VISTO DE FORA

Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI

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Há dois dias que só ouvimos falar de Fernando Madureira, ou do Macaco, como ele prefere ser chamado – o líder de um gangue criminoso que, por acaso, também vai à bola.

Vi Miguel Sousa Tavares (MST) indignado com o estado em que a polícia deixou a casa de Madureira, e até a filha do visado a queixar-se da violência e agressividade com que a polícia por ali entrou. Percebo MST, percebo mesmo. Ainda é do tempo em que os polícias telefonavam a avisar antes das rusgas, dando tempo aos visados de fugirem para Vigo. Bons tempos que parecem não querer voltar.

Já o espanto da miúda, tenho alguma dificuldade em entender. A não ser que o casal Madureira tenha proibido a filha de ir ao Youtube, há por lá boa documentação, do pai e da mãe, bem como dos amigos de ambos, em preparos bem mais violentos e agressivos do que a PSP a entrar pela porta da frente sem tocar à campainha. Para ela, aquilo deveria ter sido uma simples terça-feira de trabalho.

Aquilo que realmente acho interessante neste caso é, uma vez mais, o tempo em que tudo acontece.

Há pelo menos 20 anos que toda a gente sabe quem é Fernando Madureira. Até porque, convenhamos, ele não gosta de fazer um grande segredo das suas actividades. Tal como boa parte dos seus compatriotas, Madureira vive, diz, com o salário mínimo. A dura realidade de um país pobre, segundo a declaração que, anualmente, entrega em sede de IRS. Contudo, ao contrário de boa parte dos sobreviventes do salário mínimo, Madureira consegue esticar os parcos recursos declarados e viver, digamos, confortavelmente. Construiu uma moradia de luxo com dois pisos e piscina numa zona nobre de Gaia. Conduz um Porsche e um BMW topo de gama. Viaja frequentemente para sítios paradisíacos, onde o bilhete de avião e a estadia custam vários salários mínimos.

Dir-nos-ia a Iniciativa Liberal que estamos perante um empreendedor, um homem que não se resignou à sua condição de pobre e que procurou investir em si mesmo. Um homem que faz a multiplicação dos pães ou, neste caso, dos salários mínimos.

Desconfia-se, há muitos anos, que Madureira e vários membros dos Super Dragões estão envolvidos em actos ilícitos e, dessa forma, conseguem suportar os custos de uma vida de luxo sem que se conheça, aparentemente, um emprego fora da claque.

Pergunto-me: como é que as autoridades terão desconfiado disto?

Durante duas décadas, vimos Madureira e membros dos Super Dragões a vender bilhetes para jogos (libertados pelo próprio clube), ficando provavelmente com os lucros e oferecendo, em troca, todo o tipo de serviços ao clube, dentro da gama de recursos que uma guarda pretoriana pode oferecer.

Vimos Pinto da Costa escoltado pelo gangue a caminho do tribunal, vimos visitas filmadas a árbitros no seu centro de treinos, soubemos de passagens por estabelecimentos de árbitros ou seus familiares na véspera de jogos. Há relatos de jogadores ameaçados pela claque quando não quiseram renovar contrato. Agressões a jornalistas, adeptos, adversários. O clima de terror e coacção vem de trás e trouxe, para além de alegados proveitos desportivos, aparentes proveitos económicos.

Fernando Madureira mexe-se bem na alta roda dos interesses. Tanto aparece aos abraços com Pedro Proença, o dirigente máximo da Liga Portuguesa de Futebol, antigo árbitro amigo; como é visto com o apoio da Federação Portuguesa de Futebol, a liderar uma claque patrocinada para a nossa Selecção. Isto apenas por ter revelado, em livro, uma série de assaltos feitos nessas mesmas deslocações com a claque.

Deve ser um dos poucos casos em Portugal onde o autor confessa os seus crimes pela via escrita ou filmada e, mesmo assim, nada lhe acontece.

Há 20 anos que sabemos desta promiscuidade e, obviamente, a passagem do tempo aumentou a sensação de impunidade. Madureira faz o que quer, como quer, e quando quer. Em Gaia, expulsa de um restaurante um antigo funcionário do Benfica. Filma-se em combates ilegais de rua. Vende bilhetes em directo, afirmando que tem todos os bandidos do Porto ali por perto. Relata, detalhadamente, como roubam pessoas ou estações de serviço a caminho dos jogos. A única coisa que falta colocar em livro são os pontos de recolha e entrega de droga, outro dos negócios alegadamente ligado ao gangue liderado por Madureira.

Pelo meio desta vida atarefada de gestão do salário mínimo nacional, Madureira ainda teve tempo para gozar com o sistema de ensino português. Conseguiu entregar uma tese de mestrado numa universidade privada e obter o grau de mestre com 17 valores.

A revista Visão, em 2017, num artigo de Miguel Carvalho, relatava o seguinte sobre este tese:

“Quando leu o documento, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ia tendo um susto. Ou pior. A tese de Fernando Madureira é um insulto à Língua Portuguesa e ao desporto nacional. Manuel Sérgio [catedrático da Faculdade de Motricidade Humana] pode ter um ataque cardíaco se a ler!”, ironiza, sem se deter, citando um dos académicos mais prestigiados nesta área. “É escrita num Português iletrado, analfabeto e ridículo. Inacreditável que uma instituição do ensino superior aceite tal coisa”, reforça Maria Alzira Seixo.

Porquê agora? Numa vida cheia de história mal contadas e com provas repetidas de crimes cometido, o que mudou? Porque acordou o mundo para a realidade de Fernando Madureira, Sandra Madureira e o gangue criminoso por eles liderado? Por causa de uma assembleia geral onde as ameaças e coacção, normalmente usadas para adversários, foram aplicadas à oposição interna com aquele vergonhoso condicionamento dos trabalhos? Não, não foi por isso.

Pinto da Costa reina tranquilo há 40 anos sem que alguém tenha sequer coragem para o criticar. Durante muito tempo, a claque garantiu que ninguém se aproximava sequer do poder. Aliás, a vida que Madureira tem só será possível enquanto Pinto da Costa for o presidente do Futebol Clube do Porto. E o contrário também é verdade. Direccão e claque precisam um do outro para manter as rotinas das últimas duas décadas.

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Não foram os desacatos da assembleia geral que deram o alerta nas forcas de segurança. Não há nada de novo na violência e métodos do gangue. A novidade é que, desta vez, a oposição parece ter alguma força e, aos poucos, começa a cheirar a fim de ciclo e à queda do poder vigente. Ora, em Portugal, todos sabemos, a impunidade dos mais poderosos acaba quando a cadeira do poder se parte.

Pinto da Costa está de facto ameaçado por André Villas Boas e sabe que, se não sair da administração do Futebol Clube do Porto num caixão, será ele o próximo a ir responder à Judiciária ou à PSP. O mesmo para o gangue de Madureira. A vida de luxo à custa do clube e o constante olhar para o lado das autoridades mantém-se, enquanto o poder instituído for o mesmo. Quando o sistema se começar a desmoronar, Madureira será a sua primeira vítima.

A história de Madureira não diz nada sobre ele que já não fosse público. Diz, e muito, de como funciona esta República das Bananas a que vamos chamando Portugal.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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