CARTAS DO VELHO DO RESTELO

Dois ingredientes de combate aos problemas de saúde mental

brown paper and black pen

minuto/s restantes


Estava num museu londrino quando uns girassóis de Van Gogh me fizeram parar. Eram belos, magníficos…

Que porcaria de adjectivos que não comunicam nada do que senti.

Recomecemos.

Era muito, muito, muito mais do que isso — um arroubo estético‑espiritual em que senti que, por uma vintena de experiências assim, qualquer vida já valeu a pena. Já sentira isso na poesia, na literatura, na música, numa lagoa em São Miguel ao ver o Sol nascer, com o céu azul infindo e o Sol à distância de um mover de mão, mas aquela tela do museu londrino continha propriedades mágicas, porque o olhar e a coisa olhada se tornavam num só ente.

O meu espírito flutuava por outras regiões, como se a existência tivesse umas brechas minúsculas que se abrem meia dúzia de vezes ao longo da vida. Estava completamente absorto e extático, completamente instalado no sublime, quando o meu amigo e a minha amiga que me acompanhavam me sacudiram:

 — Estás aí há mais de meia hora! Já vimos tudo. Que é que estás a fazer?

Para mim, a experiência ainda estava no início, e eu morava ali havia dois minutos. Pedi que me deixassem contemplar a tela mais uns minutos e continuei imerso no quadro, enquanto pensava na palavra «gratidão» e dizia de mim para mim: «Por que raio estou a pensar nesta palavra?»

Quando os meus olhos se moveram vagarosamente do quadro, li numas letras pequenas que o pintor havia feito aquele quadro para descrever pictoricamente a gratidão. Voltei a reler para concluir que não sonhara.

Nunca mais deixei de olhar para um girassol sem lhe agradecer, e o mais curioso é que ele me retribui sempre.

Bem sei que há vidas dificílimas, bem sei que há muita injustiça, bem sei que temos tendência para contabilizar mais o que nos falta do aquilo que temos, mas é preciso vasculhar a gratidão nas nossas vidas.

a large field of sunflowers with a sky background

Sem gratidão, definhamos e tornamo-nos pessoas-cactos, criaturas inaturáveis para os outros.

Além da gratidão, é forçoso cultivar o acto da escuta. Poucos terão dado conta de que se aprende mais a ouvir do que a falar. Há pouco tempo, cruzei-me com uma amiga no metro. Ela falou sem parar, sempre e só sobre a sua vida, e, quando saiu na estação perto da sua casa, perguntou-me: «Contigo, está tudo bem, não está?» Antes de eu ter tempo de responder, ela respondeu por mim: «Está tudo bem, claro, é assim mesmo. Gostei muito da nossa conversa. Bom ver-te!»

Ela ficara contente com a conversa, mas não houve conversa: houve monólogo, e isso satisfê-la.

Noto crescentemente que as pessoas perderam a capacidade de escutar o Outro. Escutar… algo mais fundo do que ouvir.

A cara do Outro tem escrita que está noutro lugar quando não estamos a ser escutados.

Numa discussão, a maioria das pessoas, pura e simplesmente, não ouve, apenas fica a pensar no que dizer a seguir, enquanto o outro vai falando. Como as pessoas não se ouvem nas discussões, têm sempre de acrescentar que não disseram o que os outros disseram que elas disseram — têm, em suma, de rebater inúmeras falácias do espantalho. E há argumentos espantosos entre pessoas que se conhecem bem e se respeitam: «Mas, para ti, a vida das crianças do país x não vale nada?», diz uma. «Não te importas com o genocídio, já percebi», responde a outra.

two women's sitting in front of sunflowers

Se as pessoas se descentrassem do seu umbigo, praticariam mais o egoísmo altruísta, seriam mais felizes e fariam os outros mais felizes. Tudo isto soa a conversa pueril e livro de auto-ajuda? Talvez. A criação excede o criador, e eu limito-me a descrever o que a vida me apresenta. Sim, acredito no egoísmo altruísta, por ridiculamente trivial que possa soar este oximoro. Pelo que observo, sou obrigado a ter muita dificuldade em acreditar na felicidade (perdão pela rima) sem o verbo dar conjugado na primeira pessoa. (Que é isso da felicidade?, dirão muitos. É o pano de fundo, contraponho.) Tenho muita dificuldade ainda em acreditar no bem-estar de cada um se não nos interessarmos vivamente por outros. (Não escrevi «pelos», a abrangência seria maior.) E esse interesse acarreta escuta. Inevitavelmente.

Em suma, que a conversa já vai longa, se as pessoas escutassem o Outro, os psicólogos e psiquiatras teriam um quarto dos clientes.

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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