RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Mariana Maria, só

por Rui Araújo // Janeiro 18, 2024


Categoria: Exame

minuto/s restantes


A vida de Mariana Maria – conhecida por Mariana Campaniça – no Alentejo profundo… e deserto.

Do alto dos seus 86 anos, a viver uma vida solitária tendo como centro do mundo a sua taberna.

Uma história de pobreza e trabalho. E amor.


Terras agrestes e escalvadas.

 Alentejo, uma tarde destas… abrasadora.

Primeiro, um casario velho, em ruínas.

Um dia, já lá vão muitos anos, aqui, neste monte, viveu gente…

Ao lado de um charco sem nome um macho mata a sede ou engana a caloraça.

(Imagem: Valter Leite)

Lá ao fundo, na estrada secundária (as mais interessantes!), damos com dois pastores e um rebanho. E com os carris. Calha bem, o nosso destino é a Gare de Ourique.

A imagem do progresso é ardilosa, mas é assim mesmo. O despovoamento e a desertificação também não pouparam este lugar recatado. É a sina do interior de Portugal.

Na estação já não param comboios. Os poucos que ainda passam por este ramal da Linha do Alentejo são os da mina (de cobre e zinco) de Neves Corvo.

Diante do edifício fica o Café Primavera.

Clientes, esses, nem vê-los ou quase. O estabelecimento está às moscas…

Mariana Maria, conhecida desde cachopa por Mariana Campaniça, é a dona da taberna. Tem 86 anos feitos, nasceu no Atravessado.

 A minha vida foi sempre no campo e sempre a trabalhar. Eu desde os 10 anos, vim a trabalhar: cuidar bestas, cuidar vacas, descalça, vim trabalhar. Ia ganhar um panito. Ia ganhar uns 5 tostões ou 10 tostões. Nesse tempo era assim. E era para levar para casa que era para a gente comermos todos. Era o pai e a mãe a trabalhar e não chegava. Doze moços de roda de uma mesa, não dá. Com mais 2, o pai e a mãe…

É preciso deixar passar as horas e os minutos. E o tempo, aqui, quer se queira quer não, arrasta-se.

(Foto: D.R.)

Mariana Maria, vive, aqui, sozinha, paredes meias com a negrura do lugar e as recordações do mundo que é o seu. E com os sonhos…

— Quando era criança queria ser muita coisa. (RI-SE) Era o que eu podia fazer. Queria ser rico, queria ser rica, queria ser bonita, nunca fui uma coisa nem outra…

Mas o pior é a miséria.

Mariana Maria começou a trabalhar ainda catraia. E nunca parou, até hoje. É a mulher dos sete ofícios. E correu o país: Odemira, Vila Nova, Beja, Serpa, Carregueiro, Funcheira… até que um dia comprou a tasca, em Ourique.

 — A minha vida foi andar ceifando e mondando no campo.  E quando eu ia para casa, ia a um baile, a uma festa, via as outras senhoras, outras meninas, todas vestidas de ar, todas bonitas e eu com o vestido de chita, daquele que nem sequer se podia tocar numa esteva. Não havia cascanhol… Eu, com o vestidinho de chita, digo: vida de um cabrão. Só eu é que nasci pobre…

(Foto: D.R.)

Mariana Maria é, acima de tudo, uma rebelde. Faz o que quer (sempre fez!) e não tem medo de ninguém.

— Eu não tenho medo! Tenho ali uma debaixo da cabeceira que é assim deste tamanho. (SIMULA UM DISPARO) Está mesmo debaixo da cabeceira da cama. Se eu ouvir mexer na porta, não preciso de me levantar. É só olhar para a porta e quando aparecer qualquer coisa lá à porta, toma.

Ia à caça, fumava, bebia uns canecos e era danada para o fado, as «modas» e o «cante ao baldão» (o despique ou as desgarradas!). Era e é…

 Vou cantar a moda da Marianita. Oh, não. Vou cantar outra…

Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…

Quero ir ver o meu amor,

Visitar lá mais alguém…

Quero ir ver o meu amor,

Visitar lá mais alguém…

 Agora é que eu vou andar,

Agora é que eu vou andando


Da noite para o dia, o pai das suas três filhas partiu. Para nunca mais voltar.

Mariana Maria não se queixa. Há males maiores. Há a morte. E há Deus.

— Quem é que viu Deus? Ninguém vê, mas eu já o vi. Fui obrigada a vê-lo…

— Como?

— Eu vou-lhe contar…

A filha morta apareceu-lhe uma noite no quarto. A imagem pode parecer irreal, mas cumprida a promessa sumiu-se. Para esta mulher, Deus… Deus e a Fé datam daí…

 — Todas os dias rezo na minha cama quando me deito e quando me levanto. Tenho uma oração que eu digo todas as noites.

(Foto: D.R.)

“Com Deus me deito. Com Deus me levanto. Por amor de Deus e do Espírito Santo.

Digo isto três vezes.

Foi uma vida sacrificada, mas cheia.

E há sentimentos que ganham hora a hora outra dimensão.

— Isto agora é a moda:

Se ele adora mais alguém,

Se me ama a mim sozinha,

Quero ir para o altar…


(CALA-SE)

 — Não é isto!

— Gostou mesmo…

 — Já me enganei…

— Gostou mesmo daquele homem…

— Não pode tirar esse bocadinho?

— Não. Não se pode. Gostou mesmo daquele homem…

— Gostei mesmo. Foi bom moço. Não era… coitado.

— Ele foi o grande amor da sua vida…

— Foi. Já não namorei mais nenhum.

— O que é que é o amor?

— A gente… A gente gostar da pessoa. Aproximar-se à pessoa. Gostar dela. sentir… Sentir… Isso é coisa que não se pode explicar.

Há muitas mais coisas que não dá para explicar…

(Foto: D.R.)

Aqui fora, o dia está a morrer.

A luz incerta do lusco-fusco ou a penumbra, anuncia o momento das despedidas.

Lá dentro, Mariana Maria dorme ou vela. Ou fecha os olhos, simplesmente, a pensar que amanhã continuará a lutar pela vida… já que apesar de estar entrevada foi condenada a viver só.

Nota: Mariana Maria faleceu pouco depois de estarmos juntos.

Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2018.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.