CARTAS DO VELHO DO RESTELO

Diálogos hodiernos: eu, eu, eu e mais eu

brown paper and black pen

minuto/s restantes


Gosto de observar o comportamento humano.

Gosto de anotar diálogos para os usar na ficção. Porquê? Porque gosto de que sejam o mais verosímeis possível.

Ultimamente, noto que as pessoas interrompem mais as outras para pôr o seu ego em cima da mesa. Tem a minha amostra significância estatística? Não sei. Pelo que ouço e observo (actividades a que me dedico com suficiente interesse e entrega), mais pessoas sentem o mesmo que eu.

woman using telescope

Já ouvi um indivíduo contar, aflito, a experiência que tivera no fim-de-semana, a sensação de ver a morte a abeirar-se enquanto surfava, o medo e a sombra que ainda o acompanhavam, e ser subitamente interrompido a meio da história por outro:

— Isso não é nada. Eu já estive em ondas de oito e dez metros. Uma vez, em África… [E começou uma longa história com decénios, matando a possibilidade de o outro fazer a catarse do seu medo.]

Já ouvi pessoas a interromper outras que contam uma história cheia de mistério e drama a um grupo, para introduzir pormenores de absoluta irrelevância:

— E a senhora estava a esvair-se em sangue na margem da estrada. Saí do carro, fui ver o que podia fazer, liguei para o 112, e saiu um tipo de um descapotável azul para me gritar que eu não podia estar ali parado, e então tive de…

— Não, o carro não era azul, era cinzento. Tenho a certeza, porque tenho muito boa memória visual. Já na escola me elogiavam a memória visual. Com nomes, não sou tão bom.

Já ouvi anedotas que não chegaram ao fim, porque foram interrompidas por aquele que tem de ser sempre o ocupante-mor do palco:

— Eu conheço essa, é muito antiga.

people having a bonfire

Num ápice, abreviou a anedota e revelou o final. Acrescentou de seguida:

— Muito melhor do que essa é aquela… [E daí em diante, substituiu o orador da anedota, desatando a contar anedotas em que ria mais do que todos os ouvintes e marcando o ritmo com a invariável frase: «Esta é muito boa, não é?»]

Já ouvi pessoas dizer que fazem anos nesse dia, esperando receber, no mínimo, os parabéns, e que, em lugar de receberem umas palavras sobre o seu aniversário, ouviram:

— Curioso, o meu filho também faz anos no dia vinte e seis como tu, mas em Outubro. E a minha filha faz três dias antes, no dia vinte e três, mas também faz noutro mês: faz em Janeiro. E o meu irmão faz no dia vinte e um de Maio. Fazem todos entre vinte e um e vinte e seis com dois, três e cinco dias de intervalo cada um.

Recentemente, tomei nota do seguinte diálogo:

— Estou doente.

— Olha, eu estive doente há dois meses. Não foi bem há dois meses. Foi há um mês e meio. Mês e meio, dois meses. Sim, por aí. Estava com uma dor de cabeça, uma sensação estranha pelo corpo. Quando pensava que estava curado, baixei a guarda e… olha… tive uma recaída. Fiquei com a vida suspensa, ainda hoje tenho coisas atrasadas. Estou para aqui a tratar de coisas que deixei penduradas.

white ceramic mug on white table beside black eyeglasses

— Eu estou com…

— Pois, agora há uma série de coisas, é só pessoas com vírus, gripes, alergias. Conheço tanta gente que está doente.

— Nem me deixaste dizer com o que é que estou.

— Não te irrites.

— Dizer-te que não me deixaste dizer com o que é estou é a expressão de um facto.

— Que raio de linguagem é essa com um amigo? «É a expressão de um facto»? Parece que estou no tribunal.

— Tu não me deixaste dizer sequer o que tenho. Tu só falas de ti.

— Bem, hoje decidiste sentar-me no banco dos réus. Só falo de mim? Até estava a falar de pessoas que conheço. Isso que disseste é bastante injusto. Olha, estou agora a tratar de uma série de problemas da vida dos outros. Estava a tentar animar-te, tu é que disseste que eu só falava de mim. Porque sentiste necessidade de me atacar? Compreendo, estás doente. Mas não é a atacares quem é teu amigo e te ajuda que vais melhorar. Quando eu estava doente, nunca ataquei ninguém. Antes pelo contrário! É que não adianta mesmo nada atacares quem te ajuda.

man in black shirt sitting beside woman in white shirt

— Quem é amigo ouve, especialmente na doença, que ainda nem sabes qual é. Se eu te dissesse que me tinha morrido um ente querido, procurando desabafar contigo, também me dirias a lista de conhecidos teus a quem morreu um ente querido?

— Tenho a paciência de um santo. É o segundo insulto e a segunda mentira. Só falo de mim, primeira mentira. Não sou amigo, segunda mentira. Estás a ser extremamente estúpido e extremamente injusto.

— Isso não é um insulto?

— Não. É a expressão de um facto! Além disso, quem é que começou a insultar? E outra coisa: o que eu disse é verdade, ao contrário do que tu disseste, que é mentira. E eu disse «estás», não disse «és»!

— Não vou discutir mais, porque não adianta e porque estou com trinta e nove de febre.

— Não adianta, não, sabes que tenho razão.

— Mudando de assunto, para a semana, faço anos e vou celebrar o meu aniversário. Se melhorar, claro. Marca já na agenda o dia 10, O. K.?

— Vê lá se queres um não-amigo na tua festa.

Minions toy on railings

Termino com uma nota para todos os escrevinhadores inflados que querem publicar a sua escrita sem nunca ter lido um livro, para os influenciadores de toda a espécie e pinta que usam «eu» em todas as frases, para os teorizadores que pensam que a sua vida permite extrapolar máximas e teorias para todos (que, coitados, não terão vida), para os egomaníacos que escoam a vida para as redes sociais, sejam as fraldas do bebé, os pratos que comem, seja o gato, sejam desabafos diarísticos: não é por ter acontecido a ti que isso é importante para o mundo.

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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