Título
Ecos do Mundo
Autor
Eça de Queiroz
Editora (Edição)
Editora Carambaia, Brasil (2019)
Cotação
20/20
Recensão
Um dos maiores escritores da língua portuguesa do século 19 – tinha do outro lado do Atlântico um rival (e adversário?) de idêntico quilate: Machado de Assis -, José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) foi também um formidável cronista que por décadas colaborou com inúmeras publicações de seu país e do Brasil.
A observação implacável dos fatos, calcada em informações idôneas; a construção de perfis de grandes homens públicos; o esquartejamento impiedoso das idiossincrasias de certas nacionalidades e a análise acurada das tendências políticas e comportamentais de sua época; tudo isso - temperado por uma prosa elegante e uma ironia corrosiva - marca as crônicas jornalísticas do criador de Os Maias e A ilustre casa de Ramires.
Em 2019, a editora Carambaia lançou no Brasil o livro Ecos do Mundo - reunião de 40 crônicas - que nos permite descobrir quanto o trabalho diplomático de Eça certamente contribuiu para que se tornasse o grande articulista que glosou, como fina inteligência e implacável sarcasmo, os principais acontecimentos do seu tempo.
Essa obra traz artigos que podemos dividir em quatro grandes blocos. No primeiro, temos oito crônicas que fazem referência ao Brasil ou a brasileiros. No segundo, aparecem oito composições sobre a Inglaterra, país no qual o diplomata morou por 14 anos. No terceiro, há mais oito escritos sobre assuntos da França, onde Eça de Queirós atuou por 12 anos. Finalmente, na quarta parte, vêm 16 escritos sobre 13 nações.
Golpes de tacape
Ao final da leitura, a primeira pergunta que pode ocorrer ao leitor dos nossos dias é: como Eça de Queirós – ainda que sob pseudônimo - pode escrever o que escreveu sem perder o emprego no Ministério dos Negócios Estrangeiros?
Sim, porque é incontável o tanto de ferozes e certeiros golpes de tacape que desfere contra civilizações, países, potentados e culturas. Mesmo quando traça um retrato simpático de alguém, como é o caso do Czar Alexandre III da Rússia, Eça não deixa de ser incisivamente crítico.
"Ora, o Czar é um autocrata onipotente e de uma onipotência sem igual na história, pelo menos na história da Europa civilizada. Mesmo nas grandes civilizações asiáticas, os soberanos não dispõem de um poder tão incircunstrito".
Já a fotografia que Eça faz do mais extenso país do mundo é ainda mais vitriólica: "A Rússia é de fato uma velha casa asiática com uma varanda rasgada sobre a Europa... Um pouco do ar da Europa penetra então pela varanda levando o rumor de nossas ideias, de nossas inovações morais. Mas é um ar que mal passa das grades. E quando as portas da varanda se fecham, só há dentro um oriente antigo e muito estranho, que nós não podemos compreender"
O livro todo
A inclinação natural de alguém que escreve um artigo sobre Ecos do Mundo é a de pedir ao editor do jornal (hoje, blog) a mera transcrição dos trechos mais surpreendentes, certeiros e divertidos. Ocorre, porém, que esses belos trechos são tão numerosos que, no fim da conta, melhor seria reproduzir o livro todo, crônica a crônica.
Vamos aqui nos concentrar principalmente na Rússia - onipresente na mídia mundial desde que há cerca de dois anos desencadeou uma “operação militar especial” para “desnazificar” a Ucrânia - e no Brasil.
Maior que a Europa
Comecemos por uma análise que Eça faz do trabalho de um jornalista do Times, de Londres, que escreveu sobre vários países da América do Sul, entre eles o Brasil, do qual traça um retrato favorável.
Transcreve Eça do jornal britânico: “Doze milhões de homens estão perdidos num Estado que é maior que toda a Europa; a receita pública que é de doze milhões de libras esterlinas é muitos milhões inferior à de Holanda e Bélgica; com uma linha de costas de 4 mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de 2.600 milhas, o Brasil exporta em gêneros a quarta parte menos que o diminuto reino da Bélgica”.
Mais adiante, o filho de Póvoa do Varzim se refere à Suíça, “que tem dois milhões de habitantes e juntamente os mesmos dois milhões de libras de receita, e vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilização, de intelectualidades bem superiores à tenebrosa Rússia, com seus 80 milhões de libras de receita e os mesmos 80 milhões homens”.
Populações
Esses números certamente causam uma grande surpresa nos leitores de hoje porque, como vimos, em 1880 (data da publicação da crônica), a Rússia tinha uma população quase sete vezes maior que a brasileira.
Porém, enquanto o último censo brasileiro apontou, em 2023, a existência de 203 milhões de habitantes, estima-se que a pátria de Tolstói, Tchecov e Gógol teria agora cerca de 143 milhões de habitantes. Mesmo que possa haver alguma imprecisão nesses indicadores, o certo é em pouco menos de um século e meio a população russa cresceu 80 por cento, enquanto a brasileira multiplicou-se por cerca de 17 vezes. Dito de outra forma: o Brasil tem atualmente a sexta maior população do mundo, enquanto a Rússia fica em nono lugar.
Aliás, dizem as más línguas que aquilo que os russos mais desejavam, com a guerra que desencadearam em 2022, era incorporar à sua estatística mais 43 milhões de cidadãos (mulheres, crianças e homens ucranianos).
Economias
Ao longo desse tempo, a posição das duas economias também se alterou radicalmente. Nos anos 80 do século 19, a produção russa de riquezas era quase sete vezes maior que a brasileira. Hoje, o Brasil, nona maior economia do mundo, tem um PIB de 2,1 trilhões de dólares, ao mesmo tempo em que a Rússia, a décima-primeira, produz o equivalente a 1,8 trilhão de dólares
Se nós, brasileiros, temos muitas reclamações quanto ao desempenho do nosso país, que jamais cresce no ritmo que desejamos e consideramos possível, o que podem pensar os russos da sua própria nação?
O czar mujique
Eça dedica à Rússia dois longos artigos. No primeiro deles esboça um até generoso retrato do Czar Alexandre III, conservador empedernido que pôs abaixo todas as iniciativas modernizadoras seu pai, Alexandre II, combateu qualquer influência vinda da Europa e agarrou-se firmemente à fímbria do manto da Igreja Ortodoxa.
Nesse texto, Eça revela que o grande (1m90) Alexandre III preferia a vida familiar à da Corte, veraneava na pacata Dinamarca e pouco frequentava São Petersburgo por medo de seu explodido por uma bomba, como seu pai.
“Do mujique tinha a robustez enorme e malfeita, o andar bovino, o olhar cismador. Os seus prazeres eram os trabalhos rudes dos homens do campo, em luta com a natureza áspera – desbastar mato, derrubar árvores e rachar lenha”. E, mais adiante, crava um prego: “O imperador substituía a pequenez do gênio pela imensidade da aplicação”.
Guerras e roubalheiras
Num dos artigos mais extensos do livro - na verdade, a reunião de seis crônicas escritas entre abril de 1877 e março de 1878, intitulado “Rússia e Turquia” - Eça de Queirós analisa a guerra entre aquelas duas nações.
Sobram alfinetadas para os dois países em conflito, mas as mais corrosivas são às destinadas aos russos.
“Outros atos desagradáveis têm sido praticados no exército russo; assim, o comissário-geral dos fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo. Esse funcionário estimável introduziu na farinha uma quantidade de cal que realmente não era possível deixar de lhe meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como uma certa quantidade de pau campeche no vinho, são procedimentos razoáveis que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente uma condecoração. Mas uma tal porção de cal, que torna a farinha mais própria para pintar paredes do que para fazer pão, é realmente abusivo, e o conselho de guerra foi apenas justo dando àquele funcionário uma disponibilidade... na eternidade”.
E acrescenta: “As falsificações dos comissários, a vergonhosa qualidade das rações, a insuficiência dos socorros sanitários, a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo; os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais – não são condições para aumentar o respeito pelo regime autocrático”
Talvez relinchando
A crônica mais hilariante, sem dúvida, vem no bloco brasileiro. Seu título: "Aos estudantes do Brasil: sobre o caso que deles conta Madame Sarah Bernhardt".
Deus poupou a divina Sarah (1844-1923) do aprendizado do português porque, caso tivesse lido essa crônica de Eça no original, certamente teria sentido uma forte inclinação para o cometimento de um ato extremado, como o de beber um frasco de formicida. Diretamente no gargalo.
A grande atriz concedeu uma entrevista tão extensa quanto imodesta ao Fígaro que seu título, segundo Eça, deveria ser: "História da minha missão e da minha influência civilizadora na América do Norte e do Sul".
Nela, candidamente, Madame Sarah relata suas viagens pelo mundo. Diz que na sua passagem pelo Canadá "o meu trenó andava seguido e acompanhado por todos os senadores e deputados". O escritor lusitano deita e rola: "E bem podemos, pois, pensar que as duas câmaras eletivas seguiam Madame Bernhardt funcionando, providas do seu presidente e dos secretários, e da tribuna, e do copo de água..."
Madame Sarah passa também pela Austrália, onde morre, no palco, em quase todas as peças que interpretava. Registra o português: "De tal sorte que se ela não cessasse de morrer... a Austrália seria hoje uma província da França... onde o último inglês estaria comendo o último canguru à sombra do último eucalipto".
Mas o melhor de sua graça zombeteira ele dedica aos brasileiros. Relata dona Sarah que, na sua visita à terra dos tupinambás, "os estudantes arrancavam os sabres e distribuíam cutiladas, porque os não deixavam desengatar os cavalos, meter os ombros aos varais e puxar eles a minha carruagem".
Eça descreve o episódio: fecha o tempo na frente do teatro, apresenta-se um policial que quer evitar o ridículo pátrio, mas é ferido pelos estudantes. A esses estudantes o autor se dirige no fecho do artigo: "... depois de duras cutiladas naqueles que vos queriam salvar do humilhante serviço, desengataste as éguas de Sarah, lançaste aos ombros democráticos os tirantes de Sarah, e puxastes a caleche de Sarah, trotando, talvez relinchando!".