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Ironia do destino: os acríticos aprenderam a criticar os media

silver bell alarm clock

por Maria Afonso Peixoto // Fevereiro 1, 2024


Categoria: Opinião

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Muitos jornalistas e activistas ‘antifascistas’ parecem ter sido subitamente assaltados por um aguçado espírito crítico em relação à imprensa mainstream. E quem é o responsável por este milagroso despertar do torpor em que estavam mergulhados? O Chega.

Por estes dias, temos assistido a uma indignação galopante contra alguns canais de media, acusados de indirectamente ‘levar ao colo’ o partido de André Ventura já que lhe dedicaram uma desmesurada atenção e espaço. Mesmo que, confesso, não seja eu uma telespectadora suficientemente assídua para confirmar a justeza deste argumento, até dou de barato que haja razão. De qualquer modo, esse aspecto não me parece ser relevante para uma discussão séria.

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O ponto a salientar é outro, e bastante simples: aqueles que não disseram uma palavra sobre a vergonhosa cobertura mediática feita em torno da pandemia, agora já põem em causa os critérios daquilo que se revela ou não como uma notícia. De repente, parece que os críticos perceberam como o gatekeeping, a selecção das matérias tratadas pelos media, pode ser duvidosa e obscura.

Por isso, é legítimo perguntar: em que mundo têm vivido estas pessoas para não se terem apercebido de que 70% ou 80% – estou a especular nos números, mas entendam a ordem de grandeza – daquilo que sai nos media serve para encher chouriços e esvaziar cabeças?

Acordaram agora para a realidade do ‘soundbite’ e do fútil? E o que se segue para estes novos combatentes do populismo noticioso: vão aderir às tais “teorias da conspiração” propaladas pelos supostos “chalupas” de que, afinal, sempre é verdade que os media estão comprados, que é tudo propaganda? Há quem lhe chame ironia do destino.

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A hipocrisia destes novos ‘questionadores’ é gritante. Recordemos, por exemplo, o período da pandemia. Muitos revoltados com a miserável e nada isenta cobertura jornalística, lançaram ataques ferozes sobre a imprensa – alguns até físicos, como aconteceu nos Estados Unidos e no Reino Unido, com protestos junto das instalações de canais como a CNN e a BBC. Os próprios media, nacionais e internacionais, claro, retribuíam os ‘mimos’, acusando estes grupos de atentarem contra a democracia e de serem de “extrema-direita” ou anti-sistema.

Em Portugal, o conhecido cantor de hip-hop ‘Estraca’ lançou, em Dezembro de 2021, “Jornalixo”, que denunciava a podridão e corrupção dos órgãos de comunicação social. Tornou-se ‘viral’ nas redes sociais, mas o rapper foi ridicularizado por muitos daqueles que agora vociferam contra os media.

Há ainda um exemplo paradigmático e particularmente revelador da duplicidade de critérios de quem hoje culpa a comunicação social pelo crescimento (mediático) do Chega. Donald Trump, inegavelmente detestado por muitos jornalistas, foi sempre alvo de um escrutínio feroz e desigual em comparação com os candidatos do Partido Democrata. O tratamento que recebia era, sem qualquer dúvida, tendencioso e negativo.

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Nesse contexto, o ex-presidente norte-americano chegou a dizer que “os media são o inimigo do povo”. Esta entrada a pé juntos fez os supostos defensores da democracia rasgar as vestes. Os ‘antipopulistas’, contudo, pouco se importavam que se deitasse para o lixo a isenção e o rigor jornalísticos quando o protagonista das notícias era Trump. Valia tudo, até mentir ou distorcer os factos para denegrir a sua imagem. Na altura, essa cobertura mediática afagava o seu viés ideológico.

Agora, dá-se um plot twist. Os acríticos foram picados pelo bichinho do espírito crítico e já aprenderam a desconfiar dos media. Estamos perto de ver essas pessoas, que aplaudem a comunicação social quando se ‘porta bem’ – e promove os actores políticos que lhes agradam – e a condenam quando, aos seus olhos, se ‘porta mal’, dizerem que os media são o inimigo do povo. Só agora, porque o Chega continua a subir nas sondagens. Santa hipocrisia. Santa paciência.

Maria Afonso Peixoto é jornalista


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