a deriva dos continentes

Inimigos infiltrados

minuto/s restantes

Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.

Graham Greene

OS COMEDIANTES (1966)


As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “o amor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.


Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.

Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.

As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.

Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.

Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.

Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontemperderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.

Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.

Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13]alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:

Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?

Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.

Acabem com isto, pelo amor de Deus.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.

[2] Desculpem, não resisti.

[3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.

[4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogia DER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.

[5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.

[6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.

[7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.

[8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.

[9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.

[10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.

[11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.

[12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.

[13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.


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