De vez em quando vou a Lisboa. Tenho o privilégio de não ter hora marcada para chegar, o que me faz desfrutar do percurso de 35 quilómetros que faço na minha Honda NC750 azul pérola. Entre a minha aldeia e a entrada da auto-estrada na Malveira, o caminho é sinuoso, com curvas e contracurvas junto à Tapada de Mafra. A neblina matinal impregna o ar com uma frescura revigorante, especialmente para quem não está habituado a acordar antes das 10 da manhã.
Como vou juntamente com a Sara, que para quem não sabe, é a Sara, conectamos nossos intercomunicadores de capacete, que, na minha opinião, são o melhor sistema de comunicação Bluetooth do mundo. Com conexão dupla via Freecom, esses intercomunicadores proporcionam uma comunicação em tempo real equipada com som da JBL e a mais recente tecnologia para re-conexão automática, garantindo, sobretudo, uma qualidade sonora primorosa. Com uma capacidade ultra de emissão/recepção, por vezes, no meio das nossas conversas sobre fertilizantes orgânicos ou activos tóxicos, surgem-nos sons codificados e complexos que, sem dúvida, são de origem extraterrestre ou então dos camionistas da A8.
Como houve um acidente em Frielas, reduzi a velocidade e fui passando no meio dos carros parados, enquanto comentávamos a postura de quem desesperava de tanto esperar. Senti-me superior a essas pessoas que coçavam o nariz ou iam vendo numa qualquer rede anti-social as notícias do dia.
Um casal assistia atentamente a um vídeo do conhecido seguidor de Julian Assange, o youtuber Nicolás Moras, que discutia as redes obscuras do Papa Francisco na Argentina. Enquanto isso, uma rapariga, pintando os lábios ao espelho, ouvia o podcast de Joe Rogan sobre o Big Foot. Sem querer parecer conspiracionista chalupa, juro-vos que já o vi no Estádio do Dragão com megafone em punho!
Facilmente desembaracei-me do trânsito e cheguei a Sacavém, que é premiada com uma vista deslumbrante sobre o rio que confunde muitos turistas, pensando que é mar tal é a sua extensão. Até aqueles blocos uniformes dos prédios da Portela exercem em mim um encanto semelhante ao Tetris numa Arcade do salão de jogos Monumental da Avenida Álvares Cabral.
Como a Sara trabalha na zona de Santa Apolónia, passámos junto aos quarteirões flutuantes que por lá proliferam. Apesar da estação fluvial ser novinha em folha, os seus motores têm de ficar ligados para poderem ter a energia eléctrica necessária para os ares condicionados e frigoríficos. Pelo facto de usarem um combustível barato chamado Bunker Oil, os gases emitidos parecem equivaler a um milhão de carros, embora a precisão dessa estimativa permaneça incerta para mim. Mas é pouco sustentável, disso não tenho dúvidas. Ao passar de moto, acabo por rir daqueles/as/x/@/#/& atletas amadores/as/x/@/#/& que se pavoneiam como se estivessem na Promenade des Anglais na Côte d’Azur. Com a poluição produzida pelos cruzeiros com bandeira de Malta ou do Panamá, os seus pulmões devem estar mais negros que os meus com trinta anos de Davidoff Classic no bucho!
Ao chegar ao Campo de Santa Clara, um vislumbre de Sérgio Godinho. É terça-feira e a feira da ladra quase transborda de abarrotada. Lá arranjei um cantinho ilegal para estacionar com a complacência do Polícia Municipal, que assobiou para o lado, tal como o Luís Godinho fingiu que não viu aquele penálti descarado a favor do Sporting. Senti-me o Bernard Tapie do Codeçal.
Desmontámos entre bonecas decapitadas e plumas roxas a cheirar a naftalina, e sou logo abordado por um mitra a cravar-me um cigarro. Com uma altivez meio ressabiada, digo: “Desculpa, mas não fumo.” A inveja que senti daquele mano. Agora, dou por mim a parar em frente aos restaurantes para levar com umas valentes baforadas de nicotina dos cigarros dos outros. Cada vez se torna mais difícil fumar desta forma, de graça e sem culpa. As geringonças electrónicas estão a substituir a fabulosa combustão de alcatrão. A dependência agora não é apenas da nicotina, mas também das pilhas MPV 18650 20A 3500mAh Master Pro Vape.
Apetecia-me um café. A escolha entre o lote de feijão queimado Delta do Panteão e o lote Marfim Negrita da Focaccia in Giro parecia-me óbvia. Apesar de agora me sentir um pouco saloio e turista na minha própria cidade, não vou pagar 1€ por cada café. Siga para o que tem o Correio da Manhã para eu ter mais pormenores do Macaco das Antas. A Sara recordou-me que devia aproveitar para escrever outro artigo sobre os cafés Negrita e lá me convenceu a ir àquele sítio moderninho com um simples “deixa estar, eu pago!” Meti as minhas garras de fora e preparei-me para destilar ódio.
Entro na esplanada com cadeiras de tecido vermelhas patrocinadas pela cerveja Estrella Damm e vejo-me cercado de clientes que se chamam Björn, Astrid ou Henrik. Pareceu-me evidente que aquele estabelecimento foi concebido para atrair turistas, não para satisfazer as necessidades de residentes locais. Quem sou eu para dar conselhos, mas é sempre perigoso tornar-se dependente de um tipo de clientes. Basta um abanão no turismo lisboeta e muitas canoas vão ao fundo.
Bem sei que é tentador ter o mobiliário dado gratuitamente por alguma marca, porém a estética da cidade fica fortemente comprometida com esta opção, e já agora a do próprio estabelecimento. Espreito para o interior e vejo o mobiliário reciclado e candeeiros vintage. Uma proposta estética meio nórdica, meio marroquina. Se o exterior é oportunisticamente “brandizado” sem qualquer sofisticação, apesar de ser uma esplanada generosa que beneficia do arvoredo do Jardim Botto Machado, o interior deste café-restaurante é singular, cuidadosamente decorado com serigrafias e cartazes de cinema, onde se destaca o “Vertigo” de Alfred Hitchcock dos anos 50, espelhos ovais que reflectem a luz. No aparador, vemos uma colecção de objectos diversos que vão desde uma ventoinha, candeeiros de bolbos coloridos, vasos em cerâmica com figuras humanas, criando um ambiente doméstico bem confortável, onde até encontramos uma foto de família com a avó do proprietário, cujo talento na cozinha é a inspiração das famosas focaccias.
O destaque é dado pela Piaggio laranja que deu origem ao projecto inicialmente móvel, rodeada de mesas de vários tamanhos, algumas feitas com portas de prédios centenários recicladas em tampos, cadeiras de todos os feitios.
Vou ficar uma hora a resmungar e a afirmar convictamente que tinha razão nos meus preconceitos. Poderia fazê-lo à vontade que ninguém me entenderia.
Sentámo-nos na esplanada mesmo junto à entrada do restaurante, enquanto os restantes clientes iam brunchando, nós apenas queríamos dois cafés em meia chávena. Tudo o que era servido tinha óptimo aspecto, todavia eu não queria vender um rim para o poder pagar. Ainda pedi o menu para saber o que propunham, mas não havia em papel. Durante doze minutos tentei visualizá-lo em vão através do QR code no meu Nokia 3310. Ainda estão nessa fase de propostas assépticas e desmaterializadas. Bom, pelo menos agora já me é permitido o consumo sem apresentar qualquer tipo de certificado digital.
Primeiro café: RAL 8014
Segundo café: RAL 8011
A Sara chamou o seu conhecido Enrico, co-proprietário para solicitar que fosse ver o que se passava, já que os cafés não estavam a sair bem. Felizmente, como não tínhamos pressa, fomos desfrutando de um lindo sol de Fevereiro e demos graças a Deus pelo aquecimento global. Se fosse eu a mandar, cristalizava a temperatura de Lisboa nos 21 graus. Por entre a algazarra da feira e o magnífico “Dirty Boots” dos Sonic Youth que entretanto um feirante tinha posto a tocar, o Enrico lá apareceu com um café na mão. Olhei para aquela espuma de quatro milímetros, cor avelã, fruto desta perfeita alquimia entre água, temperatura, pressão e café. Não há outra bebida no mundo que seja capaz de me proporcionar as mesmas sensações gustativas e olfactivas. Este sim é a Uma Thurman, que agarra em mim, atira-me para o chão, vaza-me um olho e no fim, beija-me a boca com um aroma intenso, poderoso, elegante, nobre e sensual. Grazie Enrico pela tua sabedoria em reconhecer e resolver um claro problema que estava a acontecer. Como o fizeste, nem me interessa. Esse não é o meu papel. Quero tão somente os sabores bem misturados, a sensação amarga, clara e as suas notas de chocolate, flores e frutas.
Um apontamento importante: sentir algumas borras na boca foi desagradável.
Dei por mim com um pequeno poder que me incomodou sobremaneira. Entrei naquele restaurante preparado para arranhar qual gato aquele negócio familiar e saí, agradecendo a sua existência. Sim, sou humano e tenho preconceitos, e você? Tendo sido amplamente citada a frase de Lili Caneças: “Estar vivo é o contrário de estar morto”, é porque de facto ela caracteriza na perfeição o aroma necessário ao perfume da vida.
Bruno Cecílio é artista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.