Existem milhares de entidades da Administração Pública, mas só 33 decidiram, em pelo menos um ano, gastar dinheiro público para oferecer bolo-rei em época de festividades natalícias. O destino da iguaria seguiu para as mais distintas bocas, desde comunidades mais desfavorecidas até funcionários públicos, sem que se entenda os critérios para aquisição e os limites de gastos. Desde 2008, o PÁGINA UM descobriu no Portal Base um total de 92 contratos de aquisição especificamente de bolo-rei, em grandes quantidades, para ofertas, sobretudo feitas por autarquias. A ‘fava’ fica com os contribuintes: desde 2014, a conta já atinge quase 570 mil euros. Só no ano passado, e pelos dados já disponíveis, gastaram-se mais de 84 mil euros. Bom proveito.
Belém fica ali próximo, na vizinha Lisboa, mas é nas terras de Isaltino Morais, no município de Oeiras, que o bolo-rei é generosamente oferecido… com a ‘fava’ a seguir para os contribuintes, porque sendo eles a pagar, quer gostem ou não da iguaria, só poucos lhe metem o dente. Na verdade, não são assim tão poucos: em Dezembro passado, foram 4.000 bolos comprados ao Pingo Doce por 27.200 euros (sem IVA). No ano anterior, o ‘brinde’ saiu à Pastelaria Vera Cruz de Caxias que vendeu 6.120 bolos-reis à Câmara Municipal de Oeiras por 30.784 euros.
Mas longe está o ‘rei mago’ Isaltino Morais de ser o único a ficar com os louros da bondade à custa do dinheiro dos contribuintes. Numa análise do PÁGINA UM aos contratos inseridos no Portal Base que explicitamente remetam para a aquisição de bolos-reis, encontram-se 33 entidades públicas que decidiram, desde 2008, fazer 92 compras destas iguarias consumidas sobretudo na época natalícia. Quase todas são Câmaras Municipais. Além de outras entidades ligadas a autarquias, como empresas municipais, não se detectou qualquer instituição da Administração Central a comprar bolos-reis.
Por lei, não há qualquer limite nem limitações para a aquisição deste tipo de bens de consumo, mesmo não sendo de primeira necessidade. Ou seja, bastando cumprir os formalismos do Código dos Contratos Públicos em termos de procedimento, os gestores públicos até podem comprar caviar beluga para supostas ofertas.
A lei também não limita os montantes deste tipo de género, que beneficia os políticos que os oferecendo, olhados por quem os recebe como generosos, embora com o dinheiro dos outros, neste caso os contribuintes. Na generalidade dos contratos dos bolos-reis, a aquisição por ajuste directo foi a prática mais habitual.
Só na última década, entre 2014 e 2023, os gastos das entidades públicas em bolo-rei para ofertas totalizaram 569.347 euros. Se se abranger o período com dados na plataforma da contratação pública, a partir de 2008, a factura sobe acima dos 834 mil euros. O ano de maiores gastos foi o de 2020, com 112.700 euros, embora a tendência seja de aumento dos gastos médios. Desde 2020, os bolos-reis para oferta têm custado, em média, cerca de 88 mil euros por ano aos cofres públicos. Não estão aqui incluídos os casos em que esta iguaria integra os famosos cabazes de Natal.
A autarquia de Oeiras é, além daquela que mais gasta – cerca de 278 mil euros desde 2008 e quase 180 mil na última década –, a que já tornou um hábito de entregar o brinde a alguns munícipes e a ‘fava’ aos contribuintes, porque desde 2008 só houve um ano em que não se encontra qualquer contrato de compra de bolos-reis.
O ano de 2010 foi aquele em que a autarquia liderada actualmente por Isaltino Morais mais abriu os cordões à bolsa, gastando 33 mil euros. Mas nos últimos cinco anos também foi pródiga: os gastos estiveram sempre acima dos 19 mil euros em qualquer dos anos. Em 2022 os gastos atingiram os 30.784 euros, enquanto em 2023 ficou a factura em 27.320 euros.
Encontram-se outras duas autarquias com indícios de quererem tornar tradição a oferta de bolos-reis à custa dos contribuintes: Ovar e Vila Pouca de Aguiar adquiriram sempre esta iguaria nos últimos cinco e quatro anos, embora em montantes mais baixos.
Na verdade, Oeiras destaca-se dos demais, até porque importantes municípios como Lisboa, Porto e Sintra não indicam compras deste tipo de produtos na descrição de contratos públicos. Em todo o caso, a ‘vizinha’ Câmara Municipal de Cascais é a segunda entidade que se investiu de ‘rei mago’ e já gastou quase 123 mil euros desde 2008, dos quais um pouco mais de 65 mil na última década.
A terceira autarquia com mais compras de bolo-rei na última década fica no Norte: o município de Baião fez despesas de 58 mil euros nos últimos 10 anos, seguindo-se Loures, com quase 37 mil, Vila Pouca de Aguiar, com aproximadamente 32 mil, e Paços de Ferreira, com valores próximos de 26 mil euros.
Com montantes entre os 15 mil e os 20 mil euros gastos em bolos-reis na última década, o PÁGINA UM detectou os municípios de Seixal, Vila Nova de Gaia, Sines, Ovar e Almada.
Pegando na cor política dos presidentes das 11 autarquias que mais compraram bolos-reis na última década, não é notória qualquer questão ideológica. Desses 11 autarcas, seis (55%) são do Partido Socialista (Baião, Loures, Paços de Ferreira, Vila Nova de Gaia, Sines e Ovar), o que não difere muito da representatividade nacional (149 em 308 municípios, ou seja, 48%). ‘Rei magos’ social-democratas encontram-se três (Cascais, Vila Pouca de Aguiar e Ovar), estando o PCP representado no Seixal e os movimentos ditos independentes em Oeiras.
No futuro, e dada a tendência de se recomendar a redução do consumo de produtos açucarados – nomeadamente em hospitais e escolas –, resta saber por quantos anos se vai aguentar esta tradição de algumas autarquias reservarem uma fatia do seu orçamento para comprar bolos-reis. A acontecer, para os fornecedores da Câmara Municipal de Oeiras, depois de anos de ‘brinde’, seria uma grande ‘fava’.