CAPÍTULOS 49-51

A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

por Lourenço Cazarré e Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 4, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


49 – Os melhores pesadelos são os pós-prandiais

Batota interpôs-se entre Bugres e o delegado. Pensei, de início, que pretendia proteger o argentino. Depois apontou seu dedo gordo na minha direção. O danado do utente de comboios vai me denunciar de algo, pensei com os meus botões e com as casas em que eles estavam enfiados.

– Senhor delegado, aqui este jovem jornalista tem o tal bilhete que, aliás, foi escrito em português. 

Levei um susto. Nem lembrava mais do tal bilhete. Estupidificado, atrapalhado, tateei os bolsos à procura dele. Finalmente, puxei por ele, já amarrotado.

– Leia! – ordenou o delegado.

Limpei a garganta e li com voz incerta:

Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela: apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.

– Tem assinatura? – perguntou o policial.

– Só uma letra, maiúscula, um S – respondi.

Aroeira dirigiu-se a Bugres:

– Por que o senhor escreveu em português? Por que não escreveu na língua que compartilhava com a defunta?

– Ora, porque, se escrevesse em espanhol, não resistiria à tentação de construir frases elegantes, que acabariam me denunciando. Utilizando-me de uma língua primitiva, no caso, o português, fui obrigado a ser quase grosseiro.

Indignado com a ofensa à última flor do Lácio, Batota levantou-se bruscamente. Seus olhos lampejavam uma raiva atroz, mas que não intimidou o conterrâneo de Carlos Gardel, claro. Porém, é certo que o menestrel dos punhais e labirintos captou integralmente a fúria que, a seguir, veio entranhada na voz do lusíada:

– Língua primitiva é essa coisa a galope que vocês falam. Na Argentina, todos falam como se fossem locutores de corridas de cavalo. Como ousa tamanha ignomínia!

Até a mim o Batota surpreendeu a seguir. Fulo da vida, o português apanhou no prato um resto de bife, que jogou contra o escritor portenho. Atingido pelo sangrento projétil no rosto, Bugres, lenta e gravemente, limpou-se com um lenço imaculado. E, depois de passar a ponta da língua pelo lenço, disse:

– Que desperdício! Mas, vendo bem, era carne uruguaia, entrecot de segunda. E o animal, provavelmente, estava com febre aftosa. Da próxima vez que tentar me matar, por favor use um legítimo bife de chorizo argentino.

Alguns escritores ensaiaram uns risinhos, mas Aroeira os calou com um olhar gélido. E, depois, indagou do autor de História universal da infâmia:

– Mas afinal onde o senhor aprendeu tão bem o português?

– Minha querida mamãe leu para mim, mais de dez vezes, Os Sertões, de Euclides da Cunha – respondeu Bugres, sorrindo.

– Voltemos ao nosso crime. Não lhe passou pela cabeça que dona Miguela poderia levar um susto fatal ao ler o bilhetinho?

– Não, de modo algum.

– Mentira! – explodiu Batota, e deu um tapa de mão aberta na mesa. – O porteiro do meu hotel ouviu quando o senhor sugeriu a dona Miguela que lesse o final do Apocalipse após o almoço.

– Porteiros de hotéis são sempre abelhudos! Admito, sim, que sugeri a Miguela a leitura do Apocalipse, após o almoço. Mas só o fiz porque julgo que o livro sagrado é aquele que proporciona os melhores pesadelos pós-prandiais. Aliás, por falar nisso, é importante registrar aqui que os sonhos ruins das tardes são mais apavorantes que os noturnos. Portanto, são sonhos mais proveitosos, literariamente falando. Ou seja, eu só queria ajudar Miguela.

– Mas por que o senhor assinou com a letra S? – indagou, no entanto, Aroeira, levantando-se.

– Porque é a nona letra do meu nome. E o nove, na mitologia pérsica, corresponde ao semideus do pesadelo, Hilomeus Katrei, o Nove Dedos, meio homem, meio tigre.

A resposta não satisfez o delegado que, movendo a cabeça de um lado a outro, negativamente, deu uma volta inteira, teatral, ao redor da mesa.

– O seu bilhete é crudelíssimo – disse o policial. – Criminoso, eu diria. Ele seguramente desencadeou o enfarto que matou a nossa escritora.

Um silêncio constrangedor desceu sobre a mesa. Estranhamente, por mais de um minuto, chafurdamos nele até que Bugres resolveu reagir:

– Não gostei do emprego da palavra seguramente, delegado. Não temos o direito de ser peremptórios. Nem mesmo quando aquilo de que estamos falando se passou diante do nosso nariz. Entre um fato e sua enunciação, mesmo que simultânea, há um abismo colossal. Assim, se for facultado ao senhor o emprego da palavra seguramente, eu terei direito a retrucar usando a expressão de modo algum. E com isso, ambos, teremos razão, em um ou em outro momento.


50 – Prova não tem importância no Brasil

Satisfeito consigo mesmo, encantado por estar embromando o policial, o poeta portenho não conseguiu esconder o sorriso maroto que lhe veio ao rosto.

Depois, ao fim de um demorado pigarro retórico, continuou:

– Sua tese do bilhete fatídico é interessante, delegado, porém falsa. Admitamos que Miguela leu o bilhete e que, em função dessa leitura, tenha sofrido um enfarte. Mas, aí, eu lhe pergunto: como poderá o senhor provar cientificamente que há uma ligação direta entre dois fatos de natureza distinta: a leitura, que é algo espiritual e elevado, e a morte, que é um fato físico, rasteiro e sem transcendência.

O delegado, que mantivera a cabeça abaixada enquanto o poeta falava, ergueu bruscamente o rosto e contra-atacou:

– O senhor tenta erguer aqui uma barricada verbal para fugir à Justiça brasileira, mas não conseguirá se safar. Isso eu lhe garanto. O Brasil é um país de amantes da palavra falada. Praticamos com gosto uma algaravia mestiça mais vigorosa e doce que o idioma original. Mas, essencialmente analfabetos, odiamos a palavra escrita porque ela permite e propicia enrolações, como a que o senhor está encenando aqui.

– Que tenho eu a ver com essa inclinação brasileira pelo analfabetismo?

– Tudo! – grunhiu o delegado. – Indiciado por mim, o senhor será levado a júri. No Tribunal, prestarei um depoimento emocionado contra o senhor. Os jurados acreditarão em mim porque sou brasileiro. O senhor, estrangeiro, será considerado o culpado.

– Mas e as provas? – indagou Bugres, assustado. – Onde ficam as provas nesse hipotético julgamento?

– No sistema judicial brasileiro provas não têm muita importância. Ao começar meu pronunciamento, direi que o senhor é argentino. Imediatamente os jurados farão uma ligação com o futebol e…

– Mas eu odeio futebol! – gemeu Bugres. – Escrevi isso repetidas vezes.

A preocupação do poeta era já, neste momento, visível nas suas sobrancelhas, ainda mais espetadas que o pelo de um gato que acorda em meio a um pesadelo. Comecei sentindo pena dele. Nós, gaúchos, somos treinados, desde o berço, a odiar os argentinos. Diz o ditado: com sino, menino e argentino, só na pancada! Quase comovido, resolvi intervir em favor dele:

– Doutor Aroeira, acho que o senhor Bugres estava brincando quando escreveu que dona Miguela era uma plagiária contumaz.

vintage books collection

51 – Autores emprestam seus defeitos aos personagens

Detectando a solidariedade e a cumplicidade das minhas palavras, o escolhido das musas voltou a falar, corrigindo-me:

– Na verdade, nenhum livro está isento de plágio, no todo ou em parte. Gênios ou escritores de quinta categoria, nós só rabiscamos pastiches do livro infinito que foi, está e estará sempre sendo escrito pelos deuses. Quem se utiliza da palavra escrita, recorre a um único e inesgotável manancial de símbolos, que é do uso também das divindades. Em contrapartida, os deuses nos exigem moderação…

– Saia do labirinto! – berrou Aroeira. – Esqueça os deuses e volte ao plágio.

Nervosas e assustadas, as mãos do argentino tamborilaram dramáticos trechos de um tango no tampo da mesa. E, só depois desse espetáculo digital, ele voltou a falar:

– Sim, o plágio! Descendo à linguagem mais rasteira, delegado, eu diria que a ambiguidade sexual do detetive Juanito Saavedra, de O touro maltês, parece ter sido copiada da discreta afetação feminil de Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine.

Depois de um suspirado oh! de espanto, todos os olhares se voltaram para a escritora inglesa, que piscou os olhos, piscou, piscou, mas nada falou.

Continuou o poeta:

– De outro lado, Juanito Cervantes também lembra Jales Maigrot, o comissário inventado por Georges Sim Et Non. São semelhantes na estupidez. Indago: teria Miguela de Alcazar calcado seu herói no de Sim et Non? É possível, mas sabe-se também que, quase sempre, autores buscam na própria mente os defeitos que emprestarão aos seus personagens…

– Seria por isso, meu irmão, que Dom Isidoro Paródia é tão pedante? – perguntou Sim Et Non. – Seria esse teu detetive, inverossímil e livresco, um resumo de toda a obra escrita por tu?

As bochechas chupadas do autor francês estavam vermelhas e tremiam, raivosas.

Já o argentino tentava aparentar calma, mas a agitação histérica de suas sobrancelhas o desmentia. Como se sabe, ele tinha muito orgulho de ter criado Dom Isidoro Paródia

Fechando as mãos e alçando os ombros, como alguém que vai entrar em um combate corporal, Bugres voltou a cuspir veneno:

– Eu diria ainda que os trechos mais ridículos de O touro maltês lembram as passagens mais banais de Contravenção e penalidade…

– Banal é a senhora sua mãe, aquela quenga da peste! – berrou Fedorova e fez menção de levantar-se. Mas não conseguiu. A provisão de cachaça que armazenara no bucho a puxou para baixo e a fez sentar-se novamente. Furibunda, acrescentou: – Espero que você arda para sempre no círculo dos baitolas no inferno, castelhano filho do cão!

Sem se abalar com a gritaria da russa, o poeta de Buenos Aires despejou outra dose de peçonha:

– Se pudesse falar, sem ser interrompido por grunhidos, eu afirmaria ainda que os mais tediosos trechos de O touro maltês guardam forte semelhança com as mais áridas passagens de Guerra na Praça da Paz Celestial.

Voltamo-nos todos para o escritor chinês, que abrindo um pouco mais o permanente sorriso e fechando, em idêntica proporção, os olhos, declarou:

– O tédio é estado em que um espírito cultivado permanece a maior parte do tempo. O que há de mais grandioso na terra? O deserto. O deserto é a metáfora perfeita para a aridez de nossas vidas. O deserto é o nada e o nada é o vazio. De que está cheio o vazio, meu? De tédio. Leitor culto é o que sabe apreciar os trechos mais áridos de um livro.

As sobrancelhas de Bugres sossegaram por um instante, reconhecendo que o chinês também era bom em frases sinuosas.

Nisto, olhei para o Batota e para o delegado que assistiam a estes bate-bocas como se estivessem acompanhando a partida final de um torneio de tênis.

man playing tennis

(cont.)


Sobre os autores (actividade literária)

Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.