Silêncio absoluto (e comprometedor) da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE). Mas a realidade é feita de factos: entre 2017 e 2021, esta entidade pública celebrou 228 contratos, dos quais 96 por ajuste directo e outros 23 por consulta prévia, mas só os colocou no Portal Base ao longo do ano de 2023. Em 43 contratos, os atrasos são superiores a seis anos, quando a lei determina a divulgação ao fim de, no máximo, 20 dias. Significa assim que os pagamentos não poderiam ser processados, pelo menos nos ajustes directos e consultas prévias. Alguns documentos das obras podem até já ter sido destruídos, havendo até casos de contrato que nem sequer foram escritos. O PÁGINA UM escalpelizou todos os contratos e identificou os beneficiários deste esquema que mostra uma situação de desrespeito generalizado pelas normas da contratação pública por parte da DGEstE.
2017, 2018, 2019 e 2020 são, cronologicamente falando, anos da década passada. A atender ao ano de 2023, o ano de 2017 tem já cinco anos a separar, com muita água a ter passado debaixo das pontes. Entre 2023 e 2018 são quatro anos de separação. Entre 2023 e 2019 são três. E mesmo entre 1 de Janeiro de 2023 e 31 de Dezembro de 2020 distam 1096 dias.
Mas para a Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), que importância têm os dias, as semanas, os meses e mesmo os anos se o Código dos Contratos Públicos determina que devem ser publicados os contratos no Portal Base até ao 20º dia útil da sua celebração ou início de execução.
A resposta é: NENHUMA.
Apenas assim se compreende – ademais, atendível também à ausência de explicações do director-geral da DGEstE, João Gonçalves – que tenham sido colocados no Portal Base, ao longo do ano de 2023, um total de 43 celebrados em 2017, no valor total de cerca de 3,4 milhões de euros; mais 71 contratos celebrados em 2018, no valor total de cerca de 5,1 milhões de euros; mais 73 contratos celebrados em 2019, no valor total de cerca de 5,2 milhões de euros; e mais 26 contratos celebrados em 2020, no valor total de quase 1,6 milhões de euros. Se ainda se quiser ser ainda rigoroso mais rigoroso, foram entregues com atraso inclassificável mais 15 contratos celebrados em 2021, no valor total de 787 mil euros.
De entre os 228 contratos celebrados pela DGEstE entre 2017 e 2021 que apenas foram inseridos no Portal Base ao longo de 2023, um total de 96 foram celebrados por ajuste directo e outros 23 por consulta prévia. O Código dos Contratos Públicos é taxativo a determinar que “a celebração de quaisquer contratos na sequência de consulta prévia ou ajuste direto deve ser publicitada, pela entidade adjudicante, no portal dos contratos públicos” sendo que constitui “condição de eficácia do respetivo contrato, independentemente da sua redução ou não a escrito, nomeadamente para efeitos de quaisquer pagamentos”.
Ou seja, tendo em consideração a quantidade de empresas envolvidas nestes contratos celebrados entre 2017 e 2021 – um total de 93 – e os montantes em causa – quase 12,3 milhões de euros, se forem excluídos 23 contratos por concurso público (no valor total de 3,7 milhões de euros) –, significa que a DGEstE fez pagamentos à margem da lei. Ou mesmo violando sistematicamente a lei. Refira-se que o PÁGINA UM detectou, no âmbito de uma investigação ainda em curso, que, embora existam mais entidades públicas com atrasos assinaláveis, a DGEstE destaca-se, negativamente, na quantidade de contratos por ajustes directos ou por consulta prévia com mais de quatro anos de atraso.
De entre os contratos de 2017 colocados no Portal Base com atrasos por vezes superiores a seis anos – por terem sido inseridos apenas em 2023 – destacam-se nove com valores acima de 100 mil euros, cinco dos quais por ajuste directo, sendo que os outros foram por concurso público. O contrato mais elevado deste grupo de contratos ‘retardatários’ foi um ajuste directo celebrado pela então directora-geral Maria Manuela Faria com a Manuel Vieira & Irmãos, uma empresa de Amarante, no valor de 486.480 euros para diversas reparações na Escola Secundária de Alpendorada, no concelho de Marco de Canavezes.
O contrato até refere que o ajuste directo foi publicitado no Portal Base em 3 de Julho, mas a data da celebração foi o dia 1 de Setembro, mas, na verdade, a data de publicação foi apenas o dia 4 de Outubro de 2023. Ou seja, o contrato esteve sem divulgação – e sem efectivação surge nesta plataforma com um atraso de cerca de seis anos. Refira-se que a Manuel Vieira & Irmão tem uma relação privilegiada com a DGEstE, pois já celebraram cinco contratos públicos.
O segundo maior ajuste directo com publicitação absurdamente retardatária foi celebrado em 14 de Janeiro de 2019, mas só ficou no Portal Base a partir de 27 de Julho de 2023. O beneficiário deste contrato foi a empresa Thermotelha, com sede em Loures, que recebeu 347.462,48 euros (sem IVA) para reparação de danos em três escolas de Montemor-o-Velho causados pela tempestade Leslie. A justificação para o ajuste directo por urgência é estranha, porque o contrato foi celebrado quase quatro meses depois da tempestade, que teve a sua passagem pela região Centro em 13 de Outubro de 2018. Mais estranho ainda é o facto de a DGEstE ter decidido que nem valia a pena reduzir o contrato a escrito. E a justificação, mais uma vez, é a urgência. Aparentemente, neste processo somente não houve urgência para colocar o contrato no Portal Base, condição legal para a sua efectivação e para a realização dos pagamentos.
Tal como sucede com a Manuel Vieira & Irmãos, também para a Thermotelha tem relações privilegiadas com a DGEste, sendo que em nenhum contrato teve concorrência relevante: dos seis celebrados entre 2017 e 2019, três são por ajuste directo e os restantes por consulta prévia. Saliente-se que, de entre estes contratos, cinco foram divulgados com atrasos de mais de quatro anos.
O rol de casos é de tal monta que seria fastidioso elencar todas as situações a merecer uma investigação pelo Tribunal de Contas – ou pelo Ministério Público. Em todo o caso, refira-se quem o PÁGINA UM detectou pelo menos 29 empresas que beneficiaram de três ou mais contratos da DGEstE entre 2017 e 2020 que apenas foram divulgados no Portal Base a partir de Janeiro de 2023.
E os casos de contratos por ajuste directo sem sequer ter sido celebrado contrato escrito não se circunscreveu à reparação das escolas de Montemor-o-Velho, por causa da tempestade Leslie, que, aliás, serviu na perfeição como ‘boa desculpa’. Com efeito, também por causa da intempérie de Outubro de 2018, a substituição urgente de cobertura em fibrocimento na Escola Secundária Fernando Namora, em Condeixa-a-Nova”, também mereceu ajuste directo sem contrato escrito celebrado em 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 150.300 euros, com a Construtora Santovaiense. Só foi divulgado em 2 de Maio de 2023, ou seja, quatro anos e dois meses depois.
E como não há duas sem três, a substituição alegadamente urgente de cobertura em fibrocimento danificada pela mesma tempestade na Escola Básica São Silvestre, em Coimbra, levou a um ajuste directo quatro meses depois, pois o contrato foi celebrado em 27 de Fevereiro de 2019, no valor de 140.135 euros. O beneficiário foi a empresa Alfredo Cortesão & Marçal. A informação do contrato no Portal Base somente surgiu em 2 de Maio de 2023.
Em termos globais, a empresas mais beneficiada por estes contratos ‘retardatários’ da DGEstE (celebrados entre 2017 e 2021, mas divulgados apenas em 2023) foram as Manuel Vieira & Irmão, que amealhou 1.098.158 euros, dos quais 825.152 euros de contratos ganhos em 2017. Segue-se a Paredes & Paredes com contratos no valor de 993.629 euros, todos celebrados entre 2018 e 2019. Também neste caso, a DGEsTE é, até agora, o único cliente público desta empresa de construção de Odivelas, acumulando 10 contratos, dos quais apenas três ganhos por concurso público.
Fecha o pódio a empresa Cunha & Costa com um ‘portefólio’ de 888.422 euros de contratos ‘retardatários’, mais outra empresa de construção civil, esta de Lousada, que tem na DGEste um cliente público relevante, contabilizando já 12 empreitadas, apenas metade das quais ganhas por concurso público. Os contratos celebrados entre 2017 e 2021, mas apenas divulgados no Portal Base em 2023, totalizam 886.422 euros.
Se ainda considerarmos mais duas empresas para termos um top 5, encontram-se mais dois casos em que a DGEstE é também um assíduo cliente público: a Construtora Santovaiense e Thermotelha, que amealharam com os contratos ‘retardatários’, respectivamente, 764.920 euros e 751.121 euros.
Em volume de facturação de contratos ‘retardatários’ celebrados pela DGEste, destacam-se ainda oito empresas com mais de 300 mil euros: Coberfer (464.289 euros), Obrimofer (452.999 euros), A Construtora de Pedroso (431.713 euros), Canas Engenharia e Construção (430.907 euros), Togamil (399.519 euros), Magnurbe (381.470 euros), Conjugaresta (374.384 euros), Gravita Ideia (312.411 euros) e CSQL (300.779 euros).
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