WORLD OPPORTUNITY FUND NÃO FOI AO ENGANO: ENTROU NA GLOBAL MEDIA ANTES DA COMPRA

Estranhos negócios: Fundo das Bahamas comprou empresa com passivo de 6 milhões para controlar grupo de media com passivo de 55 milhões

por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 10, 2024


Categoria: Imprensa

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No epicentro de uma ‘crise’ não apenas financeira mas também política, continua sem se conhecer os investidores do fundo das Bahamas que quiseram controlar a Global Media, um dos mais importantes grupos de media em Portugal, incluindo os históricos periódicos Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Mas mais do que inquirir sobre quem está por detrás do World Opportunity Fund, há a ‘pergunta de um milhão’: sabendo-se que teve oportunidade de vasculhar contas e operações contabilísticas antes de concretizar a compra da quota a Marco Galinha, por que motivo o fundo das Bahamas foi adquirir uma empresa com um passivo de seis milhões de euros para depois poder controlar outra com um passivo de 55 milhões de euros, ainda por cima quase falida? E por onde andou o regulador no segundo semestre de 2023? E o Governo, que sabia da dívida de 10 milhões de euros ao Estado por parte da Global Media, não sabia de nada?


Apesar de o controlo do World Opportunity Fund sobre a Global Media se ter concretizado apenas em 23 de Outubro do ano passado – com a aquisição da quota de Marco Galinha por um pouco menos de 1,1 milhões de euros –, o actual CEO deste grupo, José Paulo Fafe, já se encontrava como gerente da Páginas Civilizadas desde 24 de Julho, ou seja, a interferência do fundo das Bahamas iniciou-se muito antes da formalização do acordo de compra.

Na verdade, ao contrário daquilo que indiciam as trocas de acusações entre os diversos accionistas da Global Media, a venda da quota de Marco Galinha, até então o sócio maioritário do grupo de media, ao fundo das Bahamas não se fez de forma repentina nem sem que as duas partes conhecessem, em concreto e por antecipação, a situação financeira em detalhe e os objectivos para o futuro. Até Marco Galinha, que não se desfez por completo da sua participação na Global Media, mantendo uma posição indirecta de um pouco menos de 25%.

Ascensão e queda: Marco Galinha (ao centro) teve em 2020 uma entrada fulgurante como empresário dos media, mas está já de saída, sendo apenas o quarto maior accionista da Global Media. Conseguiu, com a venda ao fundo das Bahamas, fugir literalmente do ‘olho do furacão’.

Como costuma ser habitual em negócios deste género, o World Opportunity Fund tratou logo de meter José Paulo Fafe na gerência da Páginas Civilizadas mesmo antes da compra de parte das quotas daquela empresa, que lhe daria o controlo indirecto da Global Media. Por regra, esse processo – que se denomina, em inglês, due diligence – permite uma averiguação detalhada dos activos e dos passivos de quem compra, para assim validar o interesse na aquisição sem surpresas à posteriori. O fundo das Bahamas passou assim, através de Fafe, a conhecer não apenas as demonstrações financeiras (e o relatório e contas) da Global Media, onde se destacava o passivo de quase 55 milhões de euros em 2022, como as operações contabilísticas em detalhe ao longo de vários meses.

Neste contexto, mostra-se bastante estranho que numa newsletter do início deste ano da Comissão Executiva da Global Media, já presidida por José Paulo Fafe, surjam acusações contra a anterior administração – liderada por Marco Galinha (que ainda se mantém na administração sem funções executivas) – de ter solicitado a fornecedores que “somente facturassem após a conclusão do negócio com o World Opportunity Fund”. Se tal ocorreu, também é certo que apenas por falta de cuidado na due diligence. Além disso, recorde-se que José Paulo Fafe e Marco Galinha mantinham relações há muitos anos, tanto assim que o primeiro refundara o semanário Tal&Qual em 2021 com autorização do segundo, uma vez que o título daquele período está registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) como marca da Global Media.

Aliás, a entrada da World Opportunity Fund fez-se sentir logo nos primeiros meses de 2023 com a renúncia de praticamente toda a administração anterior de Marco Galinha, onde pontuavam Helena Ferro de Gouveia – agora com uma veniaga na autarquia socialista de Almada –, Guilherme Pinheiro, Domingos de Andrade (que acumulava funções editoriais) e João Pedro Soeiro. A renúncia deste último, em 5 de Maio do ano passado, mostra-se estranha, porque continua a ser detentor directo de 20,4% do capital social da Global Media.

José Paulo Fafe entrou, como ‘ponto de contacto’ da World Opportunity Fund, na Páginas Civilizadas antes da aquisição da quota a Marco Galinha.

Já terá sido dinheiro do World Opportunity Fund a entrar em finais de Junho na Global Media para concretizar um aumento de capital, subsequente a uma redução para cobertura de prejuízos. Nessa altura, numa fase avançada das negociações para a compra da Páginas Civilizadas pelo fundo das Bahamas – e com José Paulo Fafe como gerente dessa empresa que controla a Global Media –, entrou em numerário, mediante a emissão de 417.792 novas acções, um total de 1.558.364,16 euros. Como a Páginas Civilizadas detém 50,2% do capital da Global Media, o World Opportunity Fund entrou, por aqui, com cerca de 780 mil euros. Desconhece-se por agora se houve entrada de mais verbas sob a forma de empréstimo de accionistas, uma forma expedita usada anteriormente, de modo a se obter rentabilidade mesmo em situação de prejuízos, e também para ser mais fácil recuperar os montantes investidos.  

Contudo, em tudo isto, mais estranho do que a própria entrada do World Opportunity Fund, um veículo de investimento que visa lucro contínuo, como accionista da Global Media – em situação económica e financeira periclitante há anos, com prejuízos acumulados de 42 milhões de euros desde 2017 –, acaba por ser a opção pela aquisição da Páginas Civilizadas, uma vez que esta empresa, criada em 2020 por Marco Galinha, apresentava um passivo no final de 2022 de mais de 6,1 milhões de euros. E isto com um capital próprio de pouco mais de dois milhões de euros. Ou seja, a World Opportunity Fund, ao comprar 51% da Páginas Civilizadas não pagou a Marco Galinha apenas 1,02 milhões de euros; também assegurou a responsabilidade por 51% do passivo, ou seja, mais de três milhões de euros. João Paulo Fafe revelou em audição no Parlamento que o World Opportunity Fund terá gastado 7 milhões de euros para adquirir a posição de 51% nas Páginas Civilizadas a Marco Galinha.

O percurso da curta vida da Páginas Civilizadas tem, na verdade, algumas situações peculiares. Constituída em 2 de Setembro de 2020 para servir de veículo financeiro para a entrada de Marco Galinha como accionista da Global Media, a Páginas Civilizadas não tem actividade editorial propriamente dita, tanto assim que contava em 2022 com apenas dois funcionários com um salário médio a rondar os 2.000 euros. Contudo, mesmo sem qualquer actividade que tal justificasse a empresa apresentou nesse ano uma facturação de mais de 6,2 milhões de euros, sendo que se contabilizaram gastos superiores a 5,7 milhões de euros, resultando, com outras despesas, entre as quais pagamentos de juros de quase 290 mil euros, um lucro de 29 mil euros.

Em Julho do ano passado, o PÁGINA UM começou a questionar Fernando Medina, ministro das Finanças, sobre as dívidas de 10 milhões de euros ao Estado por parte da Global Media, dos quais cerca de 7 milhões assumidas ao longo do exercício de 2022. O governante recusou sempre responder. Este mês, o CEO da Global Media, José Paulo Fafe, admitiu que a empresa deve, actualmente, 7,5 milhões de euros.

Que serviços (e a quem) a Páginas Civilizadas prestou com dois empregados, é uma incógnita; e para onde se destinou o dinheiro dos gastos, também se desconhece. Uma hipótese para tamanho volume de negócios terá sido a facturação de determinados serviços executados pela Global Media, uma situação que, uma due diligence, certamente detectaria como irregular e até bastante lesiva para os outros accionistas do grupo de media.

Analisando as demonstrações financeiras da Páginas Civilizadas dos seus três primeiros anos de existência (2020, 2021 e 2022), há muitos aspectos sombrios. Quando a criou, Marco Galinha não incorporou logo na Páginas Civilizadas os investimentos na Global Media e na Lusa, nem tão pouco lhe chegou dinheiro fresco dos seus então sócios a título de capital social de dois milhões de euros: o Grupo Bel e as Páginas de Prestígio, ambas ainda sob seu controlo. Com efeito, no balanço de 2020 ainda não constava qualquer valor na rubrica de investimentos financeiros, e a maior rubrica dos activos (então de 2.193.774 euros) era referente a “outras contas a receber”.

Ignora-se se o Grupo Bel e a Páginas de Prestígio chegaram alguma vez a fazer entrar dinheiro na Páginas Civilizadas, porque as demonstrações de fluxo de caixa entregues na Base de Dados das Contas Anuais estão vazias nos três anos de exercício (2020, 2021 e 2022) consultados pelo PÁGINA UM. Certo é que 2021 foi, na verdade, ano para fazer engordar o passivo da maior accionista da Global Media e da Lusa. Nesse ano, os dois funcionários conseguiram facturar um pouco menos de 165 mil euros, e entre gastos e outros ganhos, a Páginas Civilizadas até acabou o ano com um lucro de 78 mil euros.

Marco Galinha controlava a Global Media desde 2020, mas com a ‘sangria financeira’ e o calote ao Estado, começou a desfazer-se dos investimentos e também da crise, entretanto ‘chutada’ para um fundo das Bahamas.

Porém, em contrapartida, o passivo – que em 2020 era de 191 mil euros – disparou para os 10,6 milhões de euros. Uma parte deste passivo deveu-se a um financiamento de longo prazo de quase 3,4 milhões de euros – além de outro de curto prazo de cerca de 560 mil euros –, mas aparentemente a Páginas Civilizadas terá passado a assumir dívidas de outras entidades, em princípio da Global Media. Isto porque em 2021 o activo da Páginas Civilizadas passou já a incluir as participações directas na Global Media e na Lusa (valorizadas em 5,7 milhões de euros), mas no passivo, além dos quase 4 milhões de empréstimos bancários, acresceram aproximadamente 6,7 milhões de euros de “outras contas a pagar”. A quem? E por que actividade? Mistérios não esclarecidos pela gerência da empresa que já em Outubro do ano passado foi questionada pelo PÁGINA UM.

Em 2022, com o extraordinário e inexplicável aumento da facturação, embora os seus lucros tenham sido de apenas 29 mil euros, é certo que o passivo da Páginas Civilizadas desceu, situando-se, mesmo assim, nos 6,1 milhões de euros, ou seja, três vezes superior ao capital próprio. Essa redução ter-se-á devido sobretudo ao pagamento de devedores, porque houve uma redução da rubrica “outras contas a receber”, que terá permitido o abate de uma parte da dívida do ano anterior. No entanto, isto são suposições, tendo em conta a ausência de esclarecimentos da gerência das Páginas Civilizadas e da ausência de dados nas demonstrações de fluxos de caixa.

Por outro lado, a dívida de longo prazo diminui apenas para os 738 mil euros, mas em compensação a rubrica de “outras contas a pagar” (que não são fornecedores) continuou alta, situando-se nos 4,8 milhões de euros.

Ivan Hooper (à esquerda), CEO da The Winterbotham Trust Company Limited, e Clement Ducasse (à direita), sócio da UCAP Bahamas Limited, são respectivamente administrador e gestor do World Opportunity Fund, conforme registo no Securities Commission of the Bahamas (SCB). Não se conhece a identidade dos investidores.

Em suma, nesta análise financeira do PÁGINA UM às contas da maior accionista da Global Notícias, que detém também quase um quarto do capital da Lusa, talvez o maior mistério seja mesmo conhecer não tantos os investidores individuais mas sobretudo a razão pela qual um fundo de investimento das Bahamas compra parte de uma empresa (a Páginas Civilizadas) já fortemente endividada ao fim de três anos, que detém, por sua vez, uma empresa de media (Global Media) com prejuízos acumulados de quase 42 milhões de euros desde 2017, e ainda com uma dívida ao Estado que, no final de 2022, ascendia aos 10 milhões de euros.

Saliente-se ainda que o PÁGINA UM tentou ao longo do último semestre do ano passado que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) explicasse as razões pela qual não investigava em detalhe as contas da Global Media – que ainda por cima tem participação na Agência Lusa, uma empresa maioritariamente pública – para saber o motivo de não estar discriminado no Portal da Transparência o calote de 10 milhões de euros ao Estado, e conhecer outras informações relevantes. A ERC tergiversou sempre.

Em Novembro passado, por exemplo, o regulador respondeu ao PÁGINA UM que, “não obstante, pontualmente e por razões proporcionais e necessárias, poder recorrer ao cruzamento com outras fontes disponíveis para verificar o cumprimento” das exigências de informação verdadeira no Portal da Transparência dos Media, como “o universo de regulados é vasto”, procurava promover “o tratamento equitativo de todos eles”. Portanto, para o regulador, avaliar o pasquim da Vila da Pocariça [N. D., que não existe] parecia ser uma prioridade similar à da Global Media. O impacte da crise nesta empresa, com efeitos até políticos, e com eventuais consequências financeiras para os contribuintes, tem demonstrado o contrário.


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