Como qualquer jornalista, a actual situação dos media preocupa-me por tudo aquilo que representa para nós, profissionais. O esgotamento de um modelo de negócio e o claudicar das redacções enquanto agentes de intervenção e de mudança.
Nesta, como em todas as crises, não há responsabilidades de um só lado. Não foi só o mercado que mudou, os empresários que se transformaram, o neoliberalismo que deixou de respeitar limites de decência. Fomos também nós que mudámos, aos poucos, sempre levados a reboque das novas formas de comunicação com as quais não podemos rivalizar.
A nossa profissão está cada vez mais desacreditada junto de quem nos move: os nossos leitores, ouvintes e espectadores. Perdemos muita da credibilidade que nos garantia algum respeito por parte dos vários poderes instituídos e da população em geral. Não faltam estudos a comprovar a degradação da nossa imagem enquanto classe profissional.
As redes sociais foram uma grande ajuda para essa perda de influência. No entanto, ao fazer delas a nossa própria fonte de noticias, de temas, opiniões e agitação informativa, contribuímos para lhes atribuir um estatuto que não tinham. Enchemos páginas, minutos e horas de emissão com milhares de casos plasmados das redes. Acríticos e fascinados, sucumbimos ao poder de fogo de uma realidade que nos ultrapassava e que não é permeável a critérios jornalísticos.
A gradual degradação do mercado publicitário, o decréscimo de leitores e de investimentos, empurrou a nossa profissão para lá dos limites do suportável e jornalisticamente sustentável.
Podemos e devemos criticar os gestores que fazem cortes cegos numa simples e anónima folha de Excel, porque afinal muitos deles nem sequer entendem que o negócio dos media é diferente de todos os outros. Porém, o que é mais difícil de aceitar é que camaradas aceitem, ou se sintam obrigados a aceitar, condições inviáveis para o exercício da profissão e as imponham às suas redacções, sabendo que tal terá efeitos na degradação do qualidade do trabalho produzido.
Fomos tentando trabalhar com cada vez menos, para fazer cada vez mais. Aceitámos retóricas puramente financeiras, uma, outra e outra vez.
A cada argumentação de que era preciso cortar, porque as receitas estavam a cair, pactuámos silenciosamente com lógicas de racional duvidoso. Acredito que muitas das vezes o fizemos para tentar salvar postos de trabalho, camaradas e projectos. Mas nunca nos interrogámos se não estaríamos a comprometer a essência da nossa profissão, a independência e a credibilidade. Fomos aceitando tentar salvar uma árvore e depois outra, sem pensarmos nunca na floresta.
Directores, coordenadores, editores, os cargos de chefia, fomos sempre cúmplices de uma lógica de despedir, não renovar e substituir o melhor pelo menos mau. Abdicámos de profissionais com carreira e saber para poder contratar mão de obra barata, sem nos interrogarmos se não estaríamos apenas a adiar um problema. Poucos são os grandes projectos de jornalismo que sobreviveram e recuperaram desta esta lógica suicida.
Quando o “monstro” chamado Internet ajoelhou a imprensa mundial nos anos 90, o desespero foi grande nos Estados Unidos (EUA). A perspicaz fórmula “mais por menos” fez o seu caminho, com milhares de despedimentos. Nos últimos 20 anos, os EUA perderam um quarto dos seus jornais, 57% da sua mão de obra jornalística.
No entanto, quando um jornal de referência mundial resolveu salvar-se do abismo por via inversa, muitos outros o seguiram, investindo no saber e na experiência que os podia prestigiar, não em mão de obra mais barata. Foi assim com o New York Times, depois o Washington Post.
Portugal é um outro mundo, sabemos, mas de cedência em cedência, qual uma velha história popular, tentámos ensinar o burro a viver sem água e, agora que ele está quase a aprender, corre o risco de morrer de sede.
Não podemos ignorar que ao longos das últimas décadas fomos os únicos responsáveis por todos os atentados aos mais básicos princípios do jornalismo. Violámos todos os códigos éticos para ganhar vantagem, para conseguir mais um “exclusivo de primeira mão”. Foram muitos os exemplos que minaram o nosso património de respeito e credibilidade, agora tão pouco valorizado. Fomos nós que o fizemos, não os gestores, não o mercado.
Se de uma forma geral a oferta jornalística é cada vez mais superficial, espectacular, pouco sustentada, tecnicamente deficiente, acrítica, seguidista das agendas dos poderes políticos e das agências de comunicação, sem rasgos nem imaginação. Se os vários media se tornaram cada vez mais iguais, miméticos e cinzentos, só a nós se deve. Devíamos ter conseguido lutar por melhor jornalismo, melhores profissionais, melhores condições e real autonomia editorial.
Quantas vezes não nos apercebemos de ingerências inaceitáveis na nossa cadeia produtiva de notícias e pouco fizemos para as contrariar, expor ou combater? Tais práticas sempre existiram, mas numa outra escala e noutras circunstâncias. Hoje, a fragilidade contratual das redacções é terreno fértil para atropelos, já tidos como aceitáveis. E assim fomos vivendo estes anos, mudando, encolhendo, em direcção a nada, em direcção a isto que vivemos hoje.
O jornalismo tem vindo a ser encurralado e tem estado a ceder a incontáveis pressões, algumas delas novas, mais eficientes, mais discretas. Os anunciantes, os departamentos comerciais, os financiadores e os “parceiros” estratégicos, ganharam uma influência inusitada nas redacçōes dos media nacionais. Não a tinham a esta escala nos anos 90, porque havia dinheiro suficiente para garantir a independência de jornais, rádios e TV”s. Ao longo deste tempo não nos soubemos defender. Os nossos organismos de classe fecharam os olhos a claros atropelos da lei e dos códigos profissionais, legitimando a indiferença e irrelevância de conduta. O mesmo fizeram as instituições fiscalizadoras do sector.
Aqui chegados, lutamos todos por um lugar ao sol, uma réstia de luz que nos permita fazer um pouco mais daquilo que sabemos e gostamos. Fazemo-lo com uma esperança decrescente no futuro da profissão. Não acredito em jornalismo livre sem liberdade financeira, sem estabilidade contratual, assim como não podemos acreditar num futuro sem uma profunda e séria autocrítica, sem redacções fortes, reivindicativas e com memória. Mas isso custa aquilo que dizem não haver, dinheiro.
Isto é quase como afirmar que o jornalismo é um luxo. Em boa verdade já o foi, mas era assim que ainda o deveríamos entender dada a sua importância social. Caso contrário, estaremos a caminho do lixo, pois o preço da jorna já disso nos aproxima.
Paulo Salvador é jornalista (CP 827), editor executivo e grande repórter da TVI
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui um bom ponto de partida para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar.
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