Histórias de marinheiros que bebem e que choram, putas, tubarões, tartarugas, peixes-voadores com fartura, e solidão.
Diário das desventuras no mar a Norte de parte alguma de um tipo a contas com o Diabo. E a morte.
5 DE JANEIRO
Largamos cabos do Mindelo, ilha de São Vicente. Cabo Verde. São duas da tarde. O mar está bravo. O calor pesado e húmido é insuportável. Fico acordado até ao alvorecer.
6 DE JANEIRO
Às oito da manhã, avistamos a Brava. Rumamos em direcção a Furna, porto e aldeia piscatória.
Às nove em ponto atracamos. O mestre Luís Laje oferece moreia e cavala-preta aos ilhéus que nos esperam no cais.
Nova Sintra fica mil e tal curvas mais acima — é a principal vila da ilha, tem vegetação e um clima frio. Falo com o padeiro — pão, só da parte da tarde. Tomamos um café de frasco numa casa que também serve de estabelecimento comercial. O mestre e eu encontramos um velhote que não vai para o mar há dois meses por causa do mau tempo. Os botes de três metros (que mais parecem os dóris de antanho da pesca do bacalhau) não permitem devaneios marítimos.
— Vivem da fome… — diz Luís.
Estranhamente ou talvez não, há por estas bandas muitas crianças.
— É fazer filhos e deixá-los de pé na tchon. Ao Deus dará…
É a realidade.
— Há dois anos, cinco moças, que tinham entre treze e catorze anos, apostaram qual delas engravidava primeiro. Acabaram por ficar todas prenhas ao mesmo tempo… — conta um pescador.
Abandonamos a ilha às duas. A nossa «maré» fica a umas 250 milhas a Sul. O tempo continua incerto. Força 6, pelo menos, vagas de três a quatro metros.
7 DE JANEIRO
Estou sentado no passadiço, de costas para a porta que dá acesso à casa do leme. Os peixes-voadores acompanham o Intrujão. Voam 30 a 100 metros, mesmo por cima das ondas, antes de mergulharem nas cristas das vagas.
O vento continua a soprar de nordeste. Largada de palangre de superfície: 44 milhas (uns 80 quilómetros) de artes compostas por balizas emissoras, dezenas de bóias e milhares de anzóis de cavala congelada, que teremos de recuperar com o peixe que aparecer: espadarte, atum, serra, blue marlin e tubarão, sobretudo tubarão, que será exportado para a Galiza (e daí enviado para a Ásia).
Está a anoitecer, os peixes-voadores desapareceram, mas avisto um pássaro negro, lindo.
— É um painho, um stormy petrel! À popa, aparecem muitos. Têm pulgas que parecem “chatos” e cheiram mal p’a caraças — explica-me o mestre.
— Os painhos, de noite, com o barco iluminado, encandeiam-se e caem no convés — diz um pescador.
Não caiu nenhum.
— E cagarraz? — quero saber.
Cagarraz é um mergulhão, uma ave marinha.
— Hoje, cá ten — responde o ancião em crioulo, a língua franca em Cabo Verde. «Hoje, não há.» Português, a língua oficial, é só às vezes.
Lat. 11.01.587 N. Long. 23.18.510 W. Às 21h00, paramos os motores. A faina só recomeçará às 4h30: recuperar quarenta e quatro milhas de linha com dois mil e quinhentos anzóis.
O jantar é atum com feijão-frade. O chefe José é excelente — e cozinhar nestas condições requer perícia. O espaço é exíguo, o movimento do barco permanente e o calor sempre intenso. Depois, vamos à pesca da lula. E o cozinheiro é o melhor apanhador. Eu apanho só quatro — das médias. As lulas são castanhas, mas mudam progressivamente de cor, até ficarem brancas, depois de caírem no convés.
8 DE JANEIRO
Desperto em sobressalto.
— Levanta, levanta! Dentro dessa cabeça só tens merda. É uma cabeça de merda com cabelo por fora — grita o mestre a um pescador mais lento.
No parque de pesca, os homens matam e prepararam o peixe. O tubarão é «anestesiado» com umas pauladas na cabeça, cortam-lhe a cauda (que é perigosa), decepam-no. Depois, espetam-lhe uma vara de metal na espinha e retiram as alhetas. O resto é atirado borda fora. Mata-se um animal com meia tonelada ou mais para aproveitar 30 de quilos de alhetas…
Os peixes-voadores continuam a acompanhar-nos. Acabamos por içar uma tartaruga de 300 quilos, ainda viva. Enrolou-se na linha e por lá ficou.
10h30.
A tartaruga vai morrer a bordo. Tem um sem número de fios enrolados em torno da cabeça e de uma barbatana. Pedi para os cortarem. Mendonça e Magrás (alcunha do marinheiro mais magro) respondem-me que não podem — são ordens do mestre. «A linha não se desperdiça.» De cabeça para o ar, a tartaruga «chora». É um pranto pungente.
Refugio-me na cozinha. Ti John insiste que é necessário ter cuidado com «o mar, o fogo e as mulheres» — a propósito de uma panela sem tampa que o ia queimando. Esqueceu o mais perigoso: a terra. E a terra, para quem está no mar é frequentemente sempre sinónimo de desastre.
13h20.
A recuperação do aparelho é cadenciada pelos berros do mestre e os pachorrentos oito nós do Intrujão. Uma ou duas toneladas de peixe seria um resultado óptimo, mas até agora só apanhámos quatrocentos quilos. Os dias e as noites, aqui, sucedem-se ao ritmo da faina. Somos capazes de ir mais para Sul…
14h00.
Os homens estão no convés a cortar barriga de tubarão-martelo. As tiras são, seguidamente, colocadas num alguidar com sal. Serão vendidas pela tripulação. Tonton diz-me que tenho direito à minha parte.
— Dá-te para três putas na Achada de Santo António.
Pois.
9 DE JANEIRO
Não consigo pregar olho com o calor, humidade e o estado do mar. Mau tempo no Atlântico Norte. Primeiro, as pernas e os pés travam o movimento de estibordo para bombordo. Depois, agarro a aresta da cama (que se resume a um colchão gasto colocado em cima de pires, cinzeiros, canetas, pilhas, cadernos, latas, etc.). Depois, agarro o rebordo da cama para o corpo não deslizar para trás. É toda a noite assim, só adormeço quando o Sol começa a despontar no horizonte.
Esta manhã, as capturas não são famosas: sete tubarões e três espadartes. E mais uma tartaruga…
13h00.
Avistamos e falamos com o capitão galego de um arrastão britânico. O navio começa por ir buscar tripulantes a Montevideu. Depois, ruma às Malvinas onde deverá pescar lula durante seis meses. Só daqui até Montevideu é um mês de mar…
O mundo da pesca é árduo. E, aqui, é impossível mentir aos outros e, sobretudo, a nós próprios. Como todos têm uma alcunha a bordo, atribuem-me uma: Ruy Blas. Tenho de voltar a reler Victor Hugo…
— Era um homem porreiro! — adianta Tonton.
Era? Mas acabou, decididamente, mal. Era esperto, eloquente e romântico (apaixonou-se pela rainha de Espanha) e suicidou-se. Seja como for, creio que à falta de querer integrar-me fui adoptado por todos. Embora a maioria não entenda por que estou aqui. Para estes homens não faz sentido alguém ir para o mar sem ser obrigado. Quem diz que não fui?
17h50.
José da Paz prepara um refogado. Lá fora, o mar está cada vez mais bravo.
— Peixe frito, tinto, jeropiga! — grita um pescador, meio a cantarolar, antes de deitar a mão ao rabo de outro e de levar um murro.
Desatamos a rir.
Malulula aparece com uma garrafa de refrigerante e oferece-me uma rolha cheia de grogue de Santo Antão — o melhor.
10 DE JANEIRO
Mil setecentos e cinquenta anzóis para capturar apenas um peixe-espada de 43 quilos, um tubarão-limão (ou Costa-d’África) e uma tartaruga.
— Peixe no chicote, é fartura ou capote… — diz o mestre.
É capote. Porque no primeiro anzol recuperado apanhámos o peixe-espada e a seguir praticamente mais nada.
Passamos a noite a capear. No radar aparece um eco durante a minha longa noite de vigia. É provavelmente o navio russo que já entrou uma vez no canal 16. E há também alguém a dizer coisas incompreensíveis até o mandarmos calar, delicadamente.
— Shut up, philippino monkey…
Troco dois dedos de conversa com o mestre sobre a pesca. Damo-nos bem. É um tipo ainda mais radical do que eu. Um dia, quando era oficial, deu um murro a um almirante. A partir daí não tinha futuro na Marinha de Guerra, enveredou pela faina da pesca.
O azul-escuro do oceano contrasta com a espuma alva das cristas. Vagas de seis metros. Estou sentado no convés, de costas para a proa. Foi até hoje o dia que mais me custou. E agora, que está a anoitecer, ainda é pior. Tenho saudades das pessoas que amo. Das coisas, não. As poucas que contam estão, aqui, comigo: cinco livros sobre o mar com histórias de tipos amaldiçoados ou condenados como Jack London, Ernest Hemingway, Aquilino Ribeiro, Camilo José Cela e Josep Pla. Eu sou apenas um tipo só, mas começo a descobrir a sombra que me acompanha e na qual não me reconhecia.
Aparecem quatro pescadores na cozinha.
— Tem de saber a história do Mendonça — grita um, a rir.
— Mendonça, puxà besta! — diz outro.
A história de Mendonça é simples.
— Mendonça vinha do mar. Naquele tempo, não tinha mulher. Vinha com aquela graça de foder. Tinha uma besta (mula) agarrada ao pé da casa. E todas as vezes que vinha do mar ia foder a besta. Aconteceu que a bestinha acostumou muito, acabava de ver o Mendonça e voltava logo o rabo para o Mendonça foder. A dada altura, a bestinha foi vendida a alguém de Santo Antão. Passado muito tempo, o Mendonça foi a Santo Antão. Foi para terra passear. A tal bestinha, que ele andava a puxar, reconheceu logo o Mendonça e meteu-se a jeito… — conta Tonton.
— É verdade, Mendonça? — pergunto ao interessado.
— É verdade, sim.
— E Mendonça já não reconhecia ela… — acrescenta o cozinheiro.
— A bestinha gostava dele — diz outro.
O Mendonça é um sortudo.
Ti John, o motorista, está sentado ao meu lado, pensativo. Lá fora, é a penumbra. A vigia de bombordo é um buraco negro. Não tenho fome. Hoje, bebi chá e comi dois ovos estrelados.
Mendonça regressa com um álbum de fotografias.
— Pode ver. Ten lá mulher, filhos e…
— E bestinha — adianto com um sorriso cúmplice.
E de facto há uma foto com a mula querida ao lado de umas ruínas. Como a vida é fácil…
11 DE JANEIRO
11h14.
Tenho uma profunda admiração por estes homens rijos de corpo e alma, como diria Torga. Estou contente por estar no mar. Sinto-me tranquilo, em paz. Tenho o corpo todo partido, mas é suportável. Tenho sorte de não enjoar apesar de nunca ter apanhado mar assim.
A tripulação está a meter o peixe no túnel de congelação e a lavar o parque de pesca. Enumero, como um aluno bem comportado: o Intrujão pesca tubarão azul ou tintureira; o Costa-d’África; o tubarão de pontas negras ou jaquetão; o tubarão-tigre; espadarte; atum; blue marlin ou peixe-agulha azul. O espadarte é o que tem maior valor comercial (50 euro/quilo), seguido do atum (35 euro/quilo) e do tubarão (entre 5 e 10 euro/quilo e alhetas a 20/25 euro/quilo). O tubarão azul predomina. É tudo exportado para a Europa (e posteriormente para a Ásia e o Médio Oriente), mas os dois peixes com valor comercial capturados em Cabo Verde são o espadarte (espadim azul, aliás Xiphias gladius), e o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvieri).
Estou sozinho na cozinha — as moscas não contam. Ponho-me a ler Love of Life, de Jack London. O mestre surge pouco depois.
— Se não tivesse o espírito que tenho, metia-me nos copos ou dava um tiro nos cornos… — diz.
Não comento. É a única questão filosófica importante, já dizia Albert Camus.
12 DE JANEIRO
Ontem à noite, no refeitório, Mendonça quis dar-me a morada para lhe enviar uma cópia da prosa.
Malulula recusou.
— Porquê?
— Não sei escrever.
— Queres aprender a ler e escrever?
Malulula acenou que sim e riu-se. Um sorriso é sempre dúbio. Tem 40 anos. Perdeu a mãe quando ainda era criança. O pai não o mandou para a escola. Dei-lhe de imediato 15 páginas de exercícios (escrever as letras a, b, c, d…). A dignidade de um homem começa pela literacia…
23 tubarões.
No mar, não há dia do Senhor. Só jornadas de faina que se sucedem e se assemelham. Dormir, comer, pescar, dormir, etc. As únicas pausas permitidas são a pesca da lula.
16h00.
Rumo 340. Hoje, apanhámos um tubarão que tinha a barriga cheia de crias. Foram deitadas ao mar. Parece que, por vezes, se comem umas às outras dentro do próprio ventre da mãe. E um pescador conta-me que alguns tubarões chegam a devorar a mãe por dentro (quando não os consegue expelir).
É a primeira vez em muitos anos que não tenho os pesadelos da «arma apontada à cabeça» — recordações das guerras que vivi (Timor, Bósnia, Zaire, Ruanda, Líbia) e das outras. As minhas. Mas continuo a ter dificuldade em adormecer. Mato o tempo a escrever. A comunicação, aqui, é escassa. No mar fala-se pouco. Os pescadores falam pouco. E alguns nem sequer Português falam. A língua franca é o crioulo — ou os crioulos, porque cada ilha tem o seu dialecto.
03h56.
«Aqui, confundimos espaço e tempo, contamos as distâncias em dias. Aceitei o risco de estar preso na minha prisão, no único espaço de liberdade – o mar. Aceitei o sal nos olhos e nos lábios, os ventos de nordeste e as noites de solidão (organizada). Aqui, não há nada para ganhar, não é preciso provar nada a ninguém, não é preciso derrotar ninguém. Limito-me a ser prudente, púdico e discreto. É essencial um tipo ser assim. E eu gosto do mar e gosto de estar no mar. A bordo, fala-se muito pouco. Evitam-se as palavras inúteis. Só se diz aquilo que é preciso, mais nada.» (palavras de François Deniau).
O aparelho está sempre a quebrar. E uma ruptura representa horas perdidas a procurar balizas emissoras que desfalecem porque as baterias não estão carregadas.
14 DE JANEIRO
Ontem, dei a Malulula a primeira aula a sério: as vogais. Ele já consegue escrever «pai», «meu», «teu», «um»… E rabiscou o nome pela primeira vez na vida. Só tem 4 letras, mas ele ficou deveras radiante.
Tonton e Ti John, os motoristas, não arredam pé da casa do leme durante o meu quarto. Entre muitos silêncios, o primeiro pergunta-me o que é um filósofo. E por que razão o homem procura a Verdade, mas, no fim de contas, tudo acaba em ficção.
15 DE JANEIRO
04h30.
O mestre benze-se antes de a pesca começar.
— Acredita em Deus?
— Acredito em mim.
Fico com algumas dúvidas, mas parece que é bom sinal. (1)
Apesar de ser contra-mestre, passo a tarde a cortar barriga de tubarão para isco. É uma experiência. A pele é rija e áspera. Entretanto, fico todo molhado. O parque de pesca é o pior sítio para se estar quando o vento sopra com força.
Os homens estão, neste momento, a retirar do túnel de congelação rápida o peixe apanhado ontem para o depositarem no porão número Um. Dedico-me às paciências. O mestre tenta, sem sucesso.
— Quem tem sorte com o jogo… — insinua, provocador.
— Tem sorte no amor! — respondo.
Lá fora, a companha labuta. Estes homens têm jornadas de 16, 17 horas por dia por 600 euros mensais.
16 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA
06h45.
Ajudo o cook a descascar um balde cheio de batatas. Ti John cantarola uma morna que desconheço, triste.
— São Tomé, tempo de escravos. Os cabo-verdianos iam para lá trabalhar nas roças de cacau — conta o motorista.
A memória da miséria no império com pés de barro é tenaz.
11h20.
O Sol está a rasgar o horizonte. O vento vai soprar com mais intensidade. Perdemos três tubarões (por causa dos anzóis portugueses torcidos) e um atum, só ficou a cabeça.
Malulula confirma a sua disponibilidade para a explicação de português desta noite.
18h15.
— Pára! Pára! Pára, pára… — grita alguém desde a popa.
O mestre reduz. Durante o lançamento do aparelho ao mar (balizas emissoras, bóias, anzóis com isco) um anzol arrancou um pedaço de peito ao Luís — um jovem pescador do Calhau. Os anzóis, aqui, têm nove centímetros – aguentam um tubarão de 600 quilos. Um velho chora. Peço a caixa dos primeiros socorros.
Instalo o ferido no passadiço. É urgente efectuar um balanço dos ferimentos: o buracão no peito é o mais grave, tem uns cinco centímetros por dois e meio, com três de profundidade. O anzol levou o que apanhou pela frente. E rasgou-lhe a mão e uma unha. Mando Luís para a casa do leme. Depois de lavar as mãos, limpo a ferida no peito com água oxigenada e Betadine. Tonton vai-me passando algodão e a fita. Tapo o buraco com gaze embebida de Betadine. É o que há — qual antibiótico, pomadas, nem sequer há fita que chegue. Em seguida, trato do resto. O moço aguenta sem pestanejar. Ofereço-lhe um cigarro, aceso. Depois, dou-lhe dois comprimidos para as dores. E peço a Tonton para o ajudar a ir para o beliche. Tenho as mãos cobertas de sangue e de Betadine. Encho um balde, lavo o chão. E desloco-me ao parque de pesca para dar uma palavra ao meu acidentado de estimação.
Luís está deitado. Por detrás da cabeça há uma gravura de Cristo.
— Estás bem acompanhado, Luís — comento.
O pescador sorri e puxa do cigarro.
— Tens cinzeiro? — pergunto.
Ele abre uma caixa de fósforos indonésia e põe os olhos no tecto.
— Dói-me muito a mão…
— A mão não é grave.
É urgente levar o pescador para o hospital. Em Cabo Verde, não há operações SAR (busca e salvamento). Aqui, a sigla que prevalece é: PPP, Praias, Putas e Pedregulhos.
Na Brava e no Fogo – as ilhas mais próximas – a única coisa que há são centros de saúde onde, quando não se morre da doença, morre-se da cura. O estabelecimento hospitalar mais próximo é o de São Vicente. Fica a cento e tal milhas náuticas, duzentos e muitos quilómetros…
18h36.
Regresso antecipado ao ponto de partida. Previsão para a chegada: amanhã de manhã.
Horas de jantar: tubarão anequim de 10 quilos (os anequins grandes não são comestíveis e as outras espécies sabem a mijo, mas os habitantes da ilha de Santiago comem tudo o que vem à rede) com batatas.
A companha salga a barriga de tubarão que não presta para isco (demasiado macia). Sempre dá mais uns escudos para as putas da Achada de Santo António (Cidade da Praia) e o grogue de Santo Antão. O grogue é a aguardente de cana-de-açúcar produzida, essencialmente, em Santo Antão e na Cidade Velha, ilha de Santiago. O problema aqui, é a origem. Há anos, produziam grogue com o ácido das baterias, e não só. É fartar vilanagem…
22h00.
Estou de quarto. Navegamos a uns 10, 11 nós. O mar está bravo. A proa embate violentamente nas vagas — que não consigo descortinar, apesar de ter mandado apagar as luzes do parque de pesca que me encandeavam. Pela frente, tenho mais sete horas de quarto. E ainda estamos a 113,5 milhas do hospital…
01h45.
O mar está pior. Não estamos longe de uma força 9 Beaufort — o que corresponde a ventos da ordem dos 75-88 quilómetros/hora, ondulação entre sete e 10 metros. Tempestade!
As vagas desabam sobre o Intrujão. Com vento de proa e sem visibilidade, não consigo descortinar as mais altas, sobretudo quando se sucedem a curta distância. Apanho com duas das valentes. Depois de subir, violentamente, com a primeira, apanho com a seguinte. É a pior. A proa penetra dentro de água.
Os pescadores em pânico invadem o parque de pesca, uns de cuecas, outros nus, e acendem o néon. E eu ainda vejo menos – o barco não dispõe de limpa pára-brisas. Foram ejectados. Não posso reduzir a marcha. Luís tem de ser socorrido o mais rapidamente possível. Que se lixe o desconforto e o furor das águas. E as rajadas de vento. A vigia é, entretanto, reforçada a meu pedido. Preciso de alguém com a cabeça de fora a dar conta da evolução das vagas para eu poder reagir…
03h00.
Estou exausto.
17 DE JANEIRO
A chegada ao Mindelo, prevista para as 11h34, acaba por só ocorrer às 15h30.
A meio da noite, tive mesmo de abrandar a marcha. A tempestade não permitia navegar a mais de seis ou sete nós.
Esta manhã, «tratei» do ferido (uma aspirina). O mar continua agitado. As rajadas de vento danificaram duas antenas da CV Telecom — e as comunicações por telefone cessaram (demorariam dois dias a reparar o material). Parece que o temporal não poupa o Brasil, Cabo Verde, Angola, etc.
Dou uma mija no passadiço de bombordo antes de ir beber um chá de água tépida.
— Não dormi nada, não conseguia. Muito balanço. O mar estava perigoso — diz Flávio.
— Ninguém dormiu — respondo.
11h30.
Comunicação rádio entre pesqueiros espanhóis refere mau tempo generalizado no Atlântico Norte.
Há tempos, o Sal Rei naufragou entre São Nicolau e Sal. Transportava bidões de metanol, que foram dar à costa de Santiago. Aquela gente pensava que era grogue e bebeu aquilo.
— Morreram alguns e muitos foram parar ao hospital — conta Ti John.
Mendonça completa a história.
— Badio disse pode beber que o homem de terpiche [o produtor de grogue] é a caveira que está no bidão.
É uma noite imprevista em terra. A conversa em torno da mesa é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.
— Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.
— São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.
Ti John coça o pescoço, vagarosamente.
— Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.
— Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.
Acabamos por atracar no Mindelo. Luís é, imediatamente, transportado para o hospital. Largamos amarras (os pescadores preferem a expressão “largar cabos”) segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me melhor no mar do que em terra. E não estou aqui a fazer nada.
Malulula morreu no próprio dia da chegada. Pediu-me dinheiro emprestado, meteu-se nos copos e o carro em que seguia capotou. Mas valeu a pena, independentemente do resultado. Tentei. É isso o mais importante. E a maior vitória será sempre sobre nós próprios…
(1) Alusão propositada a Pascal (Les Pensées).
Texto publicado originalmente na revista Grande Reportagem de Abril de 2002 e, posteriormente em 2016 na revista Luzes.
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