Como se mata o jornalismo de investigação? Em Portugal, através dos ‘reguladores’

No ano passado, nas minhas deambulações pela plataforma da contratação pública – o Portal Base – deparei-me com o ‘comportamento’ muito sui generis do Hospital de Braga, uma das mais importantes unidades de saúde do país, que somente em despesas correntes gasta, por ano, cerca de 260 milhões de euros. E fui investigar . E deu notícias.
A primeira notícia foi publicada em 12 de Junho e destacava sobretudo contratos de sete milhões de euros escondidos durante mais de dois anos. Meses mais tarde, em Setembro, já no âmbito do Boletim P1 da contratação pública – em que analisamos os contratos publicados no Portal Base – dei à estampa nova notícia em que destacava que só naquele mês o Hospital de Braga celebrara 393 ajustes directos, muitos dos quais usando este procedimento sem justificação plausível.

Num país decente, este tipo de investigação jornalística teria consequências para os administradores hospitalares. Ainda mais quando, na verdade, e como na investigação jornalística que o PÁGINA UM publica nesta terça-feira, o Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos, para além de outros detalhes de bradar aos céus.
E, portanto, deveria estar a decorrer uma auditoria no Tribunal de Contas, talvez na Inspecção-Geral das Finanças, e talvez mesmo uma investigação pelo Ministério Público.
Mas Portugal não é um país normal. E mais ainda para o jornalismo independente de investigação. Quer dizer, não estamos ao nível da Coreia do Norte, da China ou do Irão, ou mesmo da Rússia, da Palestina ou do Brasil, onde o risco de morte e prisão é uma realidade.
Consciente do (pouco) impacte público das notícias do PÁGINA UM em Junho e Setembro do ano passado sobre si e o (seu) Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, que foi ‘premiado’ recentemente com a presidência da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, decidiu ‘contra-atacar’. E apresentou duas queixas: uma ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – cujo presidente, por uma certa coincidência, é investigador da Universidade do Minho, em Braga – e outra à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – cuja presidente, por mais uma certa coincidência, é professora da Universidade do Minho… em Braga.

E, ó surpresa, tanto a CCPJ como a ERC, mesmo não descobrindo um único erro, um único lapso, e baseando-se todas as notícias numa base de dados oficial (Portal Base, gerida e validada por uma entidade pública, o IMPIC) e sendo os registos feitos pela própria entidade adjudicante (neste caso, o Hospital de Braga), acharam por bem, e sem vergonha na cara, censurar o meu trabalho.
No caso do CDSJ, os seus membros (que se rotulam de jornalistas) consideraram que existiam “nos artigos publicados ‘expressões, afirmações e conclusões’ suscetíveis de ‘qualificar de forma absurdamente desproporcional os membros do Conselho de Administração’ do Hospital”, e recomendaram que eu seguisse “escrupulosamente o Código Deontológico dos Jornalistas, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso, deixando bem clara aos olhos do público a distinção entre factos e opiniões (Ponto 1) e abstendo-se de fazer acusações (Ponto 2), sem o total apuramento dos factos”.
No caso da ERC, uma recente deliberação, chega a ser risível pelo absurdo, ao considerar que a simples análise de registos de contratos colocados pelo próprio Hospital de Braga exigia um contraditório. E considerava também que, cruzando as informações dos registos com o determinado pela lei, nunca poderia dizer que havia uma ilegalidade porque “não houve uma decisão nesse sentido de qualquer entidade habilitada para o efeito”.

Ou seja, para o regulador, o jornalista jamais pode denunciar uma ilegalidade enquanto não houver uma entidade oficial que assim o determine – no limite, uma sentença transitada em julgado. Daqui a nada só falta a ERC ‘decretar’ no alto da sua nescidade, que um jornal só poderá, interpretando dados meteorológicos, informar que choveu 5 milímetros em 24 horas depois de uma “entidade habilitada para o efeito” – neste caso, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera – assim o determinar.
Bem sei, com ou sem articulação, qual foi o propósito do Hospital de Braga, da CDSJ e da ERC – que o PÁGINA UM parasse com as investigações. Não parou, nem vai parar. E até vai fazer algo que nem é função do jornalismo, mas que passa a ser uma necessidade de defesa do PÁGINA UM aos sistemáticos ataques à liberdade de imprensa perpetrados pelos dois ‘reguladores’ (ERC e CDSJ por motivos cavilosos): enviar todos os elementos desta investigação ao Tribunal de Contas, solicitando a sua intervenção.