A base de dados Flunet, da Organização Mundial da Saúde, analisados pelo PÁGINA UM, revelam que a actividade gripal em Portugal nunca esteve tão elevada desde os primeiros registos em 1995, após dois anos sem ‘sombra’ de vírus influenza, durante o auge da covid-19. Apesar dos espécimes detectados nas últimas semanas se deverem, em parte, à maior cobertura laboratorial, mostra-se evidente uma coincidência temporal entre a crescente maior actividade viral e uma maior mortalidade, que está em valores bastante elevados. A culpa será da fraca vacinação? Não será assim tanto, como se comprova com dados oficiais.
A actual actividade gripal em Portugal está em níveis nunca registados, e uma das consequências imediatas tem sido o caos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a subida da mortalidade para níveis muito mais elevados do que no período pré-pandemia.
De acordo com os dados recolhidos pelo Flunet – um sistema mundial de informação de vigilância laboratorial da Organização Mundial da Saúde (OMS) –, desde 1995 nunca houvera registo tão elevado de espécimes de vírus influenza em Portugal como nas últimas duas semanas do mês passado.
O recorde foi atingido na semana 51 de 2023, entre 18 e 24 de Dezembro, com o registo de 1.694 espécimes, com a esmagadora maioria (1526, ou seja, 90,1% do total) identificadas como pertencendo ao tipo A, mas de subtipo indeterminado. Os restantes espécimes eram de influenza A do subtipo H1N1 (159) – originário do surto de gripe suína de 2009 – e do subtipo H3 (apenas duas), além de constarem sete do tipo B de linhagem indeterminada.
O anterior máximo, desde 1995, observara-se ‘fora de época’, entre 28 de Março e 3 de Abril de 2022, quando se contabilizaram, após cerca de dois anos sem sinal de vírus influenza – quando o SARS-CoV-2 dominou e fez ‘desaparecer’ a gripe’ –, 1.224 espécimes, também quase todas de influenza do tipo A (apenas 10 do tipo B), embora a esmagadora maioria sem determinação do subtipo. No entanto, nessa altura não foi registada nenhum espécime do subtipo H1N1.
No período anterior à pandemia da covid-19, a quantidade de espécimes identificadas era muito menor, que também se pode explicar por uma menor cobertura laboratorial. Em todo o caso, nesse período, a semana com registo de maior número de espécimes ocorreu entre 4 e 10 de Fevereiro de 2019 com um total de 700, sendo que, neste caso, se destacava uma relevante presença de influenza A do subtipo H1N1, com 17% do total.
Em anos anteriores apenas por uma vez se registou uma semana com mais de 500 espécimes identificados: entre 16 e 22 de Novembro de 2009, exactamente no pico da gripe suína. Nesse período foram contabilizados 511 espécimes, dos quais 489 de influenza do tipo A subtipo H1N1. Note-se, contudo, que a mortalidade então registada nesse mês (e no Inverno de 2009-2010) esteve bem abaixo dos valores registados em período homólogo do ano anterior, e dentro de valores expectáveis.
Independentemente dos factores extra-actividade viral, designadamente a maior cobertura laboratorial desde 2020 para a detecção do vírus influenza, mostra-se evidente que a gripe ‘bateu forte’, embora já começasse a dar mostras de evolução desfavorável. Na semana de 11 a 17 de Dezembro, já se observava um crescimento avassalador da actividade viral, contabilizando 1.039 espécimes, mais do dobro contabilizado na semana anterior. Na última semana de Dezembro, os valores foram inferiores aos da semana 51, mas mesmo assim registaram-se 769 espécimes, com um ligeiro declínio do subtipo H1N1.
Em todo o caso, com ou sem responsabilidades exclusivas do surto gripal, a mortalidade total em Portugal começou a disparar a partir do dia 20 de Dezembro, passando pela primeira vez, desde o Inverno de 2022-2023, a fasquia dos 400 óbitos. No dia 28 atingir-se-ia os 512 óbitos, o valor mais elevado desde 9 de Fevereiro de 2021 – ou seja, desde o fim do período de maior mortandade da pandemia da covid-19.
A situação ainda pioraria nos primeiros dias do presente ano: dia 1 com 508 óbitos; dia 2 com 546; e dia 3 com 530. Entre a véspera do mais recente Natal (24 de Dezembro) e 6 de Janeiro deste ano, a média diária de mortes cifra-se em 487, um valor considerado bastante elevado para o período invernal. Neste período, a mortalidade causada pela covid-19 rondou cerca de 1,2% do total, ou seja, do ponto de vista de Saúde Pública um valor praticamente insignificante.
Confrontando a mortalidade entre 1 de Outubro e 6 de Janeiro a partir de 2013, o período correspondente a 2023-2024 foi o terceiro pior, com 34.032 óbitos, pouco atrás de 2022-2023 (que já tivera uma actividade gripal relevante), mas mesmo assim com quase 2.900 mortes a menos do que os registados no período 2020-2021. A letalidade do período mais recente é, mesmo assim, significativamente superior aos anos anteriores à pandemia, não ‘beneficiando’ da ‘compensação demográfica’ decorrente da elevada mortalidade nos anos de 2020 a 2022. Saliente-se que a mortalidade tem atingido sobretudo os maiores de 85 anos, com sistemáticos dias com mais de duas centenas de óbitos.
Mesmo os médicos considerados ‘peritos’ durante a pandemia da covid-19 têm defendido agora que o maior impacte do habitual surto gripal de Inverno se deve a uma menor protecção vacinal contra o vírus influenza por causa de “alguma fadiga pandémica”. É o caso do pneumologista Filipe Froes que ontem, em declarações à CNN Portugal, admite uma “menor taxa de cobertura vacinal [para protecção contra a gripe] na população de risco” face ao período anterior à pandemia.
O médico que se destaca por ser uma das figuras da Medicina portuguesa com mais relações comerciais com farmacêuticas disse ao canal televisivo que “temos 2,2 milhões de pessoas vacinadas, [e que] antes da pandemia eram mais de três milhões”, acrescentando ainda que “um em cada quatro idosos com mais de 75 anos não está [agora] vacinado”.
Na verdade, foi a massificação da vacinação contra a covid-19 – e a não assumpção dos efeitos adversos por parte do Infarmed, que continua a ocultar, por decisão do seu presidente Rui Santos Ivo, os dados do Portal RAM, apesar dos esforços do PÁGINA UM – que têm afastado a população em idade de reforma de procurar neste Inverno a vacina contra a gripe, sobretudo na faixa entre os 60 e 80 anos.
De acordo com os mais recentes dados da Direcção-Geral da Saúde, reportados a 19 de Dezembro de 2023, apenas 47% das pessoas deste grupo etário tinham recebido a vacina contra a gripe, quando em período homólogo de 2022 a cobertura era de 60%. No caso do grupo dos 70 aos 79 anos, a queda entre 2022 e 2023 é de cerca de 5 pontos percentuais (77% vs. 71,6%) e na faixa etária dos maiores de 80 anos é de um pouco menos de 4 pontos percentuais (79% vs. 75,6%).
Ora, segundo dados oficiais, provenientes do Vacinómetro, a cobertura vacinal contra a gripe foi de 83,9% na população com 65 e mais anos na época invernal de 2021-2022, por via da forte campanha que incluía a covid-19, o que representou um acréscimo de 13,5 pontos percentuais em comparação com o período homólogo de 2020-2021. Ou seja, a pandemia da covid-19 incrementou também a vacinação contra a gripe, mas foi a gestão dos programas que causou uma “fadiga”, embora os níveis actuais até ainda estejam ligeiramente acima do que se observava antes de 2020.
De facto, por ironia, é um artigo científico de 2022 que tem Filipe Froes como primeiro autor que nega as declarações de… Filipe Froes à CNN Portugal. Com efeito, antes da pandemia, entre a população com idade entre os 60 e 64 anos apenas 42,8% se tinha vacinado, havendo anos anteriores em que estava abaixo dos 40%. No caso dos maiores de 65 anos, na época de 2019-2020, imediatamente antes da pandemia da covid-19, apenas 76% se tinham vacinado contra a gripe, enquanto a média no quinquénio anterior rondava os 65%.