Escreveu anteontem Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), uma espécie de manifesto panfletário que intitulou “O jornalismo caiu num buraco negro”, ao melhor estilo farisaico.
Licínia Girão é jornalista e tem o direito e o dever de opinar em matérias de jornalismo, embora tenha muitas dúvidas se o deve fazer a título de presidente da CCPJ, colocando as suas opiniões (pessoais) no site de uma entidade que tem, exclusivamente, funções de atribuição de títulos de acreditação e de disciplina dos jornalistas. E já não é pouco, se fosse feito, e bem feito, o que, infelizmente, não é o caso.
Mas, enfim, mal não viria ao mundo se a doutora Licínia Girão, nomeada por alegadamente ser “uma jurista de mérito” (apesar da escandalosa ausência de currículo científico, académico ou técnico na área, a par do insucesso no estágio de advocacia e da candidatura para acesso à formação de magistrados), não tivesse composto um hino à hipocrisia. E isso não pode ser deixado passar impune. Já na semana passada vimos demasiados ‘coveiros do jornalismo’ a chorarem lágrimas de crocodilo nas audições sobre a Global Media na Assembleia da República. Cito dois nomes: Domingos de Andrade e Rosália Amorim, expoentes dos ‘vendilhões do templo’ com as suas mercantilizações do ‘produto jornalístico’ como forma de prestar serviços a quem melhor pagar.
Lendo o texto de Licínia Girão – que faria mais sentido ser exposto no site do Sindicato dos Jornalistas (e eu sou sindicalizado), e não na CCPJ (que é uma entidade de natureza pública) -, cheio de lugares-comuns e analogismos de trazer por casa (com buracos negros, terras movediças e abismos), não consegui deixar de me enjoar (é o termo correcto) com a pureza da sua hipocrisia.
Escreve a dita doutora, presidente da CCPJ: “Nunca seremos verdadeiramente livres se os poderes não forem escrutinados. Se os jornalistas, em observância ao indissociável compromisso com a verdade, de forma isenta, rigorosa e independente não desempenharem o seu superior dever de garantir que todo e qualquer cidadão aceda a informação livre e credível”.
Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusou pedidos de acesso às actas das suas reuniões de plenário pedidas pelo PÁGINA UM, estando agora em curso uma intimação nos tribunais administrativos.
Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusou pedidos de acesso aos seus relatórios e contas, escondendo gastos e receitas, incluindo pagamentos aos seus membros, apesar de ser uma entidade pública.
Ora, a CCPJ é a exacta entidade que não quer sequer revelar se abriu ou não processos disciplinares aos ‘jornalistas comerciais‘ identificados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social como tendo participado activamente na execução de contratos comerciais.
Ora, a CCPJ é a exacta entidade que recusa mostrar como conduz e conduziu processos de averiguação contra jornalistas conhecidos e que, aparentemente, foram beneficiados (i.e., esquecidas as suas tropelias) por razões de ‘companheirismo’.
Ora, a CCPJ é a exacta entidade que fecha os olhos às maiores promiscuidades de certos jornalistas e direcções editorais, que mercantilizam notícias e influências através de supostas parcerias com entidades públicas e privadas, que mais não são do que prestações de serviços incompatíveis com a profissão, e que degradam a credibilidade de toda a imprensa.
Mas, por outro lado, a CCPJ é a exacta entidade que acolheu uma queixa do presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e fez um inédito parecer a censurar as minhas investigações que, hélas, resultaram na suspensão do dito presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia de consultor do Infarmed e na aplicação de um processo de contra-ordenação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).
A CCPJ é também a exacta entidade que acolheu uma queixa contra mim do almirante Gouveia e Melo, e lesta me abriu um processo disciplinar em fase de instrução desde Maio ano passado (sem acusação ao fim de oito meses, tendo como relator um jornalista do Correio da Manhã), antes mesmo de serem concluídas as averiguações instauradas pela IGAS em resultado de investigações jornalísticas publicadas pelo PÁGINA UM há mais de um ano. Ah, e depois teve a lata de me querer conceder uma amnistia venenosa.
E a presidente da CCPJ é, de igual modo, a exacta pessoa que mexeu os cordelinhos para que o Conselho Deontológico me fizesse um parecer censório, ao melhor estilo crápula, sem sequer considerar a minha argumentação, mas depois não teve coragem de responder ao meu repto: accionar um processo disciplinar no seio da própria CCPJ para que as ‘regras do jogo’ fossem as que constam das leis da República Portuguesa. Passaram seis meses desde esse ‘pedido’ e a resposta não veio, apesar das várias insistências para uma resposta.
Enfim, tem sido a inacção intencional e a acção enviesada da CCPJ que muito tem contribuído para descredibilizar o jornalismo aos olhos dos leitores, ouvintes e telespectadores. Se a crise da Global Media (e também da Trust in News) se deve, em grande parte, à falta de intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a crise reputacional dos jornalistas deve-se sobretudo a uma postura de corporativismo aceite intencionalmente pela CCPJ, onde todos os desvarios e deboches são permitidos se se for amigo, e onde todas as ‘perseguições’ são promovidas se houver um outsider a clamar que o rei, coitado, vai nu, e ainda por cima anda feio como o caraças.
No texto de Licínia Girão há apenas duas frases que, na verdade, fazem sentido na sua boca: “O Jornalismo caiu num buraco negro. E os jornalistas estão ancorados em terras movediças a um passo de tombarem também para o abismo”. De facto, ela e os outros membros que compõem a CCPJ são a prova de que esse ‘buraco negro’ existe, até porque eles andam a cavá-lo há muito.
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