Pode-se, de uma maneira geral, confiar na confissão de um desesperado, e, como nem todos se confessam à hora da morte, a capacidade de desespero é só concedida a alguns e eu não era um deles.
Graham Greene
OS COMEDIANTES (1966)
Aquilo que me foi dado ver pareceu-me uma valente porcaria de impacto deveras duvidoso, uma autêntica fábula moral daquelas em que só as crianças inocentes e os sábios videntes ousam dizer que o rei vai nu. Parecia tanto que concluí que devia ser mesmo. Mas, não vá o diabo tecê-las, decidi partilhar a história convosco. Pode ser que me tenha escapado algum grãozinho de areia que torne logo esta fábula menos degradante. E, como tal, muitíssimo menos deprimente.
O grande feito passou esta semana nas notícias, encavalitado entre reportagens de encontros literários e previsões de tristeza e abandono para a próxima Feira do Livro em Lisboa. A primeira coisa que me ocorre é que não estamos propriamente perante um feito – e que, mesmo que o fosse, nunca seria assim tão grande como isso. Portanto, parece-me que estes pesos e medidas ditam logo à cabeça a conclusão lógica de que esta historieta nem sequer mereceria aparecer ensanduichada nas notícias culturais do dia. Mas como isto é apenas o que me parece a mim, e eu nem sempre sigo a construção destes grandes feitos tão atentamente quanto deveria, respeitei a responsabilidade de escrever para milhares de leitores provavelmente ainda menos informados do que eu; e, antes de mais nada, tratei de organizar uma pesquisa mais séria e mais sistemática sobre o assunto.
Descobri logo que não há assim grande informação sobre o grande feito, o que já de si é um péssimo sinal. Não me parece que nenhuma informação deva ser promovida ao estatuto de notícia[1] se os espectadores não tiverem, caso fiquem interessados[2], mais informação disponível para começarem a saber com o que é que contarão dali em diante – neste caso específico, em termos de publicações. A editora propõe-se oferecer-nos uma colecção de quinze “grandes clássicos da literatura portuguesa”, pelo amor de Deus. Era bom sabermos qual foi o critério de escolha desses clássicos[3], e, presumindo que a resposta não é “à balda,” com que regularidade se prevê disfrutarmos do seu lançamento no mercado livreiro.
Ainda dentro do pelouro dos desagrados de menor incómodo, a notícia disse-nos que a colecção vai ser oferecida aos portuguesas por uma editora chamada LEVOIR, que, neste caso, irá trabalhar em conjunto com a RTP[4]. De facto, a senhora que apareceu a mostrar um pouco mais de entusiasmo ao falar destes quinze livros, recordando-nos que “ainda nunca se tinha feito em Portugal nenhuma colectânea de grandes clássicos portugueses,[5]” falava português com um sotaque francês carregado. Um pouco mais de investigação, e descobrimos que as edições LEVOIR são um subsector da ALMEDINA, embora nenhum subtexto nos explique o que distingue a casa-mãe da sua filha afrancesada[6]. Enfim. Se conseguimos chegar até aqui calmamente, a culpar-nos a nós, e não aos outros, por tudo o que nos incomoda nestas modernices, agora a seguir vem de lá a parte pior.
Estes quinze grandes clássicos não se destinam a difundir em Portugal o prazer das belas letras.
A primeira obra a publicar será a MENSAGEM, de Fernando Pessoa, mas o livro não foi concebido para nos levar, silenciosamente, à luz da vela e em passos de veludo que não dispersem quase uma centena de anos de colónias de morcegos[7], até ao fundo do mundo interior do poeta. É mais que vai ser enfiado num funil e empurrado à força pela garganta das pessoas, mesmo com toda a força, mesmo até ao fundo.
Nesta colecção de Grandes Clássicos da LEVOIR, fiquem sabendo que tanto a acção como o texto hão de cair-vos em cima… em banda desenhada.
Ai, não.
Não, não, não, não.
Enfiar o universo da MENSAGEM numa banda desenhada de recorte pueril[8] não é nenhuma forma de “estimular entre os jovens o prazer da leitura,” ou qualquer outra parvoíce que possa dizer-se a esse respeito. Os jovens, coitados, têm sempre as costas largas. Este género de esforço é tão abominável, e tão inútil, como as tirinhas de BD de História de Portugal que constavam do manual de 6º ano dos meus filhos: alguém achava – mesmo – que os miúdos de nove e dez anos que foram criados pela televisão[9] conseguem compreender o sentido dos rostos contorcidos à frente e com grandes incêncios atrás que constam dos quadradinhos relativos ao Grande Terramoto de 1755? Quantas vezes é que pensam que eu apanhei com as perguntas fatídicas “o que é isto, mãe?”, ou “o que é isto, Clara?”, ou “Ou o que é isto, Professora?”, porque os fenómenos em causa estavam descritos em banda desenhada?
E agora o ataque dos Grandes Eventos explicados em BD é direitinho à literatura, a demonstrar que já nada é sagrado, mesmo.
Se mais ninguém disser que o rei vai nu, eu, por mim, chego-me já à frente. Querem o exemplo acabado de um projecto que não é bom para ninguém? Ponham os olhos neste.
Não estou para aqui a resmungar. Estou apenas, com toda a tranquilidade possível, a reafirmar que existem áreas separadas. Se podemos argumentar com uma grande parte de verdade que as pessoas deixaram de ter tempo e de ter espaço, tanto exteriores como interiores, para continuarem a ler boa literatura[10], então devemos procurar uma forma produtiva de fazer frente a esta falta de contexto. Não é propriamente apresentar-lhes um resumosinho da história, como acontece tantas vezes na Wikipedia e na escola, que poderá, alguma vez, devolver-lhes o prazer como não há outro de serem parte integrante de uma obra de arte, já que cada livro é ele mesmo e o seu leitor – um livro que não estiver a ser lido é um livro que não existe.
A boa BD é uma coisa. A boa literatura é outra coisa. Os formatos de suporte para cada uma destas duas coisas não podiam ser mais diferentes. É vergonhoso, positivamente vergonhoso, andarem a refugiar-se atrás de pretextos inúteis, tais como “atrair os jovens.[11]” E não poderiam inventar uma forma mais saloia de homenagear os nossos “grandes clássicos”.
Que, à excepção do primeiro da lista, ninguém nos disse quais são.
Mal feito, mal feito, mal feito.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] E note-se que era uma notícia de mais de cinco minutos, que passou numa quarta-feira – ou seja, era uma notícia grande e passou mesmo a meio da semana, em plena competição por espaço e tempo característica dos dias úteis.
[2] E olhem que era uma notícia concebida para espectadores muitíssimo impenitentes. Estava positivamente feita com os pés, sem o carinho e a beleza que a literatura exige para ela própria se levar a sério; e, embora aparecessem diversas personalidades a debitar bastantes balelas, chegava-se ao fim sem sequer se perceber se o formato vai ser o do livro ou o do fascículo. Acrescente-se que o material que está postado online também não nos tira qualquer uma destas dúvidas.
[3] A menos que a resposta seja apenas, e tão laconicamente quanto possível, “eram livros que já estavam no domínio público.”
[4] Estou a simplificar. O “em conjunto com a RTP” já foi informação que encontrei online. A notícia da televisão era mesmo minimal.
[5] Hm? Mas… mas…
[6] De certeza que a ALMEDINA também pertence, por seu turno, a outra grande editora qualquer; mas isso não está esclarecido em lado nenhum. Nem eu gosto de ir fazer investigação para depois voltar de lá deprimida.
[7] A data da primeira publicação da MENSAGEM foi 1934. Vamos em 90 anos passados sobre este marco literário. E, já agora, aproveitamos para oferecer factoides aos nossos leitores.
[8] Apareciam páginas do livro na peça informativa. Isto não é um juízo de valor sobre o talento do artista que as fez. É um grande aperto no peito quando pensamos na forma como todo este material será tratado.
[9] Quando eu adoptei os meus filhos já não podia fazer grande coisa a esse respeito. Mas dei-me rapidamente conta de que todos os colegas e amigos deles, na escola e na rua, tinham sido criados da mesma maneira.
[10] Até o meu Sebastião, que interioriza com grande rapidez os comportamentos-chave das pessoas, começa a dar alguns sinais de impaciência ao fim de dez minutos, quando eu estou a ler na cama, e – assim lhe parece – gaita, raios me partam, a grande malvada da mulher nunca mais apaga a luz.
[11] A sério. É horrível. Eu já fui jovem, e lembro-me muito bem destas políticas. Tudo o que fosse destinado aos “jovens” era fatidicamente medíocre. Meu, que sufoco. Tirem as patas e deixem-nos em paz.
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