulantes a Montevideu. Depois, ruma às Malvinas onde deverá pescar lula durante seis meses. Só daqui até Montevideu é um mês de mar…

O mundo da pesca é árduo. E, aqui, é impossível mentir aos outros e, sobretudo, a nós próprios. Como todos têm uma alcunha a bordo, atribuem-me uma: Ruy Blas. Tenho de voltar a reler Victor Hugo…

 — Era um homem porreiro! — adianta Tonton.

Era? Mas acabou, decididamente, mal. Era esperto, eloquente e romântico (apaixonou-se pela rainha de Espanha) e suicidou-se. Seja como for, creio que à falta de querer integrar-me fui adoptado por todos. Embora a maioria não entenda por que estou aqui. Para estes homens não faz sentido alguém ir para o mar sem ser obrigado. Quem diz que não fui?

17h50.

José da Paz prepara um refogado. Lá fora, o mar está cada vez mais bravo.

 — Peixe frito, tinto, jeropiga! — grita um pescador, meio a cantarolar, antes de deitar a mão ao rabo de outro e de levar um murro.

Desatamos a rir.

Malulula aparece com uma garrafa de refrigerante e oferece-me uma rolha cheia de grogue de Santo Antão — o melhor.

10 DE JANEIRO

Mil setecentos e cinquenta anzóis para capturar apenas um peixe-espada de 43 quilos, um tubarão-limão (ou Costa-d’África) e uma tartaruga.

— Peixe no chicote, é fartura ou capote… — diz o mestre.

É capote. Porque no primeiro anzol recuperado apanhámos o peixe-espada e a seguir praticamente mais nada.

(Foto: Rui Araújo)

Passamos a noite a capear. No radar aparece um eco durante a minha longa noite de vigia. É provavelmente o navio russo que já entrou uma vez no canal 16. E há também alguém a dizer coisas incompreensíveis até o mandarmos calar, delicadamente.

— Shut up, philippino monkey…

Troco dois dedos de conversa com o mestre sobre a pesca. Damo-nos bem. É um tipo ainda mais radical do que eu. Um dia, quando era oficial, deu um murro a um almirante. A partir daí não tinha futuro na Marinha de Guerra, enveredou pela faina da pesca.

O azul-escuro do oceano contrasta com a espuma alva das cristas. Vagas de seis metros. Estou sentado no convés, de costas para a proa. Foi até hoje o dia que mais me custou. E agora, que está a anoitecer, ainda é pior. Tenho saudades das pessoas que amo. Das coisas, não. As poucas que contam estão, aqui, comigo: cinco livros sobre o mar com histórias de tipos amaldiçoados ou condenados como Jack London, Ernest Hemingway, Aquilino Ribeiro, Camilo José Cela e Josep Pla. Eu sou apenas um tipo só, mas começo a descobrir a sombra que me acompanha e na qual não me reconhecia.

Aparecem quatro pescadores na cozinha.

— Tem de saber a história do Mendonça — grita um, a rir.

— Mendonça, puxà besta! — diz outro.

A história de Mendonça é simples.

— Mendonça vinha do mar. Naquele tempo, não tinha mulher. Vinha com aquela graça de foder. Tinha uma besta (mula) agarrada ao pé da casa. E todas as vezes que vinha do mar ia foder a besta. Aconteceu que a bestinha acostumou muito, acabava de ver o Mendonça e voltava logo o rabo para o Mendonça foder. A dada altura, a bestinha foi vendida a alguém de Santo Antão. Passado muito tempo, o Mendonça foi a Santo Antão. Foi para terra passear. A tal bestinha, que ele andava a puxar, reconheceu logo o Mendonça e meteu-se a jeito… — conta Tonton.

— É verdade, Mendonça? — pergunto ao interessado.

— É verdade, sim.

— E Mendonça já não reconhecia ela… — acrescenta o cozinheiro.

— A bestinha gostava dele — diz outro.

O Mendonça é um sortudo.

Ti John, o motorista, está sentado ao meu lado, pensativo. Lá fora, é a penumbra. A vigia de bombordo é um buraco negro. Não tenho fome. Hoje, bebi chá e comi dois ovos estrelados.

Mendonça regressa com um álbum de fotografias.

— Pode ver. Ten lá mulher, filhos e…

— E bestinha — adianto com um sorriso cúmplice.

E de facto há uma foto com a mula querida ao lado de umas ruínas. Como a vida é fácil…

11 DE JANEIRO

11h14.

Tenho uma profunda admiração por estes homens rijos de corpo e alma, como diria Torga. Estou contente por estar no mar. Sinto-me tranquilo, em paz. Tenho o corpo todo partido, mas é suportável. Tenho sorte de não enjoar apesar de nunca ter apanhado mar assim.

A tripulação está a meter o peixe no túnel de congelação e a lavar o parque de pesca. Enumero, como um aluno bem comportado: o Intrujão pesca tubarão azul ou tintureira; o Costa-d’África; o tubarão de pontas negras ou jaquetão; o tubarão-tigre; espadarte; atum; blue marlin ou peixe-agulha azul. O espadarte é o que tem maior valor comercial (50 euro/quilo), seguido do atum (35 euro/quilo) e do tubarão (entre 5 e 10 euro/quilo e alhetas a 20/25 euro/quilo). O tubarão azul predomina. É tudo exportado para a Europa (e posteriormente para a Ásia e o Médio Oriente), mas os dois peixes com valor comercial capturados em Cabo Verde são o espadarte (espadim azul, aliás Xiphias gladius), e o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvieri).

Estou sozinho na cozinha — as moscas não contam. Ponho-me a ler Love of Life, de Jack London. O mestre surge pouco depois.

— Se não tivesse o espírito que tenho, metia-me nos copos ou dava um tiro nos cornos… — diz. 

Não comento. É a única questão filosófica importante, já dizia Albert Camus.

12 DE JANEIRO

Ontem à noite, no refeitório, Mendonça quis dar-me a morada para lhe enviar uma cópia da prosa.

Malulula recusou.

— Porquê?

— Não sei escrever.

— Queres aprender a ler e escrever?

Malulula acenou que sim e riu-se. Um sorriso é sempre dúbio. Tem 40 anos. Perdeu a mãe quando ainda era criança. O pai não o mandou para a escola. Dei-lhe de imediato 15 páginas de exercícios (escrever as letras a, b, c, d…). A dignidade de um homem começa pela literacia…

23 tubarões. 

No mar, não há dia do Senhor. Só jornadas de faina que se sucedem e se assemelham. Dormir, comer, pescar, dormir, etc. As únicas pausas permitidas são a pesca da lula.

16h00.

Rumo 340. Hoje, apanhámos um tubarão que tinha a barriga cheia de crias. Foram deitadas ao mar. Parece que, por vezes, se comem umas às outras dentro do próprio ventre da mãe. E um pescador conta-me que alguns tubarões chegam a devorar a mãe por dentro (quando não os consegue expelir).

É a primeira vez em muitos anos que não tenho os pesadelos da «arma apontada à cabeça» — recordações das guerras que vivi (Timor, Bósnia, Zaire, Ruanda, Líbia) e das outras. As minhas. Mas continuo a ter dificuldade em adormecer. Mato o tempo a escrever. A comunicação, aqui, é escassa. No mar fala-se pouco. Os pescadores falam pouco. E alguns nem sequer Português falam. A língua franca é o crioulo — ou os crioulos, porque cada ilha tem o seu dialecto.

03h56.

«Aqui, confundimos espaço e tempo, contamos as distâncias em dias. Aceitei o risco de estar preso na minha prisão, no único espaço de liberdade – o mar. Aceitei o sal nos olhos e nos lábios, os ventos de nordeste e as noites de solidão (organizada). Aqui, não há nada para ganhar, não é preciso provar nada a ninguém, não é preciso derrotar ninguém. Limito-me a ser prudente, púdico e discreto. É essencial um tipo ser assim. E eu gosto do mar e gosto de estar no mar. A bordo, fala-se muito pouco. Evitam-se as palavras inúteis. Só se diz aquilo que é preciso, mais nada.» (palavras de François Deniau).

O aparelho está sempre a quebrar. E uma ruptura representa horas perdidas a procurar balizas emissoras que desfalecem porque as baterias não estão carregadas.

(Foto: Rui Araújo)

14 DE JANEIRO

Ontem, dei a Malulula a primeira aula a sério: as vogais. Ele já consegue escrever «pai», «meu», «teu», «um»… E rabiscou o nome pela primeira vez na vida. Só tem 4 letras, mas ele ficou deveras radiante.

O mestre Luís Laje (Foto: Rui Araújo)

Tonton e Ti John, os motoristas, não arredam pé da casa do leme durante o meu quarto. Entre muitos silêncios, o primeiro pergunta-me o que é um filósofo. E por que razão o homem procura a Verdade, mas, no fim de contas, tudo acaba em ficção.

15 DE JANEIRO

04h30.

O mestre benze-se antes de a pesca começar.

— Acredita em Deus?

— Acredito em mim.

Fico com algumas dúvidas, mas parece que é bom sinal. (1)

Apesar de ser contra-mestre, passo a tarde a cortar barriga de tubarão para isco. É uma experiência. A pele é rija e áspera. Entretanto, fico todo molhado. O parque de pesca é o pior sítio para se estar quando o vento sopra com força.

Os homens estão, neste momento, a retirar do túnel de congelação rápida o peixe apanhado ontem para o depositarem no porão número Um. Dedico-me às paciências. O mestre tenta, sem sucesso.

— Quem tem sorte com o jogo… — insinua, provocador.

— Tem sorte no amor! — respondo.

Lá fora, a companha labuta. Estes homens têm jornadas de 16, 17 horas por dia por 600 euros mensais.

16 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA

06h45.

Ajudo o cook a descascar um balde cheio de batatas. Ti John cantarola uma morna que desconheço, triste.

— São Tomé, tempo de escravos. Os cabo-verdianos iam para lá trabalhar nas roças de cacau — conta o motorista.

A memória da miséria no império com pés de barro é tenaz.

11h20.

O Sol está a rasgar o horizonte. O vento vai soprar com mais intensidade. Perdemos três tubarões (por causa dos anzóis portugueses torcidos) e um atum, só ficou a cabeça.

Malulula confirma a sua disponibilidade para a explicação de português desta noite.

(Foto: Rui Araújo)

18h15.

— Pára! Pára! Pára, pára… — grita alguém desde a popa.

O mestre reduz. Durante o lançamento do aparelho ao mar (balizas emissoras, bóias, anzóis com isco) um anzol arrancou um pedaço de peito ao Luís — um jovem pescador do Calhau. Os anzóis, aqui, têm nove centímetros – aguentam um tubarão de 600 quilos. Um velho chora. Peço a caixa dos primeiros socorros.

Instalo o ferido no passadiço. É urgente efectuar um balanço dos ferimentos: o buracão no peito é o mais grave, tem uns cinco centímetros por dois e meio, com três de profundidade. O anzol levou o que apanhou pela frente. E rasgou-lhe a mão e uma unha. Mando Luís para a casa do leme. Depois de lavar as mãos, limpo a ferida no peito com água oxigenada e Betadine. Tonton vai-me passando algodão e a fita. Tapo o buraco com gaze embebida de Betadine. É o que há — qual antibiótico, pomadas, nem sequer há fita que chegue. Em seguida, trato do resto. O moço aguenta sem pestanejar. Ofereço-lhe um cigarro, aceso. Depois, dou-lhe dois comprimidos para as dores. E peço a Tonton para o ajudar a ir para o beliche. Tenho as mãos cobertas de sangue e de Betadine. Encho um balde, lavo o chão. E desloco-me ao parque de pesca para dar uma palavra ao meu acidentado de estimação.

Luís está deitado. Por detrás da cabeça há uma gravura de Cristo.

— Estás bem acompanhado, Luís — comento.

O pescador sorri e puxa do cigarro.

— Tens cinzeiro? — pergunto.

Ele abre uma caixa de fósforos indonésia e põe os olhos no tecto.

— Dói-me muito a mão…

— A mão não é grave.

É urgente levar o pescador para o hospital. Em Cabo Verde, não há operações SAR (busca e salvamento). Aqui, a sigla que prevalece é: PPP, Praias, Putas e Pedregulhos.

Na Brava e no Fogo – as ilhas mais próximas – a única coisa que há são centros de saúde onde, quando não se morre da doença, morre-se da cura. O estabelecimento hospitalar mais próximo é o de São Vicente. Fica a cento e tal milhas náuticas, duzentos e muitos quilómetros…

18h36.

Regresso antecipado ao ponto de partida. Previsão para a chegada: amanhã de manhã.

Horas de jantar: tubarão anequim de 10 quilos (os anequins grandes não são comestíveis e as outras espécies sabem a mijo, mas os habitantes da ilha de Santiago comem tudo o que vem à rede) com batatas.

A companha salga a barriga de tubarão que não presta para isco (demasiado macia). Sempre dá mais uns escudos para as putas da Achada de Santo António (Cidade da Praia) e o grogue de Santo Antão. O grogue é a aguardente de cana-de-açúcar produzida, essencialmente, em Santo Antão e na Cidade Velha, ilha de Santiago. O problema aqui, é a origem. Há anos, produziam grogue com o ácido das baterias, e não só. É fartar vilanagem…

22h00.

Estou de quarto. Navegamos a uns 10, 11 nós. O mar está bravo. A proa embate violentamente nas vagas — que não consigo descortinar, apesar de ter mandado apagar as luzes do parque de pesca que me encandeavam. Pela frente, tenho mais sete horas de quarto. E ainda estamos a 113,5 milhas do hospital…

01h45.

O mar está pior. Não estamos longe de uma força 9 Beaufort — o que corresponde a ventos da ordem dos 75-88 quilómetros/hora, ondulação entre sete e 10 metros. Tempestade!

As vagas desabam sobre o Intrujão. Com vento de proa e sem visibilidade, não consigo descortinar as mais altas, sobretudo quando se sucedem a curta distância. Apanho com duas das valentes. Depois de subir, violentamente, com a primeira, apanho com a seguinte. É a pior. A proa penetra dentro de água.

Os pescadores em pânico invadem o parque de pesca, uns de cuecas, outros nus, e acendem o néon. E eu ainda vejo menos – o barco não dispõe de limpa pára-brisas. Foram ejectados. Não posso reduzir a marcha. Luís tem de ser socorrido o mais rapidamente possível. Que se lixe o desconforto e o furor das águas. E as rajadas de vento. A vigia é, entretanto, reforçada a meu pedido. Preciso de alguém com a cabeça de fora a dar conta da evolução das vagas para eu poder reagir…

03h00.

Estou exausto.

17 DE JANEIRO

A chegada ao Mindelo, prevista para as 11h34, acaba por só ocorrer às 15h30.

A meio da noite, tive mesmo de abrandar a marcha. A tempestade não permitia navegar a mais de seis ou sete nós.

Esta manhã, «tratei» do ferido (uma aspirina). O mar continua agitado. As rajadas de vento danificaram duas antenas da CV Telecom — e as comunicações por telefone cessaram (demorariam dois dias a reparar o material). Parece que o temporal não poupa o Brasil, Cabo Verde, Angola, etc.

Dou uma mija no passadiço de bombordo antes de ir beber um chá de água tépida.

— Não dormi nada, não conseguia. Muito balanço. O mar estava perigoso — diz Flávio.

— Ninguém dormiu — respondo.

11h30.

Comunicação rádio entre pesqueiros espanhóis refere mau tempo generalizado no Atlântico Norte.

Há tempos, o Sal Rei naufragou entre São Nicolau e Sal. Transportava bidões de metanol, que foram dar à costa de Santiago. Aquela gente pensava que era grogue e bebeu aquilo.

— Morreram alguns e muitos foram parar ao hospital — conta Ti John.

Mendonça completa a história.

— Badio disse pode beber que o homem de terpiche [o produtor de grogue] é a caveira que está no bidão.

É uma noite imprevista em terra. A conversa em torno da mesa é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

— Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

— São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

— Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

— Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

Acabamos por atracar no Mindelo. Luís é, imediatamente, transportado para o hospital. Largamos amarras (os pescadores preferem a expressão “largar cabos”) segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me melhor no mar do que em terra. E não estou aqui a fazer nada.

Malulula morreu no próprio dia da chegada. Pediu-me dinheiro emprestado, meteu-se nos copos e o carro em que seguia capotou. Mas valeu a pena, independentemente do resultado. Tentei. É isso o mais importante. E a maior vitória será sempre sobre nós próprios…

(1) Alusão propositada a Pascal (Les Pensées).

Texto publicado originalmente na revista Grande Reportagem de Abril de 2002 e, posteriormente em 2016 na revista Luzes.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.