Um quarteto (e uma voz) a zurzir no país

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Maria Afonso Peixoto|14/01/2024

Título

Assim se faz em Portugal

Autores

Luísa Costa Gomes; Filipe Homem Fonseca; Afonso Cruz; Manuel Monteiro

Editora (Edição)

Minotauro (Outubro de 2023)

Cotação

16/20

Recensão

Assim se faz Portugal, editado pela Minotauro (chancela da Almedina), nasce de um Podcast da TSF com o mesmo nome. Na verdade, este livro é a versão ‘encadernada’ dos episódios que foram para o ar, diariamente, entre Março e Julho deste ano. Em cada um deles, Maria Rueff disserta sobre o país, fazendo uso da sátira e a caricatura – algo que faz como ninguém –, à crítica social mordaz. Contudo, as palavras da humorista não são da sua autoria, mas sim dos quatro escritores que agora assinam este livro. 

E se no programa de rádio, Maria Rueff empresta a sua voz aos textos deste ‘quarteto fantástico’, na versão literária ficou encarregue do prefácio. Ou será que não ficou? Como o leitor rapidamente descobrirá, a prosa não é o seu dom, e é, assim, logo no prefácio que se introduz a tónica humorística, desenganando-se quem espera ler um texto escrito pela mão de Rueff.

Todos os autores são figuras bem estabelecidas no mundo nas Letras.

Luísa Costa Gomes deu cartas em estilos tão variados como os romances, crónicas e contos, tendo recebido alguns prémios, onde se inclui o Prémio de Ficção do PEN Clube.

Filipe Homem Fonseca, ao título de escritor soma ainda os de argumentista, dramaturgo, humorista, músico e realizador. Também já escreveu para diversos géneros de produções audiovisuais, desde séries de televisão a documentários, e é autor de dois livros de poesia.  

Manuel Monteiro, o novo colunista do PÁGINA UM, é escritor e um destacado revisor linguístico, tendo criado a Escola da Língua. Um dos últimos livros que publicou debruça-se sobre um tema já por diversas vezes falado neste jornal, e chama-se Sobre o Politicamente Correcto. Para nosso deleite, recupera este assunto também neste Assim se faz Portugal.

Já a arte de Afonso Cruz é sobretudo a escrita de romances, alguns deles premiados, e dos quais se destacam as obras Para onde vão os guarda-chuvas e Jesus Cristo bebia cerveja.

Assim se faz Portugal é, sobretudo, tal como o programa da TSF que lhe corresponde, um livro que entretém, caricaturando a sociedade portuguesa. É o exercício de nos olharmos ao espelho e rirmo-nos; e que os autores fazem belissimamente, com inteligência, perspicácia, sagacidade. Como não poderia deixar de ser, sempre num português majestoso.

Com um sentido de humor afiado, estas reflexões incidem sobre as mais variadas questões sociais e culturais, ou até políticas; por vezes, todas estas dimensões, inevitavelmente, se misturam.

Garantindo que não existe da nossa parte qualquer favoritismo em relação a Manuel Monteiro por ser nosso colaborador, temos de lhe fazer justiça: as suas crónicas sobressaem-se pela pertinência, e, qual lufada de ar fresco, destoam da linha mais ‘politicamente correcta’ que perpassa por alguns dos outros textos. Eis o que ele escreve sobre a figura muito representativa de “O moderninho digital”:

O moderninho digital não procura informação para formar ideias. Ele forma ideias para procurar informação.O moderninho digital é um ser espantoso: ele reproduz acriticamente o que ouve da sua tribo e simultaneamente jura que tem pensamento próprio”. (pág. 106).

Manuel Monteiro também se lança à “higienização em curso” que levou à recente censura, por exemplo, dos livros de Roald Dahl, e à qual não escaparam as palavras “mãe” e “pai”.

Quase nada ficou por passar a pente fino por este divertidíssimo quarteto. Desde a linguagem (e o linguajar), à inteligência artificial (e a estupidez natural), e da espuma dos dias às bizarrices dos seres humanos (e em particular dos portugueses, ou de algumas camadas da juventude).

Apenas se lamenta algumas ocasiões em que a crítica vai no sentido mais “fácil”, isto é, na linha do que convenciona a moral vigente. Um exemplo disso é esta passagem, pela mão de Afonso Cruz:

Continuamos a assistir a inúmeras desigualdades cuja existência é vergonhosa. Nalguns casos, como a fome, a guerra e a miséria (…)”. (pág. 100).

Não é de chocar que o tema das desigualdades venha à baila quando se faz crítica social, mas não deixa de ser uma matéria tão ‘mastigada’, que se torna enjoativa; porquanto, este tipo de homílias sobre as injustiças e agruras da vida, já nós ouvimos todos os dias: na comunicação social, na política, e por essas redes sociais fora. Repisar estes assuntos quando se faz sátira é uma opção válida, mas não é irreverente; lembra os humoristas de hoje a condicionarem-se pelo discurso polido que alguns querem impor.

Em conclusão: foi uma ideia iluminada, a de “transformar” a rubrica radiofónica numa versão a ser lida. Para quem ainda possa ter prendas de Natal em atraso, esta é uma sugestão sólida.

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