Estação de Sete Rios. Uma voz bem colocada anuncia a chegada do comboio. Um rapaz emerge da escada rolante e aproxima-se a correr. Mochila, trolley, telemóvel na mão. Dirige-se ofegante a uma rapariga que está mesmo à minha frente e se prepara para embarcar. Pergunta-lhe se apanha muitas vezes aquele comboio e se sabe se o “pica” costuma aparecer. É que vai até Entrecampos, explica, é só uma estação, não tem bilhete e está atrasado para um exame. A jovem responde: – Faço isto todos os dias. É tranquilo. Nunca o vi.
Entram. Entro também. Acomodamo-nos. O comboio arranca e ouve-se de imediato: – O seu bilhete, por favor. – Olho para o rapaz da estação. Está lívido. O corpo transformou-se num bloco que inclina em direção à janela. Não, Entrecampos não está à vista. O fiscal avança rapidamente pela carruagem e a cada passo que dá o rapaz parece estar mais perto de ter uma síncope.
Fito-o com intensidade, como se isso o pudesse desmaterializar, torná-lo invisível. Aos meus olhos, irracionalmente, o infrator transforma-se em vítima. O fiscal-caçador passa por mim. Demoro um pouco a mostrar-lhe o meu bilhete. Torno-me cúmplice. Quero acreditar que aqueles breves instantes serão suficientes. Estamos quase em Entrecampos. Finalmente, o momento da verdade. Invade-me um sentimento de vergonha alheia. É agora! Mas antes que se dê qualquer interação entre caçador e presa, eis que, do nada, surge a rapariga da estação. De mala na mão, vira revira tudo o que tem lá dentro: – Está aqui o meu passe e… é só um bocadinho… oh, pá, não encontro o teu. Tem de estar aqui. Eu pus aqui… –, vai dizendo enquanto simula uma busca desesperada. O rosto do rapaz, porém, não deixa margem para dúvidas. Um expressão entre o espanto e o pavor. Os músculos faciais estão completamente contraídos. Chegamos ao destino. O fiscal, provavelmente cansado, finge acreditar na história do passe desaparecido e prossegue como se nada fosse.
Já na estação, os dois jovens riem da aventura. Ele garante que nunca mais se mete noutra. Ela está divertidíssima com a situação. Apresentam-se e trocam rapidamente contatos. Vejo-os abandonar o edifício enquanto aguardo o táxi. Imagino a continuação deste episódio. Um segundo, um terceiro encontro. O início de uma bela história de amor. Vejo-os num futuro distante. Ela uma atriz famosa, ele um engenheiro civil aposentado. Sentados a uma mesa, rodeados de filhos e netos, contam-lhes, mais uma vez, como se conheceram. Lembram o dia em que ela, corajosa, descontraída, despachadíssima, o salvou de uma multa no comboio. Recordam como ele, tímido e incapaz de mentir, um dia se perdeu de amores pela bela ruiva que veio em seu auxílio.
Esta história escrita pelo meu coração de casamenteira termina com um “e viveram felizes para sempre”. Porém, a minha mente não se detém muito tempo nesta versão. A experiência diz-me que não será bem assim. Que há mais por detrás da pequena farsa a que acabei de assistir. Incomoda-me a facilidade com que aquela jovem mentiu descaradamente ao fiscal. Não terá sequer 20 anos. No meio de uma carruagem, rodeada de estranhos e sem sombra de hesitação, criou uma cena digna de um grande palco. A imagem do casal feliz, a contar a aventura aos descendentes, é agora substituída na minha mente pela de dois velhos amargos, depois de décadas de pouco convincentes “Querido, isto não é o que parece!”
Luto para que este pensamento não mate a história inicial. Convenço-me de que salvar o rapaz era inevitável.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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