Um cidadão recluso é um cidadão privado (temporariamente) da liberdade, mas não é um “não cidadão”, ou seja, uma pessoa privada dos seus direitos civis e políticos.
Nos termos do artº 48º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos políticos do país, sendo que essa participação, directa e activa na vida política, constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático (artº 109 da CRP) e exerce-se, designadamente, através do direito de sufrágio, reconhecido no artº 49º, nº 1, da Constituição a todos os cidadãos maiores de 18 anos.
Por outro lado, se a lei pode fazer corresponder, a certos crimes, a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões, nos termos do nº 2 do artº 65º do Código Penal, certo é que nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis ou políticos, por força do nº 1 da mesma disposição legal.
Significa tudo isto que os cidadãos reclusos têm, teoricamente, o direito de votar em todos os sufrágios para a eleição de titulares de órgãos do poder político, seja ele central, regional ou local.
Porém, o certo é que, sendo a sua situação de recluso precisamente uma das que está legalmente prevista para o efeito de ser possível votar antecipadamente, por correspondência, como modo de garantir o exercício do direito de voto, na realidade são inúmeros os obstáculos levantados, na prática, o que leva a que, ilegitimamente, lhe seja vedado o exercício desse direito básico, cívico e político.
E que não se pense que tal se deve aos responsáveis do Sistema Prisional.
Os dois últimos Directores-Gerais têm feito um excelente trabalho na procura do aumento da percentagem de votos nas cadeias.
O que têm conseguido, diga-se.
O problema, por incrível que pareça, está no total desleixo, na absoluta ignorância, no incrível desprezo da Comissão Nacional de Eleições para com os cidadãos em reclusão.
É pouca, praticamente inexistente, a divulgação, entre os reclusos, de que estes dispõem do direito ao voto, e muito em particular o específico direito de exigirem, à Direcção da cadeia, a documentação necessária para poderem votar.
A que há é de tal modo absurda que só pode ter sido redigida por dementes.
O cartaz da Comissão Nacional de Eleições, que é afixado nas nossas cadeias, “explica” como é que os presos devem proceder para poderem votar.
É, “ipsis verbi”, assim:
Saiba o seu número de eleitor:
– Na Junta de Freguesia do seu lugar de residência.
– Através de SMS (gratuito) para 3838 com a mensagem
RE (espaço) número de BI/CC (espaço) data de nascimento
– Na internet www.recenseamento.mai.gov.pt
O recluso poderia, portanto, na óptica destes génios, optar por uma de três soluções:
- – Dirigir-se à porta da cadeia e pedir ao Guarda Prisional que a abra para ir à Junta de Freguesia;
- – Mandar um SMS por telemóvel, aparelho proibido em todas as prisões;
- – Fazer uma busca na internet sem ter acesso a qualquer computador.
A APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, há dez anos, enviou uma carta à Comissão Nacional de Eleições, apontando o ridículo do acima relatado.
A 28 de Maio de 2014 recebeu a resposta.
Uma carta amável, agradecendo “os contributos que possam ser remetidos a esta Comissão no sentido de gerar melhorias nas condições de exercício do direito de voto pelos cidadãos presos e não privados de direitos políticos” e garantindo que “terá presente o teor da exposição em apreço nos próximos actos eleitorais”.
Desde então houve uma dezena de eleições sendo que os reclusos continuam a conhecer “os seus direitos” com as mesmas informações.
Agora, até pelas Estações de Rádio, são informados que podem dirigir-se à CNE através da internet.
Temos assim que, num Estado que se diz de Direito, cidadãos formalmente não privados de direitos políticos, são-no afinal na prática por uma tão antiga quanto persistente ausência de percepção e de informação de que o recluso mantém o direito de voto e por uma cultura assente na lógica da denegação efectiva desses mesmos direitos políticos.
A estupidez deste cartaz tem, como única vantagem, a possibilidade de os reclusos terem uns momentos divertidos e rirem, à gargalhada, dos senhores doutores da CNE.
Valha-nos isso!
Vítor Ilharco é assessor
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