Curto, cheio, em chávena larga, abatanado, pingado, duplo, garoto, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, descafeinado, carioca, fraco, com canela, com adoçante, em chávena pequena, em chávena de plástico, com pingo de água fria, duplo pingado, duplo cheio, sem açúcar, sem começo, copo alto, italiana, bica, cimbalino, sem espuma…
Cada um de nós tem uma forma muito pessoal de apreciar um café, e por cada forma de o apreciar, há uma expressão bem específica de o pedir. O meu pai gosta de café à Benfica (muito fraquinho), já eu por norma peço meia chávena.
O meu grande amigo Ruy, que é um dos poucos portugueses que resistem a viver no centro de Lisboa, programou uma sessão de trabalho na sua casa, perto da Graça. Tendo eu vindo de Mafra já a sentir a falta de cafeína, sugeri que fôssemos tomar uma bica antes de nos embrulhar numa intensa sessão de não-trabalho. Como é habitual, antes de começarmos, gostamos de conversar e tentar compreender o mundo, uma tarefa que, por si só, é um trabalho a tempo inteiro. O Ruy propôs irmos à Pastelaria Tebas, na Rua Heliodoro Salgado, que faz esquina com a Angelina Vidal. E como me propus fazer um artigo sobre uma marca de café, imaginei logo que poderia começar por este. Montámos a Yamaha 125 SR verde-garrafa dos anos 90, e, como tivemos de parar numa passadeira, demorámos 45 segundos a chegar.
Mesmo ao desmontar da mota, notei logo que se tratava claramente de um negócio familiar em que ainda se pode usufruir de um ambiente de bairro resistindo à lógica de pastelaria para camones. Com uma boa variedade de bolos e pães semi-industriais, este estabelecimento é despretensioso saltando à vista a higiene e o cuidado com que os itens são apresentados. A decoração é a convencional das antigas pastelarias, tornando-a quase numa raridade em Lisboa, onde florescem estabelecimentos de paredes negras e de balcões feitos em OSB. Quadros de pastelarias parisienses, autocolantes de pastilhas e Ice Tea vão dando alguma cor às paredes claras.
O café que esta pastelaria oferece torna-a numa preciosidade, resistindo à padronização trazida pelo turismo maciço e pelas marcas que se apoderaram do mercado. O uso do lote Rubi da marca Negrita ao longo das décadas destaca-se como uma característica única e especial, uma verdadeira mais-valia para apreciadores de café como eu, traduzindo a oferta quase singular em Lisboa. Contudo, um aspecto a considerar é que a iluminação apresenta uma tonalidade excessivamente branca, tornando-se desconfortável passado alguns minutos. Os cafés «moderninhos» destacam-se nesse aspecto, dedicando uma atenção considerável ao design de luz. Além disso, como não oferecem o Correio da Manhã para leitura, não requerem uma intensidade luminosa tão elevada.
Como recentemente deixei de fumar, dei-me ao luxo de me sentar e beber o café sem a pressa de o acabar para ir fumar o meu Davidoff Classic. Mas caramba, que saudades! Num mundo perfeito, o cigarro seria um medicamento para a hipertensão sem efeitos secundários. Pedi à Soraia dois cafés em meia chávena. Para garantir cafés perfeitos, solicitei-lhe que abrisse o vapor da máquina por dez segundos, de forma a obter os 9 bar de pressão e os 90º C. Surpreendida, mas ainda assim com um largo sorriso, foi ela própria prepará-los. Durante o processo, olhámos para a televisão que estava ligada, felizmente sem som. Não entendo por que raio as pastelarias e restaurantes em Portugal têm por hábito manter as televisões acesas. Já não aguento aqueles extraterrestres que invadem permanentemente as nossas vidas. Conhecemos melhor a cara do Zelensky do que a dos nossos próprios filhos. Num mundo equilibrado, teríamos uns óculos escuros para ler e ver todas as mensagens subliminares que nos são dadas pelos meios de comunicação, tal como no filme de 1988 de John Carpenter They live. Com ele veríamos seguramente o Elon Musk sem os artifícios humanos.
Comecei a sentir no ar a essência de L’Eau D’Issey combinada com o aroma dos cafés pedidos. Fomos salvos pela Soraia, que, ao entregar as bicas, nos fez desviar o olhar do secretário-geral da OTAN, cujo nome nem sei, que entretanto anexou o ecrã. O café vinha exemplarmente tirado. O creme com uns 3 milímetros de espessura, nem muito claro nem muito escuro, com uma óptima consistência e cor. No primeiro gole, senti de imediato uma acidez ligeiramente frutada lembrando melão, de amargor equilibrado num corpo elevado e denso. A mistura das variedades robusta com arábica é harmoniosa, sendo o sabor duradouro no paladar. Com o passar dos segundos, comecei a sentir um travo a calcário levemente desagradável. Talvez deva ser hora de depurar a máquina? Um café de qualidade que teria sido ainda mais louvado se fosse acompanhado por um croquete de carne (enquanto ainda for permitido).
Sem termos combinado nada, apareceu o Tim, que vive ali perto e é frequentador assíduo do Tebas. Enquanto ele saboreava um pastel de nata, e a propósito da conversa que estávamos a ter sobre o poeticamente correcto, sugeriu que fôssemos visitar a fábrica da Negrita, ali ao virar da esquina, na Rua Maria Andrade. Ficou apenas cinco minutos, pois estava atrasado para o trabalho, como sempre, e escolheu tomar apenas o café funcional da manhã. A 80 cêntimos, ainda nos podemos dar ao luxo de satisfazer o vício. Fez-me lembrar a compilação das onze curtas metragens de Jim Jarmush que deram origem ao filme de 2003 Coffee and Cigarettes. Figuras como Tom Waits, Iggy Pop, Jack White e Roberto Benigni, entre outras, exploram uma ampla variedade de temas, enquanto desfrutam de cafés e cigarros.
Pedi outro, desta vez pingado. Sem todas aquelas complicações do primeiro. A Soraia já tinha entendido que, em relação ao café, sou mais metódico e preciso do que o Froes em relação às infecções respiratórias. O que nos vale é que entretanto ficou tudo bem! Apesar de o ter apreciado com menos atenção, é o pingado que mais recomendo. O leite incorpora muito bem o sabor terroso do lote Rubi da Negrita. Após pagarmos e agradecermos o serviço, saímos pela esplanada em que o inglês era a língua mais falada por entre os clientes que a povoavam. Os computadores na mesa indicavam que provavelmente eram nómadas digitais. Para não variar, a mota só à quinta é que pegou. O fumo agora era outro. O piso estava escorregadio, e, os carris do eléctrico atrapalham sempre. Até lá chegarmos, tivemos de perguntar o caminho duas vezes.
Lá demos com o portão da fábrica da Negrita, que completa 100 anos no dia 24 de Março de 2024. Notavelmente, conseguiram manter-se em plena actividade, proporcionando emprego a uma dúzia de trabalhadores que, ao longo de décadas, têm infundido vida e o vigoroso aroma a café a toda a zona de Arroios. A riqueza visual e as fascinantes histórias que começamos a descobrir inspiraram-nos a tomar a decisão de produzir um pequeno documentário, o qual prometemos lançar nos próximos tempos.
Apesar de o mundo estar virado de pernas para o ar (isto para quem acredita como eu que o mundo tem pernas), e o cancelamento ser a grande tónica desta nova profissão que é o activismo, a Eng. Helena Pina, com o seu manifesto entusiasmo e paixão pelo trabalho, vai continuando a liderar esta empresa familiar contra todas as expectativas, e contra toda a lógica metacapitalista que se apoderou da indústria alimentar. Ao que parece, nos dias de hoje, os vários -ismos favorecem os metaqualquercoisa, pensando que estão a ser anticapitalistas. Auto-Karate Kid!
Assumindo o compromisso de desenvolver a minha perspectiva no formato de vídeo sobre os Cafés Negrita, por agora evito estender-me sobre estes assuntos. Dependendo eu da Direcção-Geral das Artes e de uma fundação que cresceu financiada por recursos petrolíferos mas que agora generosamente destina um milhão à Greta, opto por manter um perfil discreto e reservado. Não vá o Schwab tecê-las.
Bruno Cecílio é artista
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