RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra

por Rui Araújo // Fevereiro 1, 2024


Categoria: Exame

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“Um alfaiate faz de um torto um jeitoso”, mas, mesmo assim, o ofício está a desaparecer por esse país fora e a “Alfaiataria Cerqueira”, em Longra, não é exceção.

Corria o ano de 2020. Rui Araújo passou uma tarde com os alfaiates e as costureiras do atelier do Mestre Cerqueira, que passou a vida na Senhora Aparecida, e, precisava de um milagre para o negócio sobreviver.


Longra.

Bati de fugida e entrei na loja sem saber ao que ia.

Ao fundo, no atelier, dei com os alfaiates e as costureiras.

Joaquim Cerqueira, apesar de céptico, deu-me as boas vindas.

Admiro a bonomia ou a cordialidade desta gente honrada e trabalhadora do interior a contas com o isolamento e a adversidade.

(Foto: Rui Araújo)

A alfaiataria Cerqueira a é a única da vila e das redondezas.

Chegou a ter 14 costureiras e alfaiates mais o mestre. Hoje, já só trabalham, aqui, quatro pessoas, incluindo a esposa e o sobrinho do dono. E uma costureira.

A prosperidade de antanho pertence irremediavelmente ao passado apesar de a alfaiataria ser mais do que um mero ofício para esta gente.

— Isto é uma arte. Uma prisão. Tem que se estar com a perna cruzada a trabalhar, a aprender, a dar pontinhos. É… é impossível, senhor Araújo. Eu sou o último alfaiate de Longra, se calhar sou o último de Felgueiras e, se calhar, vou ser o último do Distrito do Porto… — segreda o mestre com um sorriso tímido de candura.

O solilóquio é sincero. O tom é triste. As coisas são o que são… O negócio está a definhar. 

Joaquim Cerqueira aprendeu a arte quando ainda era gaiato. Tinha acabado de deixar a escola. 10 anos de idade.

— Eu fiz sempre trabalhar a mão. Isto é a mão. Ó senhor Rui, trabalhar com a mão demora anos a aprender. E se posso… se puder recuar atrás, eu, quando fui trabalhar, no meu tempo pagava-se para aprender a arte. Ainda é o tempo que se pagava. E eu andei e porque… anda que o meu pai não pagou, mas toda a gente pagava naquela altura: três contos ou 500$00. Era assim… Eu andei assim um ano de graça. A seco. E no fim de um ano começaram a dar-me 15 tostões por dia. Sem horário de trabalho…

A desilusão é tremenda, mas no atelier ninguém esmorece.

Dona Maria Cidália Pinto, a esposa, começou a trabalhar como bordadeira com oito anos.

Hoje, ousa recordar a significação de alguns momentos singulares aqui vividos.

Uma vida cheia…

— Eu não era para contar esta, mas pronto, já agora vou contá-la… Houve uma altura que eu estava aqui com os meus filhos nos primeiros anos, que nós não morávamos aqui, era um bocadinho longe e, muitas vezes, antes de ter os filhos eu ia mais o meu marido numa motita às 2… 3 da manhã com frio, com chuva. Depois, entretanto, nasceu a minha filha, a primeira filha, e nós para não ir com a menina na mota ao frio, montámos, aqui, neste cantinho um divãzinho, aqui ao lado, um fogãozinho daqueles pequeninos aonde eu fazia a refeição da noite e dormíamos aqui para não apanharmos frio por aí abaixo com a menina…

As voltas que a vida dá…

E não vale a pena encobrir a verdade por mais absurda que seja.

Antigamente, a «Alfaiataria Cerqueira» fazia 15 ou 20 fatos e 90 pares de calças por semana — tudo à medida do freguês.

Hoje… com a pandemia e a crise aparece um trabalho ou outro.

As prateleiras aprumadas repletas de alpaca, fazenda, entretela, caxemira, cetim, algodão, surrobeco, burel e lã pura — tecidos de qualidade, alguns importados de Inglaterra e de Itália — só revelam que ainda se fazem aqui bons fatos à antiga portuguesa, trajes de equitação, samarras, capotes e casacas de gala para toureiros e devotos. E.… não só.

Joaquim Cerqueira Machado escuta-nos, mas (incansável) não tira os olhos do tecido. O padrão para ele é a excelência.

— Há uma coisa de que nunca mais me esqueci. Um dia, em Guimarães, tinha um senhor alfaiate dava cursos de recosa, a fazer os cursos de corte. E uma coisa que ele sempre me disse: um alfaiate de um torto faz um jeitoso. De um homem torto nós pomos um jeitoso porque nós conseguimos pôr… fazer as alterações todas. O alfaiate, enquanto que a confecção não faz alterações nenhumas. Se… O homem pode estar assim torto que nós conseguimos pôr o fato direito. E o resto ninguém consegue…

Não é arte. É milagre! — acrescento, como quem não quer a coisa.

Às vezes é mesmo milagre. (RI-SE) Às vezes faço cada milagre…

Afinal de contas, os milagres existem e os homens são todos iguais. Quem o diria (concluo no meio destas vidas estranhas ou desconchavadas fora do mundo do consumismo do pronto-a-vestir e do pronto-a-pensar).

Cláudia Mendes, a costureira mais nova, já está cá há mais de 20 e tal anos.

Cortar, coser, casear, chulear, guarnecer, alinhavar — tanto faz! — é com ela.

— Às vezes uma pessoa tenta, tenta, tenta, faz, desfaz, volta a fazer, volta a desfazer, levanta-se e vai dar uma voltinha para conseguir fazer perfeito… (RI-SE)

A nobreza da costura e da alfaiataria reside na busca permanente da perfeição. Do contentamento de se atingir a perfeição…

— A alfaiataria é uma arte que é pena ela desaparecer, senhor Rui, mas não há volta a dar. Hoje é muito difícil criar-se um artista. Muito difícil. Só com um milagre, mas os milagres já não se fazem.

A grandeza ou a força moral desta gente que não me canso de admirar é a luta por um amanhã menos desconsolado apesar de o raio da pandemia, que está a dar cabo do negócio e do resto, nunca mais acabar…

É outro dia calmo sem horas devolutas.

Fotos extraídas de vídeo de Romeu Carvalho/TVI (com excepção da foto da autoria de Rui Araújo)

Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2020.


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