O município socialista de Vila Nova de Gaia contratou, sem concurso público ou de ideias, por simples despacho do seu presidente, o escultor Paulo Neves para fazer esculturas e medalhas para homenagear a Revolução dos Cravos. Preço final: 220 mil euros. A lei até permite encomendas directas a artistas apreciados por autarcas, mas o bom senso e a promoção da diversidade artística deveriam impedir encomendas sem concorrência, sobretudo se se quer comemorar a Liberdade e a Igualdade supostamente ‘conquistadas’ pela Revolução dos Cravos. Para o escultor beneficiado, esta é apenas mais um das muitas encomendas públicas directas que tem recebido através da sua empresa unipessoal, a Queres Malmequeres. O valor dos 16 ajustes directos que surgem no Portal Base já ultrapassa os 900 mil euros, provenientes sobretudo de municípios dos distritos de Aveiro (de onde é natural) e do Porto.
Nada melhor do que as comemorações do 25 de Abril para recordar os princípios democráticos da liberdade e da igualdade de oportunidades. E sobretudo se for sob a forma de algo perene. Por exemplo, uma escultura.
Se estes aspectos estiveram ou não presentes na decisão, ignora-se, porque a autarquia de Vila Nova de Gaia não deu quaisquer esclarecimentos, mas sabe-se que o município liderado pelo socialista Vítor Eduardo Rodrigues se sentiu na liberdade para entregar de ‘mão beijada’, sem conceder oportunidade a qualquer outro artista, 220 mil euros ao escultor Paulo Neves para se homenagear, em medalhas e peças escultórias, a data simbólica da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Natural de Cucujães, no município de Oliveira de Azeméis, o escultor Paulo Neves tem sido presença habitual em exposições e iniciativas do município de Gaia ao longo dos anos, acabando por ser mesmo um dos artistas homenageados na IV Bienal de Arte de Gaia em 2021 dedicada ao tema “Coronavírus não destrói a criatividade – Reações e Consequências”.
De acordo com o contrato celebrado na passada sexta-feira, após um simples despacho de 30 de Janeiro de Vítor Eduardo Rodrigues, entre o municípios de Gaia e Paulo Neves – como gerente da empresa unipessoal Queres Malmequeres Escultor – ficou estabelecido o pagamento de 220 mil euros, acrescido de IVA a 6%, para a “aquisição de obras de arte no âmbito das Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril”, com prazo de execução de um mês e meio. Apesar de se fazer referência no contrato que a proposta do escultor e o caderno de encargos o integram, não se vislumbra tais documentos no Portal Base.
Contactado pelo PÁGINA UM, o escultor Paulo Neves diz que “a obra adjudicada consiste no fornecimento de um monumento alusivo às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e [a] 5000 medalhas também alusivas a esse a momento”, referindo que “o convite veio da parte do Município de Gaia, que dentro do tema pretendido” lhe concedeu “total liberdade de criação, aprovando de imediato a primeira proposta apresentada”.
Questionado sobre se tem apenas recebido adjudicações por convite – ou seja, sem ter o incómodo de competir com as ideias e propostas de outros artistas –, Paulo Neves diz que nem sempre tem sido assim. “Nem sempre as obras são por convite”, assegura o escultor, acrescentando que “quando a instituição pretende uma obra de certo e determinado artista procede ao convite, nem poderia ser de outra forma”, mas que, “noutras circunstâncias, é por resposta a concurso público, como por exemplo o foi para a Câmara Municipal de Grândola, para a criação de uma obra de arte pública alusiva ao operário corticeiro”, com contrato de 2017.
Em todo o caso, esta escultura, inaugurada em 2021, e que custou menos de 10 mil euros, foi um caso excepcional na relação profícua de Paulo Neves com autarquias sobretudo do Norte e Centro do país. Apesar de este contrato com o município de Gaia ser o mais chorudo, o escultor conseguiu arrecadar 180 mil euros à autarquia de Aveiro para ‘arcanjos em pedras’ para duas rotundas naquela cidade. Sem concorrência.
Nos últimos três anos, além dessa intervenção em ‘arte pública de rotundas’, o escultor da Queres Malmequeres ainda prestou mais serviços a cinco municípios, sempre por ajuste directo. Em Dezembro de 2021 vendeu uma peça escultória ao município de Gaia intitulada “o aconchego e o caminho do vinho do Porto”, ‘aconchegando-se’ a 40 mil euros.
Por cerca de 24 mil euros, Paulo Neves conseguiu no mesmo mês vender mais umas quantas peças em madeira da Amazónia para o Museu da Memória de Matosinhos. No mês anterior vendeu por 7.000 euros esculturas alusivas aos 35 anos da Escola Básica e Secundária Dr. Ferreira da Silva e aos 20 anos da Escola Básica Comendador Ângelo Azevedo, no seu concelho-natal.
No ano passado, para o município de Águeda também conseguiu, por ajuste directo e sem sequer contrato escrito, ‘sacar’ mais 45.000 euros para um monumento de homenagem aos militares mortos na Guerra do Ultramar. Este ajuste directo teve a particularidade de ser celebrado no dia 20 de Abril de 2023, mas estar ‘prontinho’ para ser inaugurado cinco dias depois.
Por fim, em Setembro do ano passado, Paulo Neves foi ‘agraciado’ pelo seu próprio município, Oliveira de Azeméis, com uma encomenda de ‘mão beijadas’ de 70 mil euros para um monumento de homenagem ao calçado, sendo, neste caso, explicitado no contrato do que se trata: “maquetização, execução e colocação de 1 (uma) escultura, com 2 peças escultórias representativas de um par de chancas, cada um, composta por 3 blocos de mármore de Estremoz, com medidas variáveis entre 200 cm e os 600 cm”. A obra será inaugurada em Setembro deste ano.
Consultando o Portal Base, o escultor Paulo Neves já amealhou 16 contratos, que surgindo todos como sendo ajustes directos, totalizando 912.238,87 euros, sem IVA. Destes, 12 são encomendas de entidades públicas, quase sempre municípios, dos distritos de Aveiro e Porto.
No entanto, saliente-se também que Paulo Neves tem vindo a ser requisitado por outras entidades nacionais e estrangeiras, sendo reconhecido pelos seus trabalhos ‘esguias’ em pedra e madeira, destacando-se um singular presépio encomendado em 2017 pelo Santuário de Fátima.
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