Sendo eu de ‘esquerda’, aquilo que mais me irrita e faz sair do sério é quando alguém, supostamente de ‘esquerda’, se mete a culpar a ‘direita’ de algo que nada tem a ver com ideologias. Percebe-se a estratégia – criar uma clivagem, identificar um suposto inimigo ideológico, para que haja uma decisão política favorável –, mas isso é passar um atestado de indigência e sobretudo retirar a responsabilidade aos verdadeiros culpados. E não permitir uma reflexão e discussão sérias.
Hoje, a jornalista e antiga directora-adjunta do Público Ana Sá Lopes veio defender a nacionalização da Global Media. Veio tratar de fazer a ‘cama’ para deitar os desejos de políticos – e.g., Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Moreira, Carlos Moedas e Pedro Adão e Silva – em se meter dinheiro dos contribuintes (porque não há ouvintes e leitores suficientes) para assim simplesmente se salvarem empregos de jornalistas que, durante anos, contribuíram para a degradação do seu ‘produto jornalístico’ a ponto de hoje ser já um ‘produto comercial’ sem interesse nem préstimo.
Ao contrário daquilo que defende Ana Sá Lopes – que funciona aqui como ’porta-voz’, porque sei que o seu ponto de vista é comungado pela generalidade da corporativa classe jornalística –, não vivemos “um momento totalmente crítico na imprensa”. De facto, vivemos sim um momento de clarificação.
Por exemplo, um jornal como o Diário de Notícias – por mais que simpatizemos com a sua vetusta idade (foi fundado em 1864) – não pode sobreviver se atrai apenas 1.500 pessoas para comprarem a sua edição diária contando com uma equipa de três dezenas de jornalistas e sucessivas direcções editoriais (e conselhos de redacção) permeáveis a interesses políticos e mercantis.
Veja-se, aliás, que na Global Media chegámos a ter directores editoriais do Diário de Notícias (Rosália Amorim), Jornal de Notícias (Inês Cardoso) e TSF (Domingos de Andrade) no Conselho de Administração nos tempos de Marco Galinha. A promiscuidade e cumplicidade começa aqui, quando jornalistas passam de ‘geradores de notícias’ credíveis – para que, trazendo público haja interesse externo em anunciar – para gestores comerciais a vender banha da cobra, ainda por cima usando estratégias capciosas para fazer com que marketing seja perceptível como notícias baseadas em interesse editorial.
Aliás, a hipocrisia de supostas virgens inocentes do jornalismo, que se comportaram como autênticas megeras nos anos mais recentes, ficou bem patente na audição desta semana de Domingos de Andrade na Assembleia da República.
Com a carteira profissional de jornalista activa, Domingos de Andrade assumiu durantes vários anos funções de responsável editorial de diversos órgão de comunicação social da Global Media (DN, JN e TSF), ao mesmo tempo que era administrador da holding – sendo o braço direito executivo de Marco Galinha até ao ano passado –, e era também, de acordo com o Portal da Transparência dos Media, gerente da TSF – Rádio Jornal Lisboa, da TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve, da Difusão de Ideias – Sociedade de Radiodifusão, da Pense Positivo – Radiodifusão e ainda vogal do conselho de administração executivo da Rádio Notícias – Produções e Publicidade.
Domingos de Andrade foi um jornalista meigamente multado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) em Janeiro do ano passado por ter andado a assinar contratos comerciais com empresas que financiavam os periódicos da Global Media, e agora vem dizer que “não estamos apenas a assistir ao fim de marcas, estamos a assistir à destruição reputacional de marcas e redacções”? Está a fazer auto-crítica ou está a fazer lavagem de imagem?
Que eu saiba, “a destruição reputacional de marcas e redacções” sucede quando se fica a saber, através de um despacho do Ministério Público, que “Eduardo Vítor Rodrigues, na qualidade de autarca, solicitou a Domingos Portela de Andrade, vogal do Conselho de Administração do Grupo Global Media, que os meios de comunicação pertencentes a tal Grupo, nomeadamente o Jornal de Notícias e TSF, elaborassem notícias e cobrissem conferências promovendo a atuação da Câmara de Vila Nova de Gaia e do seu presidente”. É o jornalismo de Domingos de Andrade que queremos que o Estado financie? É a credibilidade de Domingos de Andrade que deve ser atendida quando falamos do fracasso da Global Media?
Quando vejo, por exemplo, pessoas como Rosália Amorim, ex-directora do Diário de Notícias, manifestar “tristeza” pela situação da Global Media, sabendo como funcionavam as parcerias comerciais naquele diário, estamos não apenas perante hipocrisia; há uma desfaçatez terrível. Como pode uma “marca” ter alguma reputação se o próprio Conselho de Redacção da TSF se opôs à nomeação de Rosália Amorim – levantando “legítimas dúvidas quanto à sua real capacidade de manutenção de uma política editorial independente” – e ela mesmo assim aceitou o cargo?
De facto, vivemos um momento de clarificação.
Jornalismo mercantilista, sem qualidade, com personagens munidos de carteira profissional de jornalistas mas de ética mais do que questionável, permeáveis ao poder político e ao poder económico, que enganam os leitores e ouvintes através de contratos de prestação de serviços que resultam em supostas notícias, entrevistas e eventos independentes – esse jornalismo não pode sobreviver.
As empresas que o praticam, não podem sobreviver. Não podem ser ajudadas pelo Estado. Além de tudo, é imoral.
A ‘morte’ de projectos jornalísticos baseados na falta de ética é mesmo bem-vinda – é mesmo essencial, não apenas para que o crime não compense, não apenas para evitar o uso imoral de impostos dos contribuintes para insuflar e alimentar procedimentos errados e nefastos para uma sociedade, mas sobretudo por ser necessário dar espaço a projectos credíveis e sem vícios, que provem que os leitores, perante a credibilidade, valorizam economicamente o jornalismo.
Mais do que nunca, a pluralidade e diversidade da comunicação social, essencial como alicerce da defesa da democracia – que em Portugal está podre, em parte pelas promiscuidades sustentadas por jornalistas (sobretudo directores editoriais, os tais que vão defender no próximo Congresso dos Jornalistas formas de financiamento) com o poder político e económico – baseia-se na credibilidade de projectos, e não na sua história.
Quando o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias nasceram, nos idos do século XIX, existiam largas dezenas de periódicos, alguns com largos anos, como o Açoriano Oriental, que ainda hoje se mantém a caminhar para os 200 anos. Todos viram nascer outros, muitos, quase todos foram ‘morrendo’, e sendo substituídos por outros, alguns tiveram várias vidas até sucumbirem, independentemente de terem sido, em tempos, instituições de prestígio, como os casos de O Século, o Comércio do Porto, a Capital, o Diário Popular ou o Diário de Lisboa.
Os ‘cemitérios da imprensa’ estão cheios de jornais que nasceram cheios de esperança, alguns se mostraram pujantes, mas por ‘causas naturais’, que incluíram sempre inadaptação ao mercado ou a erros próprios, claudicaram. Mas a sua ‘morte’ nunca significou a morte do jornalismo. Pelo contrário: na imprensa, a morte de um jornal permite o nascimento de outros (ainda) sem vícios.
Os jornais (ou as rádios, ou as televisões) morrem, mas o jornalismo não morre se extirparmos a tempo o mau jornalismo. Se se persiste na manutenção de um mau produto, artificializando a sua sobrevivência, ainda mais com dinheiros público, salvam-se a prazo (a curto prazo) empregos, mas traça-se uma ameaça para a credibilidade de todo o jornalismo, nega-se a possibilidade de nascerem outros projectos mais sérios, mais credíveis… e mais economicamente viáveis.
Por isso, para mim – e sem prejuízo de ser apoiante de um modelo de apoio social pelo Estado aos desempregados de empresas falidas, incluindo as do sector dos media –, nada mais saudável e natural do que a morte de (maus) órgãos de comunicação social, até porque, ao fim e ao cabo, são apenas títulos – que, aliás, anos mais tarde podem ser recuperados para novos projectos editoriais sérios.
[o próprio PÁGINA UM foi um título inicialmente fundado em 1976 por Isabel do Carmo e Carlos Antunes, de ideologia de extrema-esquerda de apoio a Otelo Saraiva de Carvalho; tornou-se mais tarde, entre 1995 e 1997, um boletim informativo da Associação Académica da Universidade do Minho, e antes de se tornar este jornal digital independente, tomou o nome de um programa da católica Rádio Renascença… ou seja, nomes leva-os o tempo, e simplesmente, no caso do PÁGINA UM, o aproveitámos por estar disponível]
Quando Fernando Alves, um histórico jornalista de rádio e fundador da TSF, afirma hoje no Público que “o departamento comercial comeu a cabeça de todas as redacções que conheço”, não se refere apenas àquela rádio da Global Media nem a outros órgãos de comunicação social deste grupo. Falará, mesmo que não queira englobar, de praticamente todos os grupos de media que, à conta de uma crise (que é muito de credibilidade), querem fazer-nos crer que os problemas são de hoje e que se salvam com a prostituição do jornalismo (através de parcerias comerciais) ou com dinheiros públicos.
O problema da Global Media – e também da Trust in News, que lhe vai seguir, em breve, as pisadas – não é de hoje. Uma empresa que desde 2017 soma prejuízos consecutivos, que já ultrapassavam os 42 milhões de euros em 2022, que tinha uma dívida ao Estado de 10 milhões no final desse ano (sem que o regulador soubesse), e que via os seus activos imobiliários serem ‘chupados’ pelos accionistas, não pode vir agora carpir pela salvação com dinheiros públicos como se lhe tivesse sucedido um terramoto imprevisível. E o mesmo se diz em relação aos actuais e antigos responsáveis editoriais e jornalistas.
E também não se mostra admissível que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tenha uma atitude de irresponsável passividade a ponto de defender, como fez há cerca de dois meses em resposta a perguntas do PÁGINA UM, que não tem capacidade para sequer pedir e analisar os relatórios e contas da Global Media.
O fraco papel do regulador, mais a sua plataforma de Transparência dos Media, para evitar entrada de empresas e pessoas com interesses suspeitos, seria anedótico se não fosse grave. Foi o PÁGINA UM – e não o regulador – que detectou no ano passado falsas declarações de diversas empresas de media, incluindo ocultação de dívidas ao Estado (Global Media e Trust in News), de falência técnica (empresa do Tal & Qual) e de dependência financeira (empresa do Polígrafo).
Na verdade, tem sido o PÁGINA UM que, com as suas denúncias e já com uma seccção própria (pela relevância num sistema democrático), mais tem revelado as promiscuidades entre jornalismo e empresas (públicas e privadas, e até Governo, o que, aliás, tem merecido a devida reacção corporativista dos visados, razão pela qual a generalidade dos órgãos de comunicação social mainstream ignora as nossas investigações, e os ‘órgãos reguladores’ (ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas) se mostram tão favoráveis a atender os nossos críticos.
Por tudo isto, e regressando ao início, se vamos para “pactos de regime”, como defende Ana Sá Lopes, para salvar empregos de más empresas jornalistas, fazendo com que passem a ser controladas pelo Estado, não vejo como isso pode ser bom para a democracia – diria antes: será péssimo para o jornalismo e para a democracia. Nacionalizar empresas de media, ou entregá-las a empresas do regime, é o ‘sonho húmido’ de quem está no poder. Não nos bastou as tentativas de Sócrates de controlar a TVI e como foram nomeados alguns directores da Lusa e da Global Media nos tempos do seu Governo?
Por tudo isto, são uma ofensa as palavras de Ana Sá Lopes – que é apenas um peão com o objectivo de colocar uma clivagem ideológica num problema meramente empresarial e de ética jornalística – a defender que quem contestar uma salvífica entrada de capitais públicos (dinheiro dos contribuintes) especificamente na Global Media é alguém de ‘direita’ a qualificar o Estado como um “diabo”, que é “mau, horrível, [que] come criancinhas ao lanche e por aí fora”, como escreve no seu artigo de opinião no Público de hoje.
Estou saturado deste tipo de paleio, sobretudo por jornalistas, sobre um assunto que exige debate sério, e sem estar contaminado por pessoas que compactuam ou compactuaram com um ‘modelo de negócio’ da imprensa que descredibilizou o jornalismo português nos últimos anos.
Melhor regulação – não necessariamente mais (acho que a ERC dedicou mais horas de trabalho a analisar queixas contra o PÁGINA UM do que a analisar a crescente e evidente degradação da Global Media) –; maior participação e independência dos jornalistas nas redacções; outra seriedade na anedótica Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (que deixa impune claríssimas incompatibilidades e promiscuidades); e um debate sério sobre a definição de critérios apolíticos (sem intervenção conjuntural dos Governos ou da Assembleia da República) para o financiamento público dos media (por constituírem um bem público, na concepção económica do termo), são temas fundamentais para definir o futuro da imprensa escrita (em papel e online), radiofónica, televisiva e multimédia.
Mas esse debate deve ser feito à margem do que está a suceder com a Global Media, que antecipa o caso similar da Trust in News, dona da Visão. Aliás, por mim, seria saudável e até útil que se discutisse o futuro da imprensa em Portugal depois da concretização da queda destes dois grupos à força das leis do mercado, da oferta e da procura e da boa gestão da res publica (dinheiros públicos), porquanto assim a análise da sua ‘morte’ constituiria ensinamentos para não se cometerem os mesmos erros e nos vermos livres de pessoas que conspurcam a nobre profissão de jornalista.
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