Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
55 – O duro tratamento dado aos safados na Rússia
Naquele momento, a cabeça de Aroeira encolheu e se transformou rapidamente num focinho de cobra venenosa. Uma naja, digamos. Ou vá, para os que vivem em países onde há menos bichos peçonhentos, uma víbora. Creio que ter visto até mesmo uma bifurcação na ponta da língua dele.
Mastigando lenta e dificultosamente as palavras, consegui elaborar uma pergunta:
– Se estou entendendo bem, o senhor delegado quer que eu banque o alcaguete, o dedo-duro, o informante…
– Não exatamente, gaúcho. Encare a questão por outro ângulo. O que eu estou pedindo a você é que aja como um patriota. Ajude uma autoridade constituída de seu país, no caso eu, apontando as frases mais comprometedoras desses estrangeiros suspeitos.
– Compreendo, doutor Aroeira. Isso talvez seja possível, posto que, durante toda a tarde, mantive o gravador ligado. Assim, registrei tudo o que aqui se falou. E, antes da chegada deste belo carrinho com tantas garrafas desencaminhadoras, eu escutei as fitas já gravadas e rabisquei na minha caderneta as frases mais interessantes. Jornalisticamente falando, é claro…
– Ótimo. Me fale dessas frases. Você é um garoto espertinho. Se me ajudar nessa investigação, terá depois informações privilegiadas, de primeira mão, sobre assassinatos e atropelamentos de gente famosa aqui em Brasília.
– E eu também estou disposto a ajudar a Justiça brasileira – intrometeu-se o Batota. – Como tenho uma memória implacável, confirmarei as frases verdadeiras do jornalista e impugnarei as falsas.
Entusiasmado, Aroeira esfregou as mãos:
– O mundo lusitano se une diante do avanço dos godos e visigodos! Vamos, filhote de abigeatário, consulte sua cadernetinha!
Engoli todo e qualquer dever moral que tinha, se é que o tive um dia. A seguir, mandei minha consciência banhar-se nos licores que me borbulhavam no estômago. Senti que chegara um momento importante da minha vida. Não havia do que me arrepender. Que atire a primeira pedra quem nunca… Havia ali algo mais importante a ser conquistado. Ali estava a ocasião para demonstrar aos mais famosos escritores do mundo que eu nada ficava a dever a eles. Não, eu não era apenas um simples jornalistazinho!
Como precisava estar calmo para desfilar diante deles o meu cérebro atilado e a minha fina argúcia, respirei profundamente antes de falar:
– Na verdade, delegado, fui muito além de simplesmente anotar frases. Eu elaborei uma escala de suspeição. Alinhei, por ordem decrescente, os nomes daqueles que me pareceram os maiores suspeitos.
Aroeira bateu palmas entusiasmadas, embora seu rosto estivesse retorcido por um esgar galhofeiro:
– Excelente! Mas em que critério se baseou você, Campestre, para criar tal lista?
– A pontuação variou em função do número de frases comprometedoras. Quanto mais frases equívocas ou inquietantes, mais pontos negativos ganhava o seu autor.
– Estupendo! E quem seria o suspeito número um nessa sua lista?
Antes de responder, mais vez enchi lentamente a caixa torácica, tanto para obter um pouco de ar quanto para reunir de coragem:
– Dona Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.
Como já esperava uma reação forte, consegui abaixar a cabeça uma fração de segundo antes da passagem de uma garrafa voadora de rum, cheia até a tampa, lançada contra mim com força e destreza pela escritora eslava, que me interrogou aos berros:
– Você sabe o que a polícia faz com jornalista xibungo como você na Rússia? Tira a roupa do safado e manda ele correr pelas ruas nevadas até que o pinto dele fique do tamanho exato do seu dedo mindinho. Se ainda ficar maior, corta o excesso.
– Controle-se, dona Fedorova! – ordenou Aroeira. – Enquanto depõe, o jornalista está sob minha proteção. Depois, se quiser, a senhora poderá colocar em prática nele o tal método cirúrgico soviético, embora seja difícil achar neve por aqui. Continue, bisneto de Simões Lopes!
Engoli em seco e molhado.
56 – A morte do siberiano que lia os livros de Pablo Conejo
As ameaças da ficcionista de São Petersburgo tinham surtido efeito porque, quando voltei a falar, minha voz tremelicava como vela de feitiçaria de encruzilhada em dia de ventania.
– Dona Fedorova foi a primeira pessoa a levantar aqui a possibilidade de morte. Ao reclamar do garçom, que demorava com a cachaça, ela perguntou: Será que o condenado aproveitou a viagem para assassinar Mikahilucha?
Silêncio na sala. Os escritores estavam positivamente surpresos com o meu desempenho inicial.
Apertando com fúria o gargalo de uma garrafa de cachaça, com o olhar fixo no meu pescoço, Fedorova dava a indicação do que faria se o delegado Aroeira não estivesse por ali.
Mesmo já amedrontado, continuei:
– Mais tarde, ao investigar o quarto da falecida, dona Fedorova falou que estava rezando pela “atormentada criatura” que havia matado a espanhola…
– Não vejo nada demais nessa frase – atalhou-me Aroeira. – Foi a reação natural de uma pessoa religiosa.
– Mas dona Fedorova é ateia! – argumentei. – E nem sabíamos ainda que dona Miguela havia sido assassinada! Como poderia ela saber que o criminoso estava atormentado pelos remorsos? A não ser que fosse ela própria a assassina.
– Raciocínio razoável – reconheceu o delegado.
– Mas teve mais – continuei, já estava gostando de desempenhar ali o papel de acusador. – Em seguida, dona Fedorova disse que a alma da escritora espanhola ainda vagava pelo hotel…
O delegado voltou-se para a russa e indagou:
– A senhora dispõe de poderes mediúnicos?
Como a escritora não respondesse, continuei:
– Dona Fedorova disse ainda que nenhuma mulher, nem mesmo uma espanhola, aceitaria morrer com uma mantilha tão horrorosa quanto a usada por dona Miguela. Daí, concluiu ela que se tratava de uma morte fulminante…
– Considerações sobre vestuário não têm importância em uma investigação tão intrincada quanto esta…
– Têm, sim, delegado – discordei. – Passaram a ter agora que se sabe que dona Miguela teve um ferimento na cabeça. Morreu sem poder tirar a mantilha. E, para culminar, quando se retirava do apartamento, dona Fedorova mostrou-se invejosa da maior vendagem dos livros de dona Miguela.
Ouvimos um crash. Era o gargalo da garrafa cedendo à pressão da mão de Fedorova. A escritora russa bateu a mão na mesa para se livrar dos cacos e, a seguir, acendeu um charuto, das mesmas dimensões do anterior.
– O que diz a senhora depois de ouvir o nosso jovem centauro? – indagou o policial, com um ar misto de Torquemada e bufão. – Reconhece que está em maus lençóis?
Fedorova levantou-se de um pulo, já sugando o charuto e expelindo furiosamente a fumaça, e deu início ao seu já manjado pranto dramático. Batia no peito, puxava os cabelos e salmodiava:
– Oh, a doce Mikahilichenka foi levada deste mundo pela sua própria arrogância. Tudo começou no aeroporto de Paris, enquanto esperávamos a chamada do voo para o Brasil. Falávamos mal de editores, críticos e autores de livros de auto-ajuda. Subitamente, ela me perguntou se eu conhecia um novo método de envenenamento. Virgem do Crato, oxente, para que Mikahila levantou aquele assunto?
Sentindo que ganhara a atenção do público, a russa imprimiu maior dramaticidade ao ritual de autoflagelação: passou a esbofetear-se também:
– Mika me disse que precisava assassinar, com morte inovadora, uma personagem do livro que estava a escrever. Querendo ajudar aquela quenga, contei a ela que, na Sibéria, uma muié tinha matado o corno do marido colocando veneno nos livros do paraguaio Pablo Conejo, que o chifrudo vivia lendo. Expliquei direitinho que a muié danada passou estricnina no pé das páginas, pois era justamente ali que o cretino colocava seus dedos depois de lambuzá-los na língua pegajosa.
A russa parou a sua representação dramatúrgica para emborcar uns valentes goles de uísque, pela boquinha da garrafa.
57 – Aqui o impossível ocorre a todo instante
Notei que naquele momento, enquanto Fedorova arquejava para se recompor da quase meia garrafa emborcada, Águeda Christine lançava um olhar triunfante na direção de Sim Et Non. A história da escritora russa reforçava a tese do envenenamento que fora levantada inicialmente por ela.
Continuou a escrevedora do Kremlin:
– Em resposta ao que falei, a soberba Mikuchina me disse que só uma besta de uma camponesa russa podia acreditar numa história tão furada. E, desaforada, concluiu: “Deixe de ser ignorante, Feda!” Ora, nós, russos, não toleramos esse tipo de ofensa intelectual. Fervi de ódio.
Após breve pausa, para que alguma fumaça fosse sacada do charuto e expelida, Fedorova continuou:
– De Paris ao Rio, viajamos lado a lado. Notei então que Mikólia molhava os dedos na saliva para virar as páginas da Bíblia, mas segurando-as pelo alto. Percebi também que estava lendo o Apocalipse. Perguntei se estava gostando. Debochada, ela me respondeu que o Apocalipse é a melhor novela policial de todos os tempos porque, no fim, não fica um sobrevivente para contar a história.
Em uma breve parada para reabastecimento, a russa sugou um quarto de uma garrafa de absinto, sem pestanejar, e avançou:
– Como Mikutina era esnobe! Sabem o que ela me disse depois? Disse-me que de tanto ler e reler o Apocalipse já estava quase decifrando a profecia. Aquilo foi demais pra minha religiosa alma russa, mesmo eu sendo ateia juramentada. Minha raiva se transformou em ódio. Aí, quando ela foi ao banheiro do avião, peguei de minha bolsa uma ampola de estricnina concentrada e derramei no alto das páginas do Apocalipse. Depois, aproximei o livro santo da saída do ar refrigerado, para que o veneno secasse rapidamente…
Em voz alta e grave. Aroeira a interrompeu:
– Quer dizer, então, que a senhora Smerdlova assume publicamente a autoria do assassinato por envenenamento de dona Miguela?
– De jeito nenhum! Reconheço que, arrastada por uma raiva bem fundamentada, derramei um pouco de veneno nas páginas da Bíblia da desgraçada. Mas eu não a queria matar. Só queria provar a ela que é possível envenenar um vivente com aquele método siberiano.
– Não me interessa sua intenção – reagiu Aroeira. – O que me importa é o resultado do seu ato criminoso.
– Arre, égua, delegado! Raciocine comigo: se o argentino pode alegar que bilhete dele não causou o enfarte, eu também posso dizer que o meu veneno não matou a jararaca. Como poderia ela morrer depois de ler apenas umas dez páginas? Ora, o siberiano que lia Pablo Conejo morreu depois reler cinco vezes o livro Vera se decide a falecer-se, o que, convenhamos, mesmo sem veneno, mataria um elefante. A polícia russa considerou, naquele caso, que a leitura foi mais devastadora que o veneno.
– A senhora assume o assassinato ou não? – perguntou o policial.
– Não. Só aceito ser acusada de ter botado no organismo dela a porção de estricnina. Mas vou requerer uma perícia. Ao verificarem o nível de veneno no sangue, certamente concluirão que a espanhola não morreu por minha culpa.
O delegado ficou parado e em silêncio por um momento, pensativo. Pareceu-me desalentado porque um segundo suspeito estava a escorrer por entre seus dedos. Mas concordou com a reflexão da russa:
– No Brasil, tudo pode acontecer. Aliás, aqui, o impossível ocorre a todo instante, enquanto o possível raramente se concretiza… Bem, se a estricnina e o enfarte não mataram a velhota, temos que seguir procurando um outro culpado, certo?
Num rápido e único aceno, todas as cabeças ao redor da mesa concordaram com ele.
O delegado voltou-se novamente para mim:
– Então quem o nosso Sherloque dos pampas vai acusar agora?
Lancei um rápido olhar à minha caderneta em busca do nome do número dois na minha escala de suspeição. Respirei fundo e preparei-me para o embate.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).