Descrições macabras de um homicídio e afirmações sobre uma alegada maior prevalência da violência em casais homossexuais numa rubrica criminal integrada num programa matinal da SIC, então apresentado por Cristina Ferreira há cinco anos, teve agora um epílogo. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) considerou não ser afinal chocante o uso dessa linguagem se for enquadrada por especialistas, mas em 2020 o anterior conselho regulador tecera críticas contundentes à SIC, também por usar jornalistas em programas de entretenimento, e acusou mesmo Hernâni Carvalho de deturpar um estudo, alimentando os mitos em redor da violência entre casais homossexuais.
Cinco anos depois dos factos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) arquivou um processo de contra-ordenação contra a SIC aberto em 2020 por uma rubrica de crimes, integrada no então programa matinal de Cristina Ferreira, detalhar um homicídio envolvendo um casal homossexual, onde se chegou a afirmar que “as relações homossexuais têm um tipo de violência muito maior”. A decisão foi tomada no final do mês passado e divulgada hoje.
O novo conselho regulador, agora presidido por Helena Sousa, veio assim contrariar a interpretação do anterior conselho, então presidido pelo juiz Sebastião Póvoas – e então ainda com Mário Mesquita como vice-presidente –, que instaurara um processo contra o canal televisivo do Grupo Impresa por, sendo orientado por jornalistas, a rubrica sustentar-se em comentários e descrições macabras, além de se ter tecido comentários susceptíveis de discriminação por orientação sexual, e até divulgados “a morada completa e por escrito da vítima, bem como outros dados pessoais dos visados”.
Em causa estava a rubrica “Crónica Criminal” de 14 de Fevereiro de 2019, integrada no “Programa da Cristina”, num modelo que a ERC então criticou por constituir “a inserção de um conteúdo ou género jornalístico num programa anunciado como pertencendo ao macrogénero ‘entretenimento’”, imprimindo-lhe assim “um carácter híbrido, tornando mais escorregadias as fronteiras entre os géneros discursivos talk-show e entrevista jornalística e funções a que estão associadas”.
Na rubrica daquele dia, apresentada pelo jornalista Luís Maia (que não tem actualmente a carteira profissional activa), esteve em debate um homicídio no seio de um casal homossexual, pormenorizando-se repetidamente o número de facadas e outros pormenores mórbidos, algo que o regulador em 2020 considerou não ser compatível com um programa matinal classificado para todas as idades.
Porém, mais do que isso, um dos comentadores, o também jornalista Hernâni Carvalho (actualmente com carteira activa), mas apresentado como especialista em Psicologia Forense, fez considerações sobre uma alegada maior violência nas relações homossexuais. Na sua intervenção, Hernâni Carvalho referiu textualmente que «as relações homossexuais têm um tipo de violência muito maior», algo que em 2020 a ERC considerou que “pode ser entendida como dando corpo a uma visão estereotipada, construindo definições generalizadoras sobre determinados comportamentos sociais”.
Com efeito, na sua primeira análise em 2020, o regulador é bastante crítico sobre a postura de Hernâni Carvalho por aquele até ter alegado que a sua afirmação se basearia num estudo concluído em 2006 intitulado “Mitos e estereótipos sobre a violência nas relações homossexuais”. A ERC constatou que, afinal, “os comentadores e em particular Hernâni Carvalho produziu “um discurso que é totalmente divergente e mesmo contrário às conclusões [desse] estudo em que se diz basear, apesar de recorrer a números que o estudo indica, para depois deturpar por completo o seu sentido”.
E a ERC ia em 2020 ainda mais longe nas críticas, ao dizer que “Hernâni Carvalho não apenas retira do estudo conclusões que ele não tem, como insiste no reforço dessa conclusão com a afirmação de que ‘nos casais homossexuais, há testosterona do mesmo nível nos dois lados’, e que isso justifica a mais elevada intensidade da violência”, quando “esse argumento, reiterado pela apresentadora, está totalmente ausente do estudo com que pretende justificar a sua argumentação”. E o regulador concluía então que “apesar da referência ao estudo e dos elogios a uma das suas autoras [Carla Machado], o comentador deturpou completamente as suas conclusões, tendo inclusivamente reforçado aquilo que o próprio estudo refere como ‘Mitos e estereótipos sobre a violência nas relações homossexuais’, exatamente o que, de acordo com o estudo, se deve evitar”.
Além de tudo isto, na deliberação de 2020, com 18 páginas, o regulador considerava ainda que “a linguagem utilizada, por todos os intervenientes na ‘Crónica criminal’ (jornalista, apresentadora e comentadores), consubstanciado a exploração de um acontecimento dramático, violento e chocante, prende a atenção dos espectadores, sem séria ponderação das respetivas implicações no plano da violação da dignidade humana e da intimidade da vítima, uma inobservância dos princípios ético-legais que regem a prática do jornalismo e tem por fim acicatar o estímulo ao voyeurismo através de um sensacionalismo reprovável, tido por eficiente na captação do ‘interesse’ do espectador, o que é particularmente grave na peça jornalística apresentada”.
Contudo, apesar do rol de acusações feitas na deliberação de 22 de Abril de 2020, e que abriu então o processo de contra-ordenação por violação da Lei da Televisão, o caso foi-se arrastando. Na deliberação hoje publicada, e votada por unanimidade pelo novo conselho regulador, destaca-se que a única questão abordada no processo de contra-ordenação acabou por ser a inserção da rubrica criminal e da linguagem usada num programa matinal.
Ora, o novo conselho regulador considerou quem apesar de naquela rubrica em 2019 ter sido feita uma “descrição verbal de um crime desacompanhada de imagens gráficas de violência extrema”, o tema “teve o devido enquadramento por especialistas no espaço de comentário que se seguiu, e que as expressões utilizadas não são sequer apresentadas de forma enfatizada, detalhada ou evidenciada e foram emitidas no final da manhã de um dia de semana (quinta-feira) – e não, por exemplo, no intervalo de programas infantojuvenis”. Para a ERC isso foram “circunstâncias que contribuem para formar a convicção sobre a baixa probabilidade de a sua visualização ser suscetível de ter repercussões ou efeitos graves em crianças ou adolescentes”.
Caso fosse condenada, a SIC poderia ter de pagar uma coima entre os 20 mil e os 150 mil euros.
O PÁGINA UM tentou obter um comentário de Hernâni Carvalho sobre este caso e a decisão definitiva da ERC, mas ainda não obteve resposta.
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