A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”
Victor Hugo
NOVENTA E TRÊS (1874)
Aqui de onde estamos quem é que nos vê?
No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.” O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].
Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.
Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.
Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].
E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.
“O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.
“Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.
“E como é que arranjaste isso?”
“Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.”
“Epá.”
Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.
Não se fala das desgraças.
Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.
Há muitas alturas em que a distância dói.
Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.
Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.
Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.
“Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?”
“Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.
A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].
A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.
“Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.
“Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.”
“Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.
Mariazinha encolhe os ombros.
“Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.”
“Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?”
Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:
“Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.”
De sobrancelhas erguidas ou franzidas em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.
“Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”
O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,
“Parece um filme americano”.
E a Mariazinha, também num sussurro,
“Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]”
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.
[2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.
[3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.
[4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?
[5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.
[6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.
[7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.
[8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.
[9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.
A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.
[10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.
[11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.
Somos cultos.
E vocês têm que pagar para seguir em frente.
[12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.
[13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!
[14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.
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