CARTAS DO VELHO DO RESTELO

Do uso disparatado de quatro palavras muito em voga

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Tolerância

Eis um dos valores mais enaltecidos.

A tolerância enxameia o discurso dos habitantes do espaço público. Quase ninguém se insurge contra o conceito insidiosamente servido a toda a hora. Se perguntarem aos habitantes e frequentadores do espaço público se tolerar é algo inerentemente bom, ouvirão um enfático «SIM» de quase, quase, quase todos eles. Fora da esfera pública, também empregamos o substantivo/nome «tolerância» (e o verbo «tolerar») como algo que devemos, a todo o custo, promover.

Que preferia ouvir sobre si: «respeito-o/a» ou «tolero-o/a»?

Acaso gostaria de ser «respeitado/a», «aceite» ou «tolerado/a»?

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Ninguém dirá: «Gosto dele, mas tolero-o.» Mas muitos dizem: «Não gosto de X, mas tolero-o.» O lugar da adversativa deveria dizer-nos tudo sobre o conceito insidioso.

Ninguém terá garantido ouvido outrem dizer: «Ah, como gosto de ser tolerado!»

Gostamos e precisamos de tolerar e ser tolerados, ou de amar e ser amados?

Que será mais elogioso: dizer que amamos, respeitamos ou admiramos X, ou que toleramos X?

Reflicta sobre os exemplos anteriores e convide outros a reflectir sobre eles: andaremos a difundir um desiderato que não desejamos?

Etimologicamente, diz-nos o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, «tolerar» vem do latim com os significados «levar, suportar um peso, um fardo; aguentar, suportar, sofrer; aguentar-se; ficar, persistir; suster, manter, sustentar; resistir a, combater».

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Sucede que tolerar é mesmo suportar um peso ou fardo. Assim como há pessoas com graus de tolerância maiores ou menores, há também pesos e fardos maiores ou menores.

Agostinho da Silva, no programa televisivo Conversas Vadias, com a entrevistadora Alice Cruz: «Tolerar é já marcar uma superioridade. […] Tolerar é dar licença, com desprezo, que o outro seja assim. Coitado, oxalá se modifique.»

Vai, pensamento crítico sobre a tão elogiada e proclamada tolerância, faz o teu caminho.

Filosofia

Quanto mais vezes usamos expressões como «a filosofia da empresa», «a filosofia de jogo da equipa», «a filosofia de jogo do treinador», «a equipa soube interpretar a filosofia do contra-ataque e da contenção de bola», «a filosofia de vendas», «a filosofia de atendimento ao cliente», mais trivializamos e abandalhamos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, entre tantos outros, ou seja, a filosofia e os filósofos (pretéritos, actuais e futuros).

Privilégio

Como se abusa desta palavra!

Uma coisa é saber que há pessoas sem emprego, sem tecto, que há quem morra à espera de cuidados médicos por falta de dinheiro, que há crianças que passam fome, que há quem não tire (nem possa tirar) férias, que há muitos escravos pelo mundo fora (sim, ainda há muitos, muitos, muitos, incluindo escravas sexuais), que há velhos que sofrem violência nos lares, que há pessoas que sofrem violência na sua própria casa.

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Relativizarmos a nossa sorte, a nossa condição pode ser um refrigério para muitos e pode levar alguns a concluir que chega a ser indigno tanto sofrimento fútil, tanta amargura, quando há tanta gente com razões tão mais fundas para sofrer. Camões, num soneto, promete contar-nos a história dos seus longos males, porque, assevera, «grandes mágoas podem curar mágoas». Quatro séculos depois, Scott Fitzgerald, no confessional The Crack-Up, lembra a cura habitual para o desânimo e a melancolia: considerar aqueles que vivem em verdadeira pobreza material ou em sofrimento físico.

Outra coisa, bem diferente do que explanei até aqui, são as moderníssimas e ubíquas proclamações de que se teve, por exemplo, o «privilégio» de passar férias, entre uma caterva de «privilégios» que o discurso bem-pensante vai acumulando. Direitos elementares, muitos deles conseguidos à custa de lutas de séculos, são hoje apresentados como «privilégios».

As altas e obscuras hierarquias agradecem este nivelamento por baixo, consubstanciado na troca dos «direitos» pelos «privilégios». As pessoas adoram fustigar-se por fruírem dos direitos mais básicos, enxertando o inevitável «privilégio» na sua sinalização de virtude, com a sombra da expiação da culpa: privilégio de ter casa própria, privilégio de ter emprego, privilégio de ter contrato, privilégio de passar férias alhures, entre uma miríade de exemplos.

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Esta autofustigação diz-nos que, no limite, ser homem é ter o privilégio de não ser violado. (Sim, também há homens violados, mas os números são incomparavelmente diferentes. Hoje, explicar tudo é sinal de prudência.)

Olhe, tenho o privilégio de não ser espancado diariamente, tenho o privilégio de não ser escravizado, tenho o privilégio de não trabalhar quinze a dezassete horas por dia como motorista TVDE.[1]

Combatamos a exploração sem chamar «privilegiados» a quem frui dos mais elementares direitos.

Fascista

De tão gasta e puída, a palavra deixou largamente de identificar aquele que perfilha determinada doutrina política. Hodiernamente, converteu-se no insulto fácil que, de tão utilizado e impreciso, já quase só significa: a expressão do Mal, com maiúscula inicial.

Em bom rigor, o fascismo consiste, afinal, em quê?  Nem toda a «democracia musculada» (locução utilizada por muita comunicação social amalgamando regimes consideravelmente distintos) é fascista, nem todo o autoritarismo (que não é um sinónimo perfeito de «ditadura») é fascista, e nem sequer toda a ditadura é fascista.

Se queremos que a palavra inquiete o leitor/ ouvinte, devemos usá-la com mais parcimónia — e, acima de tudo, com precisão semântica. Mas, para isso, é mister estudar (no caso, o que foi o fascismo, estudo que implica mergulhar no regime de Mussolini).

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Uma palavra que transporta consigo supressão de liberdades, presos políticos, tortura (e conheçam-se, com pormenor, as torturas em causa) e sepulturas (e só estas quatro horrendas características não chegam para definir a especificidade do fascismo, até porque são encontráveis noutros regimes que não se enquadram historicamente no «fascismo») não pode perder capacidade de evocação, de representação mental da lista de horrores. Tal palavra deve ser usada, insista-se, com mais parcimónia — e, por conseguinte, com mais viço, força e acutilância.

Conhece a história de Pedro e o Lobo? É isso mesmo.


[1] Facto noticiado, entre outros órgãos de comunicação social, pela TSF em 17 de Março de 2021: https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/ha-motoristas-tvde-a-trabalharem-15-a-17-horas-por-dia-13466711.html

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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