CAPÍTULOS 37-39

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Janeiro 7, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


37 – Edgar Allan Poe não teve culpa de nascer naquele país estúrdio

A irada reação do gerente do hotel não pegou bem. Os dois escritores trocaram um longo olhar cheio de significados que não metiam o lusitano em bons lençóis.

– Veja como são as coisas, Águeda – disse o francês. – É um clássico: o portuga pode muito bem ter envenenado a comida da velha. Ou na própria cozinha ou, mais discretamente, no caminho até este apartamento…

– Deus me livre e guarde! – persignou-se Batota.

– Não te preocupa já, malandro – apressou-se o escritor a acalmá-lo. – Só vou te responsabilizar depois que a autópsia confirmar a morte por envenenamento culinário.

– Deixe de ser bobo, sô! – reagiu a escritora. – Mantenho a tese do envenenamento do livro. É a hipótese mais elaborada. E nós, ingleses, sempre raciocinamos de maneira mais sofisticada. É por isso que os países anglo-saxônicos são os mais ricos do mundo. O pensamento requintado nos distanciou da gentalha, seja ela nórdica, eslava, germânica ou latina. Rejeito a ideia de veneno no feijão. Ainda se fosse no faisão!

– A tua tese não se sustenta – retrucou o francês. – O assassino, além de ter de saber que se a bruxa espanhola lambia os dedos, precisaria saber se ela virava as folhas pegando-as pelo alto ou por baixo. Restaria ainda o problema da potência do veneno, que teria que ser altamente concentrado…

A inglesa sacudiu os ombros magros, bateu o pé no chão e insistiu:

– Com ou sem veneno, estou certa de que aqui ocorreu um crime do tipo “quarto fechado”. O assassino já foi quando a morte sucede.

– Discordo! – o francês foi enfático. – Aqui houve um crime comum. Digamos, em tese, que o assassino tenha sido mesmo o português. Depois de entregar a comida envenenada, o que fez ele? Fechou o quarto com a chave-mestra só para que os idiotas fossem levados a pensar em crime de quarto fechado.

– Valha-me Santo Antônio! – Batota persignou-se. – Sou inocente! Sou inocente! Que loucura é esta! Não me acusem nem mesmo em tese! Tirem-me dessa!

– Não atrapalhe o nosso debate intelectual! – ralhou Águeda Christine com Batota e, depois, dirigiu-se novamente a Sim Et Non, como se não tivesse sido obrigada a interromper a linha de pensamento: – Aposto o qu’ocê quiser que aqui houve um crime de quarto fechado.

Em meio a uma nuvem mais robusta de fumaça, o francês ironizou:

– Esse negócio de quarto fechado é apenas uma tola brincadeira inventada por um americano macabro.

– Não fale mal de Edgar Alan Poe! – reagiu a mulher. – O tadinho não teve culpa de ter nascido naquele país estúrdio. Era um gênio!

Neste ponto do livro, devo dar uma breve explicação. Os historiadores da literatura policial parecem concordar que o conto “Os Crimes da Rua Morgue”, de Edgar Alan Poe, foi o primeiro exemplo de assassinato em “quarto fechado”. Ou seja, quando um crime é cometido num lugar supostamente inacessível a um ser humano.

Convém dizer também que, ao contrário de Dax e Fedorova, que tinham se movimentado por todo o quarto, Águeda Christine e Sim Et Non mantiveram-se o tempo todo nos mesmos lugares, imóveis.

Como também já disse, a autora de Assassinato no Expresso Liverpool-Manchester concentrou sua atenção no cadáver. Parada diante da falecida, examinou com muita atenção a roupa que ela vestia. A seguir, passou ao rosto, do qual verificou ruga por ruga. Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine, como sabemos todos, também era um grande observador.

Já o autor de Sangue na névoa permaneceu imóvel no centro da peça, quieto, fumando enquanto dissimuladamente olhava ao redor. Exatamente como faria o detetive Jales Maigrot, cujo método consistia em mergulhar profundamente na atmosfera do local onde havia sido cometido o crime. Assim, integrando-se ao cenário fatídico, Maigrot acabava por identificar-se espiritualmente com o criminoso. No fim, encurralado por forte pressão psicológica, o assassino acabava confessando o crime que cometera.

brown wooden panel door beside gray concrete wall

38 – Da afetação dos atores ingleses com seus bigodinhos ridículos

– Jogo meu pescoço que a velha baranga foi assassinada! – clamou, em tom de aposta o francês. – Ô portuga, manda fechar todas as portas e janelas do hotel. Que ninguém deixe o prédio!

Surpresos, Águeda Christine, Batota e eu encaramos o francês, que continuou:

– Se o assassino ainda estiver entre nós, ele não escapará. Eu o descobrirei. Olhos nos olhos! É assim que consigo penetrar nos mais escuros desvãos da alma humana.

– Larga de bobagem, filhinho – disse a escritora inglesa, com um sorriso de gozo. – Alma não tem vão nem desvão. Eu também já sei que Miguela foi assassinada e que o assassino ainda não deixou o hotel. Logo mostrarei as provas. Anglo-saxões têm o péssimo costume de respaldar com provas aquilo que afirmam.

– O senhor Sim et Non ainda continua desconfiado de mim? – perguntou, trêmulo, um agora inseguro Batota.

– Todos aqui são suspeitos – respondeu o francês. – Mas você, vascaíno, joga no segundo time, junto com os demais serviçais do hotel. No primeiro time, na verdade, estamos nós, os escritores.

– Verdade verdadeira, sô – concordou Águeda Christine. – Somos os principais suspeitos. Mas uns tinham motivos mais fortes para matar a pobre mulher. Ocê, por exemplo. Além de vender mais livros qu’ocê, Miguela era adorada pelos críticos literários franceses, que desprezam ocê. Ora, inveja e despeito literários são fortes motivos para um francês matar alguém.

– Não seja modesta, Aguedinha! Você odiava ela bem mais que eu porque Miguela teve sucesso também nas versões cinematográficas dos seus livros. E tu nunca teve sorte com as filmagens dos teus textos, por causa daqueles afetados atores ingleses com seus bigodinhos ridículos.

O corpo magro de Águeda Christine se encolheu, como o de um gato prestes a saltar sobre um rato. De seu lado, o francês fechou a mão em torno da haste do cachimbo.

Batota já mais descansado, vendo-se menos suspeito, tomou seus ares de maestro e bateu palmas.

– Têm de sair agora, por favor. Acabou vosso tempo.

Foi uma atitude providencial. Um segundo mais e eles teriam se engalfinhado.


39 – Os turistas destruíram todas as paisagens

– A conversa entre o francês e a inglesa foi estranha, mas deveras interessante – confidenciou Batota enquanto nos dirigíamos à sala de reuniões a fim de buscar Foo Lee Shi Man. – Mas fiquei um pouco frustrado. Vi muito palpite e pouca investigação. Esperava mais investigação e menos palpites.

– Eu também. Achei que Águeda Christine ia falar da manchinha vermelha no pescoço da falecida ou da Bíblia aberta na página 1313. Em suma, esperava que ela descobrisse o que eu notei logo de saída.

– E Sim Et Non ainda esteve pior – completou o português. – Ficou ali sempre parado como uma chaminé a soltar fumo. Não fez mais que lançar farpas a lady Águeda.

– Mas eram farpas interessantíssimas! – ponderei. – De todo modo, eles deixaram claras suas preferências por diferentes tipos de crime e métodos de investigação.

– Não concordo com a teoria de lady Águeda. O crime de quarto fechado não se adapta ao nosso caso, Campestre.

Achei óbvias as razões para o gerente não ser adepto dessa tese, que o colocaria no topo dos suspeitos, mas não o quis contrariar nem inquietar, se bem que até lhe faria bem para vingar a recepção que me fizera com a pistola.

– Gostei mais da tese do francês, seu Manoel. – É, sem dúvida, mais plausível que alguém tenha fechado a porta após o crime, a fim de nos induzir ao erro.

Afundados nessas altas cogitações, chegamos ao salão. Sim Et Non e Águeda Christine assumiram seus lugares na mesa. Estirada em uma poltrona, Fedorova dormia. Ao lado dela, no chão, repousava uma segunda garrafa de malvada, já pela metade. Dax sumira e Bugres estava parado diante de uma janela aberta.

– Bela paisagem, não? – perguntou Batota, à guisa de saudação, batendo nas costas do argentino.

– Todas as paisagens do mundo foram destruídas pelos turistas orientais com seus impiedosos flashes – retrucou o poeta cego de Buenos Aires com sua voz rouca. – Mas Platão já previu essa catástrofe quando escreveu que todas as paisagens serão gravadas numa só chapa de aço pelos artesãos do Hades. Para Tarso de Creta, numa mesma paisagem estão presentes, sempre, as quatro estações. A neve já contém as sementes do verão e…

Já desinteressado do que dizia o latino-americano, Batota voltou-se para o chinês:

– Senhor Foo, chegou a vossa vez.

O escritor chinês ampliou o sorriso. Perguntei-me: por que estará esse china sempre rindo? Não será esse o riso de alguém que permanentemente debocha dos outros?

Parêntese literário.

Reproduzo aqui trecho de artigo escrito por um renomado crítico literário francês, Jean Pierre de GrandMont Grenelle Des Oiseaux Rouges, sobre a obra de Foo Lee Shi Man:

“No rastro de teses de Soren Kierkegaard e Michel Foucault, afirmo que o reconhecido escritor Foo Lee Shi Man – dono de ridente máscara amarela, na qual se vê estampada, em todas as suas nuances, sombrias ou solares, a verdadeira alma chinesa – prefere, em suas composições autorais, registrar apenas fragmentos mínimos do todo universal, de modo a ressaltar atos que são paradigmas de elevação e queda, de glória e abjeção”.

Fim do parêntese.

E, de repente, com um movimento flexível, Foo desviou de Batota e enveredou pelo corredor. O gerente do hotel e eu fomos atrás do chinês, que parecia deslizar sobre o piso de cerâmica.

tree surrounded by fog at daytime

(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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