ERC até defende que cinema da Câmara de Lisboa é afinal um local privado

Inédito: Regulador dos media diz ser aceitável exigir pagamento a jornalistas para cobrirem eventos públicos

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por Pedro Almeida Vieira // Janeiro 18, 2024


Categoria: Imprensa

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O V Congresso dos Jornalistas começou hoje. É um evento duplamente público: teve inscrições para jornalistas e não-jornalistas, realizando-se num espaço público (Cinema São Jorge, em Lisboa), pertencente à Câmara Municipal de Lisboa desde 2001. O Estatuto dos Jornalistas diz claramente que os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer em locais abertos ao público quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional. Mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) defende que afinal este evento de jornalistas, financiado por empresas privadas, pode exigir aquilo que nunca ninguém fez: condicionar a cobertura noticiosa de um evento público – que recebeu hoje o Presidente da República e terá mesmo deputados a debaterem a situação da imprensa – a um pagamento prévio. Numa deliberação urgente a concordar com esta cobrança inédita, a ERC comete um ‘conveniente’ erro para defender a sua tese: atribui o estatuto de “local privado” ao Cinema São Jorge para legitimar um pagamento prévio para cobertura noticiosa. Abriu uma caixa de Pandora.


A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) considera que a exigência de uma inscrição prévia, em montante arbitrário, para a realização da cobertura de um evento público é uma opção válida e “não consubstancia um tratamento discriminatório”. A decisão do regulador, divulgada pelas 17h00 desta quinta-feira, através de uma deliberação de oito páginas, resulta de um pedido de intervenção do PÁGINA UM por via da exigência da Comissão Organizadora do V Congresso dos Jornalistas, que se inicia esta tarde no Cinema (público) São Jorge, e que conta com o apoio financeiro de 13 empresas e uma fundação não ligadas ao sector dos media.

Apesar do Estatuto do Jornalista determinar que “os jornalistas têm acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa” e que somente nos “espectáculos ou outros eventos com entradas pagas [como o caso do Congresso dos Jornalistas] em que o afluxo de espectadores justifique a imposição de condicionamentos de acesso” se pode implementar “sistemas de credenciação de jornalistas” – não se conhecendo até agora a exigência de pagamento de qualquer verba, quando tal ocorre –, a ERC considera legítimo que a organização deste congresso, presidida pelo jornalista da SIC Pedro Coelho, imponha um pagamento prévio.

Helena Sousa, presidente da ERC, na tomada de posse, cumprimentando o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva.

Na sua deliberação, o regulador agora presidido por Helena Sousa começa por considerar que “o direito de acesso a locais públicos não constitui um fim em si mesmo”, mas antes uma forma de acesso à informação, o que conclui ser legítimo que o Congresso dos Jornalistas – financiado por empresas privadas fora do âmbito dos media e apoiado também pela autarquia de Lisboa, proprietária do Cinema São Jorge” – imponha um preço de entrada a jornalistas que manifestem a exclusiva intenção de cobertura noticiosa.

A ERC considera que “a verba é exigida [pela Organização do Congresso dos Jornalistas] a todos os interessados elegíveis, em montante idêntico, sendo clara e declaradamente assumida como uma das receitas utilizadas para o financiamento do congresso”, acrescentando que não cabe ao regulador “sindicar o sentido de tal opção nem discutir se esse financiamento pode ou deve igualmente integrar contributos de entidades públicas e privadas.”

Recorde-se que, numa altura em que a credibilidade do jornalista é colocada em causa pelas promiscuidades com empresas e poder político, o V Congresso dos Jornalistas – organizado pelo Sindicato dos Jornalistas, Casa de Imprensa e Clube de Jornalistas – decidiu não apenas solicitar inscrições aos participantes e jornalistas que queiram cobrir os eventos, mas também abrir os ‘cofres’ para à entrada de dinheiro, em quantias não divulgadas nem sob eventuais contrapartidas, do Grupo Brisa, da REN, da NOS, dos bancos Santander e Millennium BCP, da Mota-Engil, da Google, da Mercadona, da Delta, da seguradora Fidelidade, da KIA, da Xerox, do IKEA e da Fundação Oriente.

A ERC diz que Cinema São Jorge é um local privado e que a organização do Congresso dos Jornalistas pode condicionar a cobertura noticiosa ao pagamento prévio de uma verba. Contudo, o Cinema São Jorge é um local público e o evento é público, porque estavam previstas inscrições de não-jornalistas.

Além destas entidades privadas, o evento conta ainda com apoios institucionais, em moldes também não revelados, do Cenjor, da Agência Nacional Erasmus, da Fundação Inatel (tutelada pelo Governo), da Universidade Autónoma de Lisboa e da Câmara Municipal de Lisboa. De entre estas 19 entidades privadas e públicas de relevância noticiosa, somente o Cenjor – um centro de formação de jornalismo – tem ligação directa a temas relacionados com a imprensa.

Na defesa do sua tese, a ERC até considera que, “em rigor, o local [Cinema São Jorge, um espaço detido pela autarquia de Lisboa] onde se realizará o Congresso dos Jornalistas [que será inaugurado pelo Presidente da República e contará com debates onde participarão deputados e mesmo dos reguladores] não é um local aberto ao público”, apesar de o Estatuto dos Jornalistas determinar que “os jornalistas têm o direito de acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa”.

Com efeito, e isto não é uma irrelevância, até porque repetido várias vezes na deliberação da ERC, o Cinema São Jorge não é um “espaço privado”, pois pertence à Câmara Municipal de Lisboa desde 2021, sendo gerido pela empresa municipal EGEAC. Ou seja, o Congresso dos Jornalistas é um evento duplamente público: é aberto ao público – inscrições eram feitas pelo TicketOnline, podendo os ingressos ser adquiridos até por não-jornalistas – e realiza-se num edifício público cedido por uma autarquia local. Mais público não poderia ser.

Pedro Coelho, jornalista da SIC e presidente do V Congresso dos Jornalistas, inovou: num evento público com financiamento de 13 empresas e uma fundação, exigiu pagamento prévio para ser possível a cobertura noticiosa dos debates.

Contudo, seguindo a tese estapafúrdia de ser o Cinema São Jorge supostamente um espaço privado (que é tão privado como a sede da ERC, na Avenida 24 de Julho em Lisboa), o regulador presidido por Helena Sousa argumenta que “o acesso ao espaço (privado)”, como repete, “em causa “é restringido a jornalistas, estudantes, professores, observadores e convidados da organização” [sendo que estes últimos não pagam], e repete um erro crasso e relevante ao reiterar, mais adiante na sua deliberação, que “o Cinema São Jorge é um espaço (…) privado”.

Além desse incompreensível ‘erro’ sobre a propriedade do Cinema São Jorge, a ERC também tece uma tese curiosa que acaba por colocar questões deontológicas sensíveis. Com efeito, o regulador salienta que “o [na verdade público] Cinema São Jorge (…) albergará um evento destinado aos jornalistas enquanto tais, para discutir assuntos da profissão, ainda que o acesso a esse evento não lhes seja assegurado com vista ao desempenho da sua actividade de cobertura noticiosa” ressalvando, contudo, que “uma vez nele presente, [os jornalistas] possam, no todo ou em parte, exercitar essa sua atividade típica”.

Ora, ao inscrever-se e adquirirem o direito de participar na votação de moções, esses jornalistas deveriam estar, por princípio, impedidos de fazerem a cobertura noticiosa para os seus órgãos de comunicação social, uma vez que o Código Deontológico estabelece que “o jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse”.

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Por fim, o regulador que salienta ser facultativo a possibilidade de credenciação, mas nem sequer reparou que entra em contradição, porque, assim sendo, somente se pode aplicar o princípio geral de acesso, que explicitamente diz que “os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais [abertos ao público] quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei”. Ora, a lei não determina – e nunca tem sido prática – o pagamento de uma verba, independentemente da ERC considerar não ser demasiado elevada, sem especificar qual o limite de razoabilidade.

Assim, com esta decisão o regulador abre a porta para que, em eventos públicos – incluindo outros congressos, espectáculos e mesmo convenções partidárias – passe a ser necessário uma inscrição prévia e um pagamento de entrada para efeitos de cobertura noticiosa. Ora, como a organização está livre de efectuar convites, a imposição de um preço de entrada pode ser um factor condicionante à liberdade de acesso às fontes de informação para jornalistas incómodos. Mas esse aspecto não foi sequer reflectido pela ERC.


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