Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
43 – De como os dinossauros inventaram o vinho
Assim que Batota saiu para comandar a discretíssima transferência da morta para o rabecão do IML, todos os escritores se dirigiram aos seus apartamentos.
Só eu permaneci no salão. Jogado em uma cadeira, escutava atentamente as fitas que já gravara. A medida que os registros refrescavam minha memória, eu registrava na minha caderneta todas as frases mais fortes e retocava aquelas que, antes, anotara precariamente.
Aquilo se estendeu por muito tempo. Fiquei impressionado com o grande número de frases ambíguas, comprometedoras mesmo, pronunciadas pelos escritores. O que o meu gravador registrara não os ajudava em nada. Aliás, provava que todos eles em algum momento, como diz a gíria, haviam pisado no tomate. Por duas ou três frases, todos eles surgiam como potenciais suspeitos. Todos ou quase todos tinham falado muito mal de Miguela de Alcazar. Caso se constatasse que a anciã fora mesmo assassinada, todos eles poderiam ser, em tese, autores do crime.
Tendo como base o número de frases comprometedoras pronunciadas por cada um, esbocei uma detalhada tabela de suspeição.
Depois, rascunhei o esquema da reportagem que escreveria para o Correio de Brasília.
Lá pelas tantas, cabeceei. Acomodei-me em uma poltrona da plateia e cai num sono agitado. Sonhei com facas ensanguentadas, estampidos, gemidos, gritos de terror, corpos sem cabeça e cabeças sem corpo.
Despertei sobressaltado com uma vigorosa palmada que Batota me deu no joelho.
– Como podes estar a dormir num dia como este, pá?
– Cansaço acumulado – bocejei. – Que horas são?
– Sete menos dez. Vamos começar a noite com uma sessão de aperitivos.
Em cima do estrado, o garçom míope distribuía pratos e talheres pela imaculada toalha branca que cobria a mesa redonda. Num carrinho ao lado da mesa, havia muitas garrafas.
Garrafas! Esse é o meu ponto mais fraco, confesso. Sei que quase invariavelmente elas contêm líquidos relaxantes. Gosto igualmente de vinho, gin, rum, uísque ou cerveja. Em grande quantidade, de preferência. A qualidade é importante, eu sei, mas, como meu salário é modesto, em geral, não me concentro nesse quesito. Antegozando o surdo estouro das rolhas ou o suave rascar de tampas sendo giradas, comecei a salivar.
Lembrei, então, que não havia bebido um só copo de água durante aquela longa tarde. Minha língua colou-se de imediato ao céu da boca.
– Água! – gemi.
O garçom veio até onde eu estava com uma bela garrafinha verde de água Perrier. Bebia-a de um só gole.
– Me dê mais duas – pedi.
– Nunca vi ninguém gostar tanto de água! – espantou-se Batota.
– Odeio água – expliquei. – Só bebo água quando preciso lavar o salão antes de um baile.
– Salão? Baile?
– Baile de destilados e fermentados – apontei o carrinho das bebidas. – Pretendo beber uma barbaridade. São raras as ocasiões em que me vejo diante de tantas belas garrafas.
– Gostas de beber?
– Gostar é um verbo que não expressa a grandeza do meu sentimento, seu Manoel. Ainda não foi inventado um verbo que…
– Em Portugal, adoramos o vinho.
– O verbo adorar não está mal, mas ainda está bem distante de descrever o meu verdadeiro sentimento por destilados e fermentados.
Resolvi então deitar um pouco de falação sobre essa minha paixão:
– A ligação dos homens com a bebida começou com o vinho. No início dos tempos, nossos ancestrais não eram nem carnívoros nem herbívoros. Eram bebedores. Bebiam água com lodo. De quando em quando, engoliam um peixinho e isso melhorava a dieta deles. Certo dia um raio fez cair uma videira num riacho. Aí, no dia seguinte, as uvas foram pisoteadas por uma manada de dinossauros. Um hominídeo que ia passando bebeu aquela água avermelhada e ficou eufórico…
Batota olhou para mim entre o interessado e o espantado. Talvez estivesse a pensar que aquelas garrafinhas verdes de água Perier, que eu devorara, continham afinal puro uísque.
44 – Sobre os hábitos alimentares dos brasileiros
Minha empolgada historieta sobre a gênese do vinho foi interrompida pela chegada dos escritores. Às sete horas em ponto, em silêncio, formando um bloco, regressaram à sala de reuniões. Ao ver que não faltava nenhum dos seis, senti-me aliviado.
Depois que todos assumiram seus lugares à mesa, Batota, com um gesto firme de cabeça, ordenou-me que sentasse. Por sorte, minha cadeira estava ao lado do carrinho de bebidas. Espichei um rápido olhar sedento às garrafas. Não registrei ali a falta de nenhum dos principais destilados. Havia desde vomitórios, como vermute, até o néctar dos biriteiros, que se chama uísque.
– Façamos os devidos brindes aos deuses da literatura! – berrou Batota.
Verti uísque num copo. Controlei-me para não encher até a borda. Recusei, com um esgar de asco, os cubos de gelo que o garçom me ofereceu.
– Viva Gógol! – gritou Fedorova.
– Salve Shakespeare! – silvou Águeda Christine.
– Glória a Mérimée! – fumaceou Sim Et Non.
– Vida eterna a Lao Tsé! – prosseguiu Foo.
– Uísque farto para o cachaceiro do Poe! – berrou Dax.
– E vinho para Cervantes! – acrescentou Bugres.
A cada saudação, eu esvaziava um copo, com um só gole.
Quando chegou a ocasião que julguei propícia para o meu pronunciamento, berrei:
– Que não falte um boteco no céu para Graciliano Ramos!
– Para sempre viva Camões! – ecoou Batota. – E, já agora, que Fernando Pessoa esteja ao seu lado!
– Felizmente, os deuses da literatura são numerosos – disse Fedorova, segurando pelo gargalo uma garrafa de vodca. – Viva Tchecov!
Só então notei que todos ali, como eu, eram grandes apreciadores de substâncias líquidas. Embora idosos, todos eles vertiam generosas doses nos respectivos copos e imediatamente os esvaziavam.
O derradeiro viva foi dado por Sim Et Non:
– Que Deus acolha Miguela de Alcazar na sua bem guarnecida adega!
Às oito horas em ponto, como anunciara Batota, transportadas em carrinhos, chegaram as muitas travessas fumegantes. O português levantou-se para ajudar o garçom a servir.
Mesmo já bastante zonzo, lembrei que precisava forrar o bucho. Bem alimentado, eu poderia lutar melhor contra o carrinho de bebidas. Saco vazio não para em pé, dizia meu pai.
Confesso que fiquei espantado com a capacidade de absorção de líquidos e de sólidos por parte daquela velharia. Sou incapaz de dizer quem mais mastigou ou engoliu. Até escritores milionários saem do sério quando a boca é livre e a bebida é de graça.
Lá pelas tantas, os comes e os bebes desataram todas as línguas. Passou a reinar naquela sala um clima de total descontração. Bolinhas de miolo de pão, embebidas em molho, voavam de um lado a outro. Azeitonas e ervilhas eram os outros projéteis utilizados. Senti-me de volta à hora da merenda no grupo escolar do Alegrete onde estudei. Enfiei um aspargo pelo decote de Fedorova. Ela adorou.
Por uma longa hora estendeu-se aquela comilança.
Aqui, neste exato trecho do livro, permitam-me breve digressão a respeito dos hábitos alimentares dos brasileiros.
O Brasil é o país onde mais se come no mundo. Dizem que na França come-se a melhor comida. Pode até ser, mas lá não se come muito. Nós, brasileiros, desprezamos molhos sofisticados, condimentos raros e porções delicadas. Comemos no atacado. Quer carne? Pois muito bem, aqui vai um quilo de picanha gorda. Bom proveito, seu animal, coma até morrer! Quer feijoada? Pois engula três pratos cheios até a borda e depois procure ajuda veterinária, seu cavalo!
Eu poderia aqui dizer também que em certas áreas do Brasil come-se mal. E pouco. É um calango hoje, um ratinho daqui a uma semana. E mandioca, quando há, pouca. Poderia até me estender sobre isso, mas não o faço porque sei que leitores de livros policiais, em geral, odeiam ler sobre fome ou miséria.
Ainda me lembrei de perguntar como era a comilança em Portugal ao Batota, mas o gerente estava sempre de boca cheia, comendo bacalhau como se não houvesse amanhã.
45 – Grupo orquestrado de assassinos cruéis
Voltemos ao regabofe.
Entre gargalhadas e arrotos, comemos. Muito.
Só paramos de mastigar quando a porta do salão se abriu em par e deu passagem à figura miúda e bem armada de Jerônimo Aroeira.
– Rango pra mais um! – gritou o titular da Primeira Delegacia de Polícia de Brasília e se acomodou em uma cadeira que colocou ao lado da do Batota.
O clima descontraído dissipou-se. Consigo, Aroeira trouxera da rua uma nuvem escuríssima, que estacionou sobre nós. Perdemos a alegria e o restinho de apetite. Com exceção do Batota, que continuava a aterrar, com grandes garfadas de bacalhau, o seu mui dilatado ventre.
– Bacalhoada! – ordenou o delegado, depois de lançar um olhar famélico ao prato do português.
Veio a bacalhoada num prato tão monumental que alimentaria, facilmente, um time de rúgbi. Aroeira o derrotou em pouco tempo. O delegado era daquele tipo de gente que considera o ato de mastigar uma insensatez que só nos leva ao desgaste desnecessário dos dentes. Engolia garfada em cima de garfada. Parecia foguista de trem antigo alimentando a caldeira com pás de carvão.
Enquanto comia, Aroeira matutava. Via-se, pela vibração das veias das têmporas, o esforço dos neurônios do policial. Estava mergulhado em elucubrações profundas.
De repente, meu coração brasileiro se encheu de esperança: e se Jerônimo Aroeira, aquele modesto delegado tupinambá, sobrepujasse em argúcia os criadores dos mais famosos tiras fictícios do mundo?
Foi um impulso ingênuo, reconheço hoje, mas a minha inteligência estava bastante comprometida pela ingestão de licores proibidos para menores de idade.
Depois de atirar a última pá de bacalhau para dentro da goela, Aroeira comandou:
– Que o garçom se retire!
O pobre trabalhador míope, que se encontrava completamente embriagado, sumiu sem fazer ruído. Eu havia percebido que ele bebia discretamente toda vez que se voltava de costas para nós a fim de servir mais uma dose. Com gestos rápidos, enchia um pequeno copo com uísque, que a seguir sugava por um canudo. Inicialmente, tolo que sou, acreditei que ele estava provando as bebidas para ver se alguma delas estava envenenada. Assim, gastei um bom tempo até perceber que o garçom catacego era só mais um pinguço em uma sala cheia de cachaceiros.
Quando se desfez o barulho do elevador, o que significava que o garçom havia chegado ao térreo, Aroeira abriu o paletó. Com um gesto muito lento, teatral, puxou do bolso um envelope lacrado e, com voz solene, anunciou:
– Senhoras e senhoras, passo agora a ler o laudo da autópsia realizada, pelo doutor Abelardo Nepomuceno Crescente, no corpo da senhora Miguela de Alcazar…
Fez uma breve pausa e completou:
– Que foi brutalmente assassinada.
O silêncio adensou-se em torno de nós.
Por cima da mesa, entre restos de comida, manchas de molho, talheres sujos e copos embaçados, rastejavam, ariscos, os assustados olhares dos escritores.
– Sim, contrariando a abalizada opinião de um policial experimentado como eu, a escritora espanhola foi morta. Aliás, ela foi morta mais de uma vez, se é que se pode dizer isso. Foi assassinada por um profissional do crime, impiedoso e sádico. Aliás, eu me sinto mais inclinado a considerar que ela foi morta por um grupo orquestrado de assassinos cruéis e implacáveis.
Neste ponto, de volta ao silêncio, o olhar do delegado passou a circundar a mesa. Movia-se lentamente de um rosto a outro. Por um demorado minuto, digamos, aquele olhar arguto fixava-se em cada face. E depois passava a outra.
Acossados por aqueles cintilantes olhos inquisidores, os escritores baixavam a vista, constrangidos, já meio culpados. Com a exceção, é claro, do poeta argentino, que parecia olhar diretamente para as lâmpadas do lustre.
Concluída a observação de todos os rostos, o delegado anunciou: – Passo agora a ler o laudo!
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).