CAPÍTULOS 46-48

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Janeiro 28, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


46 – A satisfação de um meganha lendo um belo laudo de autópsia

Jerônimo Aroeira empertigou-se, tossiu, limpou a garganta e lascou:

– Na análise do corpo da senhorita Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon, espanhola, 96 anos, solteira, foi identificada a presença de três tipos de veneno. Nas vísceras, em meio a restos de uma refeição, composta de arroz, feijão, carne e batata frita, detectamos a presença de arsênico em alta concentração. No sistema nervoso central, encontramos neurotoxina de serpente, do tipo viperidae, que pode ter sido injetada no corpo da vítima a partir de uma minúscula perfuração que localizamos no pescoço. Por fim, encontramos também traços significativos de estricnina, notadamente nos lábios e na língua da vítima.

O olhar do delegado, desejoso de constatar a surpresa dos escritores diante daquela bela peça de oratória necrológica, percorreu ligeiro ao redor da mesa. Correu em vão, porque, até mais do antes, os olhares dos escritores estavam cravados na toalha suja.

Do outro lado da mesa, mas exatamente na minha frente, Batota ergueu seu polegar direito, que era grosso como tronco de sequoia. Com aquele gesto, ele queria me informar que estava favoravelmente impressionado com o trabalho do legista.

Após um fundo suspiro, o policial retomou a leitura:

 – Quando analisávamos a caixa craniana da vítima, observamos um ligeiro afundamento, na nuca, resultante de golpe. Pelo exame da região occipital, verificamos que se tratava de ferimento recentíssimo. Tal lesão foi causada por objeto pesado, certamente arredondado. Embora não tenhamos podido avaliar, no pouco tempo que nos foi concedido, a total extensão do referido dano, se mortal ou não, podemos assegurar que ele foi considerável, tendo em vista a fragilidade dos ossos da vítima pela sua idade muito adiantada.

O pasmo era geral. Ninguém ali, nem os escritores, nem Batota, nem eu, esperava um estudo tão detalhado e tão bem escrito. E realizado em tão pouco tempo.

– Estou abismado com esta peça criminalística – comentou Batota. – O mundo inteiro, sejamos sinceros, nada espera de um brasileiro que não a mais completa e absoluta incompetência.

Com o braço direito dobrado, bati com força no bíceps. Ou seja, respondi-lhe com uma banana. Ou com um manguito, como dizem nas tavernas onde cantam os fadistas.

Ignorando minha pantomima, o delegado prosseguia:

– A análise dos pulmões mostrou danos recentes e extensos: paredes violentamente corroídas e alvéolos estranhamente rígidos. Na parte inferior do pulmão esquerdo, havia importante quantidade de sangue. Concluímos desses indícios, que a vítima evidentemente inalou algum tipo de gás letal. Esse gás, inequivocamente, lhe enrijeceu os alvéolos, que ficaram como que petrificados. Logramos recolher uma pequena amostra do elemento químico que causou os severos danos às paredes do órgão respiratório. Submetemo-lo a um exame, mas não conseguimos identificá-lo com precisão. Acreditamos, porém, que se trata de um novo composto mortífero, sintetizado recentemente em laboratórios do Leste europeu, o russorum venenorum mortalis, do qual tivemos notícia através de publicações acadêmicas. 

Havia soberba, e muita, na cara feiosa de Aroeira enquanto lia aquele belíssimo documento oficial.

Ora, esta leitura tão arrasadora fez evaporar parcela considerável do álcool que eu havia ingerido. Que, convenhamos, não fora pouco. Cada palavra pronunciada pelo delegado soprava para mais longe a nuvem que toldava minha cachola. A cada frase dele, eu ficava mais esperto.

Por fim, veio o arremate:

– Concluindo, ao examinarmos o coração, detectamos também que a vítima sofreu um enfarto agudo do miocárdio. Não se pôde constatar, com precisão, se esse evento determinou o óbito ou não. Experiências científicas recentes comprovaram que, em pessoas de idade avançada, tais infartos são menos devastadores. Em função disso, julgamos que, no caso em estudo, são significativas as possibilidades de o ataque cardíaco ter apenas contribuído para a morte. Dito de outra forma: só se juntando aos demais prejuízos sofridos pela vítima, quais sejam envenenamento múltiplo e pancada, a síncope cardíaca pode ter acarretado o falecimento. Fazemos, no entanto, uma ressalva. Em se tratando de uma morte tão intrincada como a que tivemos sob as lentes do nosso microscópio, não se pode afastar a hipótese de estarmos diante de um enfarte malignamente induzido.

Aroeira dobrou o laudo com gestos vagarosos e majestáticos e o guardou no bolso interno do casaco. Julgando-se, no íntimo, o Rei da Cocada Preta.


47 – A vacilante habilidade dos cachaceiros

Depois daquela leitura, as engrenagens do meu cérebro voltaram a se movimentar. Em baixa velocidade, devo admitir. Mas o certo é comecei a perceber a ligação entre certas frases ditas pelo delegado e outras frases que eu escutara ao longo daquela tarde.

No entanto, sem sequer esboçar um pedido de autorização, Jerônimo Aroeira abriu uma garrafa de vinho, levou-a aos beiços e sugou, num só gole demorado, tudo o que nela havia. E, a seguir, com a maior calma deste mundo cão, voltou a falar em um tom de voz ainda mais grave:

– Em uma já longa carreira policial, nunca tive caso semelhante em minhas mãos. Morte em cima de morte. O crime mais parecido a este de que me lembro foi praticado, no Rio de Janeiro, por um louco que tinha a mania de se dizer poeta. Depois de matar a pauladas um companheiro de hospício, também versejador, o sujeito resolveu degolá-lo para não deixar aberta a possibilidade de uma ressurreição. Mas como a cabeça, já autônoma, continuasse a declamar dodecassílabos, o poeta alucinado decidiu jogá-la ao mar para que se afogasse. Por que tudo isso? Porque o poeta assassinado tinha a mania de dizer que pertencia à Academia Brasileira de Letras e que, portanto, era imortal.

Era visível e bem palpável o nervosismo dos escritores perante a leitura de Aroeira. Perguntei-me: estarão tensos apenas porque não esperavam laudo tão acurado ou terão algum outro motivo, mais profundo, para ficarem inquietos?

Implacável, continuou o delegado, como se apreciasse mais o impacto de suas revelações do que a sua função de meganha:

– Hoje, aqui, tivemos uma vítima à qual foram impostas muitas mortes: triplo envenenamento, inalação de gás letal, pancada e, para culminar, um belo enfarte. Seguramente provocado. Senhoras e senhores, eu nunca ouvi falar em crime semelhante. É crueldade demais! E foi cometida neste hotel.

O policial voltou-se então para o gerente do hotel:

– Senhor Batota, vamos ter uma longa noite pela frente. Assim, ordene ao garçom que traga novas garrafas para completar a lotação do carrinho! Como as pessoas aqui presentes terão de falar bastante, quero uma boa provisão de líquidos para que todos refresquem permanentemente a garganta. In vino veritas.

Fiquei surpreendido com a sagacidade, digamos, etílica, demonstrada ali pelo homem da lei e da ordem. O português se levantou e, um tanto vacilante, foi até o telefone.

Enquanto em voz baixa o Batota se entendia com o garçom, o delegado Aroeira levantou-se e, com as mãos às costas, calado, pensativo, passou a caminhar ao redor da mesa.

Pouco depois, surgiu o garçom equilibrando precariamente uma imensa bandeja na qual luziam incontáveis garrafas. O pobre homem estava ainda mais bêbado. Temi que ele derrubasse alguma botelha ao passá-la para o carinho, mas não ocorreu nenhum acidente. Ele era dotado da vacilante habilidade dos cachaceiros escolados. Detinha-se sempre a um milímetro do desastre.

Sentado na pontinha da cadeira, muito tenso, assisti à transferência das garrafas. Se aquele garçom quebrasse uma só delas, eu lhe arrebentaria os óculos com um murro. Tomo como ofensa pessoal qualquer dano a uma garrafa, seja de que bebida for.

Conheço muito garçons que trabalham embriagados. Afinal, não é tarefa das mais complicadas trazer pratos cheios e levá-los embora depois, vazios. E eles sempre podem tomar de graça uns restinhos de vinho caro porque as mulheres, para se mostrarem sofisticadas, costumam deixar um golinho no fundo da taça.

Pois bem, abastecido o carrinho, o garçom tentou achar o caminho de volta ao elevador, mas, seu caminhar incerto e trêmulo o levou diretamente a uma janela aberta. Pensei que escolheria a forma mais rápida de descer ao térreo: voando. Porém, um tropeção em uma cadeira o desviou da morte o lançou com precisão na porta escancarada do ascensor, que o engoliu.

Espichei uns olhos babosos para o carrinho de bebida. Já estava praticamente sóbrio de novo, pronto para mais uma saturnal. Bebida de graça é uma coisa muito linda, bebida boa de graça é algo maravilhoso.

– Sirvam-se, senhores – comandou o delegado.

Voei para o carrinho e, com gestos rápidos e precisos, enchi um copo com Joãozinho Caminhador de quinze anos, rótulo azul. Nunca, jamais coloco cubos de gelo no meu copo. Segundo um amigo meu, engenheiro físico-químico, cubo de gelo só serve para ocupar espaço no copo. Além disso, cá entre nós, gelo pode irritar a garganta do bebedor.

Enquanto os escritores se serviam, Aroeira, mamando no gargalo de uma garrafa de gim, os observava com atenção. Eu também estava alerta porque, como o delegado, ali me encontrava a serviço.

Bugres e Fedorova pegaram pelo pescoço garrafas já destampadas. Ele foi de vinho; ela, de cachaça. Pragmáticos, evitavam desse modo o trabalho de encher o copo a todo instante. O poeta argentino, o mais agitado da mesa, falava em voz alta e ria nervosamente. Seu comportamento atraiu a atenção do delegado, que se dirigiu a ele em tom casual:

– Senhor Bugres, o que tem o senhor, um homem cultíssimo, a nos dizer sobre a morte, ou, melhor, sobre as múltiplas mortes de Miguela de Alcazar?

O autor de A biblioteca de Babel só respondeu depois de tomar um quase infindável gole de vinho:

– Pouca coisa. Miguela era uma espanhola e, como sabemos, os espanhóis sofrem de um avassalador sentimento de inferioridade diante de nós, argentinos. Não suportam que sejamos mais ricos, elegantes e inteligentes do que eles. Mas a pobre Miguela de Alcazar me odiava também porque há décadas venho sendo lembrado para receber o Nobel, enquanto o nome dela jamais foi sequer mencionado.

Batota intrometeu-se:

– Mas, ao final das contas, o senhor também nunca recebeu o Nobel!

– Felizmente. Se eu o tivesse recebido, provavelmente Miguela de Alcazar teria cravado um punhal no meu coração. Não suportaria essa derradeira, embora justa, humilhação.

– Não estou interessado na disputa de vaidade entre cucarachas – rosnou Aroeira. – Tendo em vista a autópsia, meus homens neste momento estão fazendo uma varredura no apartamento 1313. Certamente, encontrarão traços de sua passagem por lá, senhor Bugres. Portanto, poupe-me a trabalheira e me diga: por que motivo o senhor matou a velha?

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48 – Palavras vivem trocando de sentido

A dureza daquela pergunta – feita de chofre, como dizem na terrinha dos comedores de bacalhau – espantou a todos nós.

– Não gosto das suas frases, delegado! – o poeta bateu com a ponta da bengala no chão. – O senhor vai diretamente ao ponto. A verdadeira linguagem, no entanto, é labiríntica, sinuosa. Devemos andar por ela em círculos, tateando. Feito o alerta, eu lhe respondo: não matei Miguela de Alcazar, mas não afirmo isso de forma categórica.

– Como assim? – espantou-se o policial. – Explique-se melhor!

Bugres prosseguiu:

– Reconheço, no entanto, que posso ter contribuído para a morte dela, sim. Porém, se isso ocorreu, foi sem que eu o desejasse.

– Não sou bom em gramática – disse o delegado, fazendo cara de nojo. – Aliás, das incontáveis regras que regem nossa intrincada língua portuguesa, só guardei uma: não se coloca vírgula entre sujeito e verbo. Portanto, não entendi exatamente aonde o senhor quer chegar com esse palavrório.

– Realmente, para meter bandidos na cadeia, o senhor delegado não necessita de sintaxe sofisticada – comentou o argentino. – Mas, voltando ao principal, falarei agora da minha hipotética participação na morte de Miguela de Alcazar. Se contribui para o falecimento dela, foi com uma inocente brincadeirinha…

– Brincadeirinha?

– Exato, delegado. Miguela costumava ler logo após o almoço. Sabedor disso, coloquei um bilhetinho zombeteiro dentro do livro que ela estava lendo. Pode ser que ela tenha visto o tal bilhete…

– Conte melhor essa história! – exigiu o policial.

– Bem, tudo começou na portaria deste hotel. Quando nos registrávamos, escutei o porteiro dizer a Miguela que ela ficaria hospedada no apartamento número 1313. No mesmo instante, lembrei-me de que a Bíblia que Miguela costumava ler tinha exatamente 1313 páginas. Possuo um exemplar da mesma edição, que saiu do prelo do impressor Juan Cabeza de Toro, em Barcelona, em 1796. Foi com grande gosto que li essa edição, num internato suíço. Quando ainda não era cego, é evidente…

– Volte para a história central – resmungou o delegado, já impaciente.

– Ali mesmo, na portaria, discretamente, rabisquei um bilhetinho. Escrevi-o com a mão esquerda para disfarçar minha letra. Depois, pedi a Miguela que me deixasse tocar sua Bíblia. Aleguei que queria cheirar a encadernação em couro. Coloquei então o bilhete na última página. E pensei assim: se por acaso o encontrar, Miguela terá um belo susto.

– O que dizia o bilhetinho?

– Não lembro, delegado. Usei várias palavras, mas não me recordo em que ordem eu as escrevi. Dizem que as palavras costumam trocar de lugar na frase depois de escritas. Assim, com o passar do tempo, os textos assumem novos sentidos. Por vezes divergentes dos originários. Num conto famoso levantei a hipótese de que, fechado um livro, as palavras se movem de uma página a outra, a fim de confraternizar…

– Não li esse conto – cortou o policial, seco. – E, se o tivesse lido, decerto não teria gostado. Não me venha com lengalengas! Não tente tirar o corpo fora! O senhor sabe exatamente o que escreveu no bilhete. Portanto, fale a verdade!

E avançou ameaçador para o argentino, talvez para dar-lhe um susto, levando-o a confessar. Não levou em conta que o grande vate argentino, como os imensos Milton e Homero, vivia na escuridão perene.

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(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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