Recensão: Sobre a ganância, o amor e outros materiais de construção

Conta-me como foi, diz-me como é

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Mariana Santos Martins|07/01/2024

Título

Sobre a ganância, o amor e outros materiais de construção

Autor

FRANCISCO KEIL DOAMARAL 

Editora (Edição)

Estúdio Lisboa (Novembro de 2023)

Cotação

18/20

Recensão

Mais pertinente e oportuno este livro não poderia ser.

Se a decisões singelas de design limpo com uma comunicação impactante faço a devida reverência, não é menos verdade que, pelo simples facto de recuperar as palavras do arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-1975), a editora e a sua equipa editorial está de parabéns pelas subtilezas e pelo respeito que presta nesta homenagem ao autor em voz própria.

Compilando diversos textos do pai do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal – O Problema da Habitação, Sobre a ganância, o amor e outros materiais de construção, O problema da habitação em Portugal: generalidades e, finalmente, a entrevista publicada no jornal Diário de Lisboa, Ano 28.º, n.º 9389, 18-1-1949 – com o prefácio de Ana Tostões a garantir o enquadramento necessário e com as qualidades académicas que já lhe reconhecemos, este livro vem preservar comunicações essenciais de um homem e de uma geração de ouro, que fez da arquitectura portuguesa a poesia materializada que devemos honrar.

As estampas originais, que acompanhavam alguns dos textos reunidos, são omitidas por uma razão singela – embora me surja a dúvida se deveria ter sido feito: mostrar a contemporaneidade das reflexões do autor. Facto que apreciarei a cada instante dos diferentes textos apresentados.

O livro, como aliás a comunicação do Keil do Amaral o garante, é de leitura escorreita, pejado de ironias elegantes e humor sagaz. Apresentado de forma cronológica com a excepção da entrevista final, deve ser lido com noção de contexto, ponderada quer a lucidez do autor, quer o optimismo romântico que não tinha como antever o século que hoje vivemos; quer a frustração do mesmo ter de resistir ao atavismo de um regime que engoliu toda a sua vida adulta e profissional. Keil ficou como um dos grandes nomes da arquitectura portuguesa, tendo podido viajar e impressionar-se com o mundo – por fora – e a portugalidade – vista de fora –, era incisivo e mordaz em procurar sacudir os seus colegas ou as figuras institucionais, porque “a relação de empatia se sobrepõe à abstração” (p. 12).

No primeiro texto – “O problema da habitação” – escrito em 1945, temos a primeira omissão das estampas que, em nota introdutória, menciona remeterem-se às “cidades satélites” de Manchester e Paris, às “habitações para solteiras e para pessoas idosas” em Wythenshawe (Manchester) e às “cidades-cooperativas” na proximidade de Berlim e Copenhaga. Foram então excluídas da edição para permitir uma leitura mais directa do conteúdo textual, prendendo à imaginação do referencial imagético dos tempos de aqui, agora, e não do passado.

Nesta situação, sugeriria que se ilustrasse os mesmos locais à data de hoje em paralelo com então, para verificarmos o que nos evoca. Para sabermos se sobreviveram ao teste do tempo ou às provações da especulação desenfreada.

É-me inevitável querer vocalizar as palavras do próprio autor, seja pela minha indispensável humildade e concordância, seja pela noção de que, mesmo no que questione, não tenho porque argumentar com ecos desta magnitude. Servem os ecos para nossa reflexão actual, para levantar do chão o testemunho deixado e, espero eu, abrir o apetite à aquisição do livro.

E, por isso, atentem então na contemporaneidade referida:

Jovens, em véspera de constituir família, queixavam-se amargamente da falta de pequenas habitações feitas à medida das suas necessidades e das suas posses. Eram dos mais impacientes e tinham razão. Casas não as havia realmente, e a impaciência justificava-se porque o amor confere todos os direitos, mormente o de não saber esperar…

Casais a quem a família aumentara e para quem a residência se tornara insuficiente, lamentavam-se do preço proibitivo das casas maiores e deixavam-se ficar, apertados, com os filhos sujeitos a uma promiscuidade nada recomendável…

Pequenos funcionários e empregados de escritório clamavam contra a desproporção inconcebível entre os seus vencimentos e as rendas que se exigiam. (p. 17)

Talvez seja o meu temperamento nostálgico, mas se não é isto motivo suficiente para ir “ouvir” este grande senhor, em comparação com toda a verborreia que entope os canais de opinião sobre aeroportos actualmente…:

Os noivos asseguravam que o assunto ficaria arrumado logo que se fizessem uns tantos prédios de «appartements» ou de pequenas habitações; outros consideravam suficiente uma legislação que fixasse limites máximos para as rendas; outros, ainda, atribuíam à Municipalidade uma desenfreada especulação sobre os terrenos, e afiançavam que tudo se consertaria desde que cessasse tal prática – origem primária de todos os males; ainda outros… mas basta de exemplos que nos levariam longe sem vantagem. Ingenuamente, reduzindo os problemas à bitola do «seu problema», confundindo causas com efeitos, mas cheio de boa fé e de boas intenções, o portuguezinho valente não se cansava de procurar remir esta penitência a que se via condenado.

Entretanto, os gaviões do negócio, tocados por esse coro de lamentos, decidiram lançar uma boia de salvação à classe média desamparada, propondo-se construir e fornecer-lhe casas em certa abundância. E com aquele desinteresse que os caracteriza, fazendo ressaltar até que a obra tinha uma feição francamente humanitária, começaram por pedir facilidades e mais facilidades – isenção de contribuições, terrenos baratos, entorses às boas regras da higiene e da intimidade, etc., etc. – para que os capitais a investir na empresa (por pura e desinteressada filantropia, nunca é demais recordá-lo) tivessem um beneficiozinho de 20 ou 30 por centro. Faltam as casas mas não as boas almas, neste nosso ameno e florido rincão! (p. 18)

A análise – e como já comentei, a deliciosa ironia – é brilhante, límpida e – de novo insisto – profundamente contemporânea. Adiantando ainda que já então existia um completo divórcio entre a população e aquilo a que se chama o país. O País enriquecera, sofrera uma dominação estrangeira, recobrara a independência, tornara a dispor de fabulosas riquezas, e a grande maioria dos habitantes continuava inalteravelmente a sua pobre rotina. Dir-se-ia que Portugal e os portugueses eram duas coisas distintas e independentes. (p. 32)

Dir-se-ia que – se oportunidade tivesse eu de viajar no tempo para gracejar com o autor – se calhar, só por aqui, assim de forma pequenina e simples, concluir que o direito à habitação clamado – ainda hoje – mais não é que o direito ao país; mais não é que o direito à suposta nação prometida na sua fundação, restauração e depois ainda em 1910, e novamente em 1933 e depois de novo em 1974… Será logro? Estamos todos à espera.

No segundo texto que dá título ao livro – e que boa escolha foi – de 1969, de novo as estampas com referência às barracas e seus habitantes em 1962, lotes de urbanização em arredores de Lisboa e demolição de edifícios em bom estado para dar lugar a prédios com maior capacidade de ocupação, foram omitidas, para que não se julgue que o fenómeno está datado.

Mas, e por isso não dou nota máxima a este livro, porque não ir mais longe e, mais que omitir as estampas – arriscando assim a não conferir adequado contexto às palavras do Keil, assim como fulcral testemunho histórico – apresentá-las sempre e procurando equivalente contraponto contemporâneo?

Assim mesmo, de chofre, lado a lado a foto do passado e do presente; admitindo o papel crítico desta edição e da arquitectura como crítica, pois que também o deve ser, mesmo que com recurso a palavra e não a alvenaria, pois que a palavra é muitas vezes pedra emparelhada do pensamento, e quem melhor que o arquitecto – e este arquitecto – para edificar um raciocínio que observa o mundo e seus contornos? (Ai o ego e a barriga de um arquitecto, perdoem o ventre inchado de optimismos utópicos, mas se derem uma volta pela Charneca da Caparica julgam que não mais vêem barracas? Julgam que passear por Portugal é pêra doce?)

Mesmo que não falemos de barracas, falemos de dormitórios, colmeias humanas onde agora se penduram apêndices vários da suposta casa máquina das varandas e janelas, marquises, lavandarias e fogareiros (as pessoas vivem como podem):

Amadora, Queluz, Moscavide, Almada, Odivelas!… E a Pontinha, e a Damaia, sem falar na Quinta da Brandoa e noutros núcleos do género!

Já passaram por lá ultimamente?

Que desolação! Que secura! Que desamor!…

Desamor é o termo justo, adequado. (…)

Não são bairros onde decorre aprazivelmente a vida de agrupamentos humanos; não são conjuntos de habitações, a que alguém se possa afeiçoar. São negócios em cimento, tijolo, rebocos e tintas Robbialac de cores sortidas (para tornar Portugal mais alegre!). São armazéns de gente, gavetões-ossários de famílias vivas… (p. 52)

No último texto, antecedendo a entrevista de 1949 que remata o livro, reencontramos “O problema da habitação em Portugal: generalidades” mas já em 1973. Já um certo cansaço, mas o engenho de arquitecto a reformular a equação e as variáveis do problema com a mesma clareza.

Quando salientei a convicção de que não poderiam ter resolvido o problema de uma forma cabal e completa, queria referir-me concretamente à circunstância dele não ter uma base estática, isto é: cujas premissas, uma vez definidas, se mantinham inalteráveis. Mas elas evoluem, permanentemente. Aos «deficits» de casas em 1930 vieram somar-se os «deficits» decorrentes do aumento geral da população e da criação de novas famílias; e a esses os das casas que foram demolidas para permitir negócios; e a esses os resultantes das necessidades da descentralização urbana e da revitalização do território; e a esses os que advieram da elevação do nível cultural, de ambições e de hábitos… (p. 68)

E a estes, o da gentrificação, o da saúde mental, o dos confinamentos forçados por um Estado que engorda de autoritarismo com açúcar e canela frito em óleo a ferver ou da ironia do confinamento laboral numa era de trabalho a partir de casa, ligado às máquinas em calculadoras de ecrã azul e fibras ópticas, enquanto faz login a horas certas e logout a horas impróprias. Trabalho remoto, comando remoto, comandado remotamente.

Em conclusão, e para evitar copiar aqui mais do livro, sem dúvida uma edição feliz, que honra um legado, em tempos menos carinhosos, mais gananciosos, uma prova de amor.

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