Ausente das legislativas e a trabalhar para concorrer às europeias, o MAS prepara o seu renascimento e deverá passar a chamar-se AGORA. Gil Garcia, 51 anos, mantém-se aos comandos do MAS, depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter rejeitado um recurso de Renata Cambra, ex-porta-voz, que alegava ser a legítima líder da organização. Do partido saiu também, em meados de 2023, André Pestana, mediático líder do sindicato STOP, dos professores. Nesta entrevista à HORA POLÍTICA, realizada no dia 31 de Janeiro (antes da decisão do TC), o professor de filosofia e fundador do MAS acusa o PCP e o Bloco de Esquerda de serem um apêndice do PS, afirmando que é preciso uma esquerda alternativa. Alerta que os regimes políticos estão a ficar mais autoritários na Europa e que “o jornalismo passou a ser tiktoks”. Esta é a 11ª entrevista da HORA POLÍTICA, a rubrica do PÁGINA UM que deseja concretizar o objectivo de conceder voz (mais do que inquirir criticamente) aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal. As entrevistas são divulgadas na íntegra em áudio, através de podcast, e publicadas com edição no jornal.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE GIL GARCIA, LÍDER DO MOVIMENTO ALTERNATIVA SOCIALISTA, CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
O Movimento Alternativa Socialista [MAS] está em transformação e tem estado nas notícias, devido a uma “guerra interna”. Qual é o ponto de situação?
Se consultarmos o Tribunal Constitucional [TC], eles têm acórdãos e certidões… Nós temos uma certidão do Tribunal Constitucional que confirma – apesar de ela ser entregue tarde – que o MAS continua a ser dirigido por mim e pelos camaradas que já o dirigiam anteriormente; como João Pascoal e outros quadros da nossa organização. Para o TC, os partidos políticos são uma espécie de empresas e, portanto, a legalização comporta a ter uma espécie de proprietários; não se chama “proprietários”, mas são responsáveis. E só sob circunstâncias muito particulares é que isso é alterado. Repara que a direita quis concorrer como Aliança Democrática [AD], e inicialmente não tinha incorporado o Partido Popular Monárquico [PPM], só o Partido Social Democrata e o CDS-PP. E o TC disse que não podiam usar o nome da AD, porque os proprietários da sigla da coligação AD, é do tempo do Sá Carneiro, do Freitas do Amaral e do arquitecto Ribeiro Telles, e foram eles que formaram a AD e ficou registado que era com os três partidos. E a coligação pode ressurgir, mas só com o acordo dos três partidos, e aqui, é a mesma coisa: o MAS actual continua a ser dirigido por mim e pelos camaradas que já são do domínio público.
Em todo o caso, só para clarificar, estão ainda a aguardar uma decisão do Tribunal Constitucional [que foi divulgada após a realização desta entrevista]?
Aquilo a que chamou guerra interna – e já vou falar isso com mais detalhe – não foi só por essa consideração; foi por outra. Ou seja, quando nós fundamos o MAS, em 2013, tínhamos saído Bloco de Esquerda [BE] – fomos uma das primeiras rupturas do BE – e o partido também nos “empurrou” um bocadinho para sairmos…
Saiu em 2012?
Exacto. Aliás, posteriormente à nossa saída, saíram também o Rui Tavares e a Ana Drago, que deram origem ao Livre. Não creio que haja alguma organização em Portugal que não tenha tido rupturas; ou se quiser, “guerras internas” [risas]. Portanto, não é de admirar que isso também nos tenha acontecido. Connosco, fala-se mais, porque parece ser do interesse… Nós somos considerados um partido de esquerda radical; e assusta-nos muito esse nome. Eu não gosto tanto de me chamar “extremista” ou outras coisas assim parecidas, porque não me considero como tal, mas dão-nos essa ‘alcunha’. O regime tolera bem a extrema-direita – aquilo que nós consideramos extrema-direita – mas não tolera muito bem as organizações consideradas esquerdistas.
O MAS, por exemplo, quando se legalizou, há 10 anos, teve de se legalizar duas, porque o TC recusou a primeira legalidade; inclusive, ‘sequestrou’ as nossas assinaturas. Nós tínhamos entregado 9.000 assinaturas, que estavam bem, tanto que eles tiveram de invocar que os estatutos não cumpriam lá uma alínea qualquer, e recusaram. E nós alterámos os estatutos, dentro dos critérios exigidos pelo TC, e dissemos-lhes “agora, ou nos concedem à legalidade ou devolvem-nos as assinaturas para podermos apresentar um novo processo de acesso à legalização”; e eles recusaram. Tivemos de repetir.
Neste momento espera uma atitude diferente do Tribunal Constitucional, no sentido de ser mais célere?
É, porque, de facto, estão um bocadinho lentos. Por exemplo, o MAS actual não pode ir a estas eleições legislativas porque nós solicitámos em Novembro a alteração do nome; e essa é a parte política que interessa porque a alteração do nome não foi devido aos conflitos e às divergências internas, que isso existe em todos os partidos. Mas foi porque o nome Movimento Alternativa Socialista, em 2012, era mais “admissível”; porque agora, com um Governo muito prolongado do PS, e com a campanha da extrema-direita a dizer que isto é o socialismo… E com “extrema-direita”, refiro-me tanto ao Chega como à Iniciativa Liberal; aliás, ambos tiveram origem em rupturas do PSD pela direita. Portanto, não é muito grave dizermos que aquilo é extrema-direita. Mas a campanha que fizeram nos últimos anos é a dizer “isto é o socialismo”. Aliás, houve um cartaz com António Costa, que dizia isso mesmo.
Portanto, não querem estar conotados com o socialismo?
Não; nós não queremos é estar conotados com o PS, e com os governos PS! É claro que a gente não deseja um governo de extrema-direita, e espero que as próximas eleições não nos tragam isso. Mas somos críticos do Governo PS; queremos construir uma alternativa pela esquerda ao Governo do PS e à esquerda tradicional – toda a esquerda parlamentar está rendida ao sistema. E nós queremos romper com essa dicotomia. E a alteração do nome vem daí, e a nossa nova proposta de nome, que entregámos ao TC, é “Agora”. Como diria o Fernando Pessoa, “Agora é a nossa hora”.
Nessa proposta, também teria de vir uma clarificação relativamente à liderança do MAS.
Sim; se o TC mantiver a certidão que nos entregou, aceitando somente a alteração do nome, está o assunto encerrado.
Para terminarmos este tema, e para ficar clarificado, há um argumento por parte de Renata Cambra de que tinha sido eleita, e que num Congresso extraordinário do partido tinha havido a eleição de outros líderes. Isto coloca em causa a legitimidade da nova liderança?
Sim; mas é uma falácia completa, porque esse suposto Congresso realizou-se há uma semana, e ela rompeu em Junho. Portanto, ela não realizou nenhum Congresso em Junho. O último Congresso legal da organização – em que a Renata Cambra e eu fazíamos parte do mesmo partido – foi em 2022, no quarto Congresso. E em 2022, não houve nenhuma alteração da liderança. E mais: não houve maiorias nem minorias, porque para haver maiorias e minorias é preciso haver documentos alternativos. E até nos outros partidos, como aconteceu com Costa e Seguro, e agora, Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro, não é?
Então, que documentos é que poderá ter Renata Câmara entregado? Para ter avançado para o Ministério Público com uma queixa contra vários membros…
Tanto quanto nós sabemos, não há queixa nenhuma. Ela disse isso, mas uma pessoa pode ir para a imprensa dizer que apresentou uma queixa-crime, sem ter apresentado queixa nenhuma. Fazer propaganda, pode. Se houvesse uma queixa-crime, nós tínhamos que ser notificados; não há nenhum juiz que julgue um caso sem ouvir as duas partes. E já se passaram quatro meses, e até hoje não fomos notificados para ser ouvidos sobre nada. Portanto, ou não há queixa-crime, que eu acho o mais provável, ou se existe, está parada, porque os tribunais estão cheios de queixas-crime e esta é considerada ultra-secundária.
O problema dos juízes em Portugal não é saber quem tem razão entre o Gil Garcia e a Renata Cambra [risos]; eles têm os casos todos de corrupção do país, com os banqueiros, políticos, governos, etc. Vão lá preocupar-se em saber e em vasculhar se o e-mail que a Renata Cambra enviou para dizer que a direcção era assim ou assado… Não vão. E eu duvido que exista. E ela podia ter convocado um Congresso, se tinha maioria. Ela acha que é a legítima proprietária do MAS, mas não foi fundadora, e só tinha dois anos de militância. Nós é que a propusemos; fizemos uma ‘aposta’ nova com ela, como o Livre fez com a Joacine. Ela tinha, e ainda continua a ter, uma série de qualidades; não vou dizer mal da senhora, só porque temos divergências políticas. Mas a aposta que fizemos nela nas eleições, até resultou minimamente. Depois, houve divergências graves em que ela quis seguir outro caminho. Tal como o Rui Tavares teve com a Joacine; tiveram uma guerra pública, que até gravaram, aos gritos, nas sedes e nos congressos deles…
E aquele argumento de que ficou impedida de aceder à gestão das redes sociais do partido?
Tudo falso. Porque, em 2022, quando foi o último Congresso, não havia maiorias nem minorias; nem ela nunca pensou que iria romper com o MAS ou comigo ou quebrar essa unidade interna que existia. Porque eu conhecia-a e nós tínhamos uma boa relação política e pessoal; portanto, ela nunca imaginou que iria estar num contencioso um ano de depois. E o que foi aprovado no Congresso foi uma direcção colectiva, em que eu continuava a dirigir e a ter as minhas tarefas, o responsável das finanças era o mesmo, etc, e nunca ninguém levantou nenhum problema sobre o assunto.
Portanto, agora é uma questão de aguardar pelo Tribunal Constitucional e ver se aceita apenas a mudança do nome?
Deixe-me só dar-lhe este exemplo: um casal, quando está casado e se ama, não anda ali a pensar quem é o dono da máquina de lavar, ou o proprietário da casa A ou B, se tiverem várias casas, ou em quem vai ficar com os filhos. Só quando estão à beira de se divorciar, é que cada um anda a vasculhar a conta do outro, e a trocar acusações. E este é o caso. Até 2022 e 2023, nunca ela propôs retirar o responsável de finanças, que é o mesmo que foi acusado publicamente de ter roubado, o que é o falso. A ruptura foi em Julho de 2023, e nós fizemos um 5º Congresso em Agosto, já depois de ela ter saído, e fizemos o 6º Congresso em Dezembro. E esse Congresso extraordinário de que ela fala, foi na semana passada [risos]. Na semana passada, foi o Congresso da parte dela, que ela insiste em querer chamar MAS, e já não é o MAS, mas tudo bem; está-nos a fazer propaganda ao nome, enquanto nós somos responsáveis pelo MAS no país. Agora, este Domingo, foi sobre a parte dela.
Nós convocámos um Congresso em Agosto, e ela foi notificada e não apareceu nesse Congresso, e mais: entregou-nos uma resolução em que tinha expulsado o Gil Garcia e o João Pascoal. Ou seja, quando ela se considera maioria, a primeira coisa que faz é expulsar a outra parte do partido. É uma coisa que nunca foi feita, creio que em partido nenhum.
Nós já tivemos várias divergências, todos os partidos têm, e houve gente que saiu, ou rupturas, e nunca ninguém fez uma coisa dessas. Quando éramos mais maioria do que nós somos, fomos nós que integrámos a Renata Cambra, e todas as outras opiniões que eram diferentes. E nunca expulsámos ninguém. Ela, em Julho ou Agosto, quando convocámos o Congresso, não apareceu e começou a invocar que era a maioria. Ela considera maioria por uma razão muito simples: ganhou uma ou duas discussões políticas pela diferença de um voto, e achou que, com isso, passava a ser maioria para tomar conta do partido; mas isso chama-se golpe de Estado. O que ela quis fazer foi um golpe de Estado interno.
E como é que ela pode assumir a liderança e expulsar os outros membros?
Oh, é tudo treta.
Portanto, não tem validade?
Não tem validade nenhuma.
Portanto, fica agora o Tribunal Constitucional a ter que definir essa situação.
Tem de definir, não é só quem expulsou quem; tem de definir quem é o legítimo representante. Na semana passada, chegou uma certidão, mesmo em cima das eleições. Se tivessem entregado a certidão um mês antes, íamos a eleições, mas não era a Renata Cambra que ia. Mas recebemo-la já a uma semana do fecho das candidaturas, e em cinco dias não dava para recolher 300 candidaturas… Mas o Tribunal Constitucional não a considera representante do partido, e deu-me uma certidão para eu concorrer se quiser, mas já foi ‘em cima da linha’.
Portanto, já não conseguem, mas isso não significa que não construam o projecto para o futuro.
Claro. Nós estamos a funcionar, e a pensar concorrer nas eleições europeias; como “MAS”, se o TC não aceitar a alteração do nome para “Agora”.
Também houve uma outra saída do MAS, de André Pestana, porta-voz do sindicato STOP, que se desfiliou do partido. Essa situação está ‘pacificada’?
Completamente; ele não mudou, mas viu que havia muita confusão, daquilo que me apercebi. Ele liderava um movimento de massas docente, e a mais importante luta que houve nas últimas décadas – um sindicato totalmente desconhecido, fora da caixa, e este sim, é um sindicato anti-sistema, que não pertence à CGTP, à UGT, e não é ‘correia de transmissão’ de nenhum partido; liderado por um coordenador eleito, que é o André Pestana. A Renata Câmara foi manchar o nome dele, que é uma coisa completamente absurda, porque o homem dirigiu uma luta da qual ela se deve orgulhar.
Gerou uma onda grande…
Duas manifestações em Janeiro do ano passado, com 100 mil pessoas! Se reparar, as ondas dessa mobilização, influenciaram toda a associação política, até hoje. Não digo que determinou – seria demagógico dizê-lo. Mas quem é que decretou uma greve geral? Essa palavra não era usada desde 25 de Abril de 1974! A própria mobilização dos polícias, eu não acho que aquilo seja só o Chega que está por trás. Os da Easyjet, que gritavam “Não voamos”, foi adaptado do “Não paramos”, do STOP. É óbvio. Mais: a que propósito é que todos os candidatos a estas eleições legislativas, da esquerda à direita e à extrema-direita, dizem que vão devolver o tempo de serviço aos professores? Alguma vez houve uma greve de um ano nalgum sector sócio-profissional?
O tema ficou na agenda, não é?
Para mim, o André Pestana continua a ser um revolucionário.
E se for aprovada a alteração de nome pelo Tribunal Constitucional, o que é que pretende que seja o Agora?
O Agora, em parte, terá a tradição positiva que o MAS comporta. Nós participámos em várias eleições, tivemos algumas votações que não envergonham ninguém; ninguém começa com milhões. Eu próprio fui co-fundador do Bloco de Esquerda em 1999, e lembro-me que nas primeiras eleições, nesse ano, para as eleições europeias, Miguel Portas, que já faleceu, foi o cabeça-de-lista e não foi eleito. E só nas seguintes eleições legislativas é que o Bloco elegeu pela primeira vez, dois deputados, que foram o Francisco Louçã e o Luís Fazenda. O LIVRE, acho que também concorreu a umas eleições em que não elegeu ninguém. E o Garcia Pereira, que dirigiu o MRPP, também concorreu a várias eleições, e a ele também lhe fizeram uma coisa semelhante ao que a Renata Câmara nos fez: também o expulsaram. Uma coisa completamente absurda. A grande referência do MRPP, que sobreviveu ao pós-25 de Abril, era o Garcia Pereira. Por isso é que quando ele foi expulso, e deixa de aparecer e de concorrer, aquele partido caiu a pique… E nunca mais vai ser o mesmo, obviamente.
E, no caso do Bloco, acabou por integrar um Governo com o PCP; de certa forma, também defendia essa ponte.
Essa é a parte da tradição do MAS que eu quero manter no Agora. Que é sermos uma verdadeira alternativa sistémica. É uma demagogia do Ventura dizer que o Chega é anti-sistema. Não; ele não fala a verdade. Ele passa a vida a dizer que fala a verdade, e as pessoas acham que ele diz as verdades, mas é sistematicamente mentiras e falácias. Porque ele diz que é anti-sistema, mas apoia a economia de mercado, capitalista. O Ventura não é contra o capitalismo; pelo contrário. O que ele é, é anti-regime; é contra o regime democrático. Ele não o diz, mas o projecto dele, que são as bandeiras do Salazar… Ele não aplica já, mas o Hitler também não aplicou a ditadura de um momento para o outro. Esperou, e também foi eleito. Eu quero um regime melhor e um sistema melhor, mas o Ventura quer um regime mais autoritário. Quando ele, eventualmente, tiver uma maioria absoluta ou formar governo, é óbvio que as leis vão-se tornar mais autoritárias. Apesar de ele dizer que vai aumentar o salário mínimo para mil euros, para ganhar votos, e falar nos idosos, ele não vai fazer nem 10% do que está a dizer. E duvido faça alguma coisa sequer.
O Agora é um partido que defende a democracia e a sociedade democrática?
Em relação aos regimes autoritários e ditatoriais, sim. Claro que estamos insatisfeitos com o regime, porque o regime comporta muita corrupção; e é disso que o Chega se aproveita.
E algum totalitarismo. Aliás, têm saído relatórios que apontam para um recuo grande naquilo que é o nível de democracia, incluindo em Portugal. Ou seja, perdeu-se democracia, valores europeus e os valores de Abril.
Claro; até em Espanha. Eu posso discordar se a Catalunha tem ou não o direito a ser independente, e nós nem sequer somos simpatizantes de Carles Puidgemont – que é de direita, e nós somos de esquerda – mas ele foi eleito e mandaram-no prender; o homem teve que fugir. Portanto, isso é um regime claramente com traços autoritários, que nem sequer admite um referendo legítimo a uma nacionalidade específica. É óbvio que Espanha é um mosaico de nacionalidades. E a Espanha é um estado autoritário; quer em relação à Catalunha, quer em relação ao País Basco. Os regimes estão a ficar mais autoritários na Europa. Em França, a mesma coisa – França proibiu as manifestações de solidariedade com a Palestina, mesmo com o genocídio em marcha. Essa é uma medida claramente autoritária.
E ao nível Europeu, têm sido aprovados regulamentos que vêm condicionar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, naquilo que hoje se chama um combate à “desinformação”. Mas nesse bolo vai-se incluir um enorme condicionamento à liberdade de imprensa. O Agora não se identifica com isto?
Muito pelo contrário. Eles não querem jornalistas independentes; mas já não é só nas leis – é na precarização do trabalho no mundo do jornalismo, que é gritante. Já não há aquele jornalismo que havia antigamente, de investigação e sério. Agora, é tudo rápido e tiktoks… O jornalismo passou a ser tiktoks; para isso, não é preciso pagar salários a tempo inteiro, paga-se ao serviço e à peça. Isso não é sério. Depois, essas pessoas ficam muito mais dependentes das entidades patronais, e já não podem emitir uma opinião tão imparcial. Há um número assustador de jornalistas que foram assassinados em Gaza. E os países, mesmo que estejam em guerra, não podem – ou não deviam – andar a disparar sobre jornalistas. Portanto, isso é uma limitação à liberdade de expressão. Só uma leitura possível sobre Gaza, que é aquela que os norte-americanos querem que se dê ao mundo, ou que Israel quer, porque o jornalista corre risco de vida naquela região do Médio Oriente.
A propósito deste recuo no nível de democracia e da liberdade de expressão no mundo ocidental, já começa a haver correntes ideológicas que defendem que a democracia pode não ser compatível com algumas reformas que têm que ser implementadas, nomeadamente no âmbito da crise ambiental, que hoje chamam as alterações climáticas, e não só na área daquilo que é considerado de extrema-direita, mas mesmo dentro de governos actuais.
Em Portugal, quem foi a mulher que já disse isso há uns anos, que havia que suspender a democracia? Manuela Ferreira Leite, de um governo de Cavaco Silva.
Mas hoje, há movimentos e correntes que defendem que a democracia não é compatível com reformas, concorda com isto?
A democracia tem que ser compatível com qualquer regime. Eu sou da esquerda radical, mas defendo um regime que mantenha até mais liberdades democráticas do que as que existem hoje, e um funcionamento da sociedade melhor. Os gregos já tinham, 500 anos antes de Cristo, com Platão e Aristóteles, uma democracia directa, por exemplo. E nós hoje consideramos isso uma utopia. A nossa democracia chama-se democracia representativa. As pessoas votam, e depois fica lá, durante quatro anos, um Governo que não passa cartão ao que as pessoas pensam, e que só cai sob circunstâncias muito particulares. Podem estar 100 mil professores na rua, como estiveram em Janeiro duas vezes, e eles não resolveram nada. Agora, para as eleições, como têm de ganhar votos, dizem que vão devolver o tempo de serviço aos professores. Mas na altura, o Costa e o Governo não cederam em nada. Portanto, de facto, há possibilidade de aumentar o grau de democracia das nossas sociedades. Não há-de ser com este tipo de alternância sistemática entre PS e PSD ou entre PS e AD com a IL. Se tivermos um governo da AD com a IL e o Chega, será muito pior do que aquilo que temos agora.
Temos tido alguns temas mediáticos, como a questão da Habitação, do Serviço Nacional de Saúde [SNS]. Quais são que propostas do vosso partido que pode avançar para estes desafios?
Esses temas são muito importantes. Vou começar pelo SNS porque é um verdadeiro horror o que se passa; não por responsabilidade dos profissionais de saúde, mas por responsabilidade dos sucessivos governos, que nem sequer é só dos governos PS, ainda que nos últimos anos tenham sido oito anos de Governo PS, e portanto, também eles são responsáveis, como é óbvio.
Oito anos é muito tempo.
É muito tempo; mas o PSD também tem responsabilidades – porque embora não seja totalmente confessado da parte do PS, mas é muito confessado da direita – eles encaminharam-se para privatizar a Saúde. Basta recordar que nem há um século, nós tínhamos o Hospital de São José e o Hospital de Santa Maria, mas não nasciam, como cogumelos, hospitais privados. Agora nascem; é o novo da Cuf em Leiria, na zona da Estrada da Luz, tem dois Lusíadas… Se têm capital privado para construir um hospital, significam que estão à espera do retorno, e de clientes. De onde é que vêm? Tem que haver alguma coisa que seja deteriorada nos hospitais públicos, para as pessoas deixarem de acreditar que ali conseguem resolver os seus problemas, e que têm de se dirigir para os hospitais privados. Por exemplo, fecharam maternidades, e assim, tal as pessoas vão para o hospital privado. Está tudo a ser canalizado para hospitais privados.
Mas entende que é por negligência ou por descuido, ou por opção?
É uma opção ideológica. Aquilo de que o Montenegro acusa a esquerda, que é uma opção ideológica em relação ao SNS, é do que ele padece. Ele tem, de facto, um preconceito em relação à esquerda e tem um desvio ideológico; na ideologia da direita, tudo o que é público, é mau. E eles andaram a vender isso durante décadas. O curioso é que, se as empresas públicas dessem lucro, eles gostavam que passassem para o privado; mas depois, diziam que o bom era o privado. Porque quando as empresas não dão lucro, eles já preferem que sejam nacionalizadas; como os bancos, com o BPN, aí já adoraram a nacionalização, porque era um banco privado, e nós a pagar os oito ou 10 mil milhões – nunca sabe ao certo – da falência do banco. E só estou a falar do BPN, imagine-se o BES, que ninguém sabe até onde é que aquilo vai parar, com a resolução do Banco de Portugal. E com o SNS, apesar de o PS dizer – e não é mentira –, que aumentaram X ou Y, o problema é que era preciso, se calhar, X mais Y e mais Q.
Eles querem um bom serviço médico sem pagar decentemente aos profissionais; e isso não pode existir. Porque é que um médico há de ser ‘condenado’ por mudar de um hospital público para um hospital privado, se lhe pagarem mil ou dois mil euros a mais? Enquanto no público, para ganhar esse valor, têm de fazer uma tonelada de horas extraordinárias, que lhe saem do pêlo, e deteriorarem as relações familiares, o que é insuportável. Portanto, os governos, ao conservar as tabelas ou não actualizarem os salários, estavam a convidar os profissionais de saúde ligados a hospitais públicos a irem vender a sua força de trabalho ao privado.
Portanto, entende que a alternativa é reforçar esse orçamento?
Óbvio. E devia ter havido limitações em relação à proliferação dos hospitais privados. E já agora, embora seja noutra área… Parece que somos o país da Europa que tem mais centros comerciais, um país pequeno como o nosso [risos]. Isto é inacreditável. Assim como devia ter havido limites pinhal intensivo e ao eucaliptal intensivo, que tudo isso está a dar cabo das nossas terras. Nada disso é limitado, porque só se protege a chamada propriedade privada e a iniciativa privada, etc. É o caso dos hospitais. Como é que se resolve? Tem que se conter essa proliferação permanente, tem de se valorizar as carreiras e definir-se claramente de forma vantajosa para os hospitais públicos, para que as pessoas possam ‘migrar’ no sentido contrário.
Tem que haver então uma maior aposta no SNS?
Se querem os bons médicos que estão no privado, têm que pagar mais do que paga o privado. E aí, vai ver que os hospitais privados provavelmente têm que fechar. Deve saber tão bem quanto eu que parte do orçamento público para a Saúde – esse que António Costa diz que aumentou, e que não é mentira, mas não aumentou o suficiente e aquilo que era necessário –, uma parte é para pagar aos hospitais privados por serviços prestados que o público não comporta. Portanto, em vez de se apostar no público, vai-se para o privado.
Mas depois é comparticipado…
E dinheirão do Orçamento do Estado [OE] que, no tempo da pandemia, foi parar aos hospitais privados? Milhões… Eu não sei é a percentagem exacta que os hospitais privados têm do OE, mas quase certeza que se o OE deixar de contribuir aquilo que já contribuiu, não há um hospital privado que fique de pé. Portanto, é preciso que os hospitais públicos continuem a ser deteriorados, e ficar só para os pobres e o resto vai para os hospitais privados. O capitalismo favorece a iniciativa privada; e eles estão a cumprir isso.
Mas não é o que se tem passado também na Educação? Porque vemos muito daquilo que é elite ou a classe média também a recorrer ao ensino privado e já não colocam os filhos no ensino público.
Sim. Eu sou professor, já fui no público e neste momento estou uma escola particular. Mas as escolas particulares têm um certo prestígio no mercado da educação, no ensino secundário. As universidades públicas não são tão “prestigiadas” quanto as escolas particulares do ensino secundário. Tem a ver com a história da educação em Portugal. A única universidade privada que tinha o mínimo prestígio era a Universidade Católica. Na verdade, nem havia mais nenhuma, até aparecerem as ‘Universidades Lusíadas’ e outras. Até houve uma que fechou, onde trabalhava o Paulo Portas, que havia tráfico de armas e outras coisas parecidas e esquisitas, que apareceu na imprensa. E ele andava de Porsche a passear pela cidade, pago por essa universidade. Fecharam e abandonaram os alunos que tinham pago propinas…Mas o “problema” é que o mercado privado nas universidades não cola muito, porque, quais são as melhores faculdades de Engenharia? O Técnico, logo em primeiro lugar; em Lisboa ou em Coimbra e no Porto. E quais são os grandes cursos de Medicina em Portugal? Hospital de Santa Maria e Hospital de São João, no Porto. Por acaso, é curioso, os hospitais públicos têm dificuldades, mas depois para a formação de médicos, devem ter sido formados em Coimbra, no Porto ou em Lisboa, nas universidades públicas.
Mas muitos jovens depois também emigram, há uma grande saída de jovens do país…
Claro; a nossa emigração é uma fuga de cérebros, até já houve manifestações. Os novos licenciados estão confrontados com essa situação. Eu conheço jovens que concorreram para hospitais privados, a ganhar 800 euros por mês, não dá. Talvez aos médicos cruciais para determinados departamentos, pagam acima do público, mas no resto…
Até porque depois esses salários baixos vêm ao encontro de um custo de vida elevado, com a inflação, e os preços na habitação. Qual é a vossa visão relativamente à crise que se vive na Habitação em Portugal, em que até uma família com um salário médio já tem dificuldade em arrendar ou em conseguir comprar casa?
O Governo de Costa tem grandes responsabilidades na política que teve para a Habitação. Ou melhor dizendo, que não teve. Limitou-se a surfar os inputs que vinham no turismo. Ao virem milhões de turistas todos os anos – que na verdade fez reanimar a economia nas grandes cidades e não só –, eles deram livre curso para estrangeiros, comprarem casas, os alojamentos locais… Gente que lá fora ganha mais dinheiro do que nós aqui, viram que era barato e começaram a comprar tudo, não é?
E como é que se pode corrigir a actual situação?
De facto, há propostas. Por exemplo, o Governo já devia ter legislado para proibir a compra de casas por estrangeiros, porque senão não vai haver para os nacionais. Acho que o Bloco também defende isso, e eu estou de acordo com essa posição. Além que devia de haver uma limitação às rendas; por a legislação ou por via do mercado. E como? Significava que as câmaras municipais, que são parte do Estado, podem construir. O Estado pode construir. Há várias entidades públicas que se tivessem um plano de obras de construção de casas a preços acessíveis, e metessem no mercado com rendas de 300 euros, aqueles que andam a arrendar a 600, a malta saía toda de lá e vinha. Se o Estado fizesse um plano de construção de casas… Mas lá está, é a opção por uma economia capitalista, que é favorecer a iniciativa privada e não é favorecer as populações. Querem é enriquecer e ganharem mais dinheiro, e os outros que se danem.
E o Estado tem ganhado muito dinheiro também, por via dos impostos e de taxas…
Claro; se eles quisessem reduzir as rendas, além de poderem legislar sobre o assunto… Por exemplo, os bancos têm uma espécie de tese sobre o assunto; não concedem crédito com uma taxa de esforço acima dos 30% dos salários. Há famílias que, com o aumento dos juros, estão a pagar 2/3 para poder pagar as casas, e mesmo assim acabam por abandonar as casas. Portanto, eles tinham que efectivamente aumentar a oferta pública de casas através das câmaras municipais; do próprio Estado, directamente do Ministério da Habitação, e fazer um forte investimento. Se eles colocassem no mercado meio milhão de casas a preços acessíveis; porque um T1 em Lisboa já saltou para 1.000 euros por mês.
Portanto, a solução passa por investimento e oferta pública.
Sim, e pela proibição de continuar a vender aos estrangeiros enquanto não equilibrarmos a situação. Não temos nada contra os estrangeiros e contra os imigrantes, mas não pode ser que só os de fora que têm dinheiro é que têm acesso às nossas habitações que ainda estão disponíveis no mercado, e que as pessoas estão a ser empurradas para fora de Lisboa.
E, portanto, acabamos por ter aqui uma sociedade quase de castas, em que tem uma parte da população não tem acesso à saúde, à habitação e até a alimentos, infelizmente.
Sim; em Lisboa, a sopa dos pobres continua com filas monumentais. Os sem-abrigo, isso ainda não desapareceu. O Marcelo fez uma campanha demagógica a dizer que ia acabar com isso, mas continua tudo igual.
E nesta zona de Arroios, há de facto uma grande quantidade de pessoas a dormir nas ruas, não é?
Exactamente; e que não havia há 30 ou 40 anos. Eu já frequentava a sede de outras forças políticas, deram a fundação Bloco e que eram aqui na Rua da Palma, e não me lembro de ver famílias a viver na rua aqui com tendas e coisas desse género como vemos agora, na Almirante Reis, e em Arroios.
Tem havido um movimento na União Europeia de abertura dos países à imigração, também porque precisamos pela questão demográfica e sustentabilidade da segurança social. Qual é a vossa posição relativamente a essa política, não só portuguesa, mas Europeia? Porque já existem desequilíbrios e problemas que advêm de uma grande massa de pessoas com culturas diferentes e objectivos diferentes.
É claro que é um equilíbrio extremamente difícil. Antevejo que possa haver mais conflitos, como já existem em França.
Mas Portugal vai a tempo de se preparar para que não aconteça aqui o que está a acontecer em França ou na Alemanha?
Poderia; se houvesse políticas de médio e longo, e se houvesse habitação quer para os que emigram para cá quer para os que estão cá, haveria menos conflitos. Mas assim, alimenta-se uma espécie de racismo. As pessoas veem vídeos racistas inacreditáveis a dizer que Portugal tem uma invasão e depois filmam uma rua de Arroios com paquistaneses… E dizem que há uma invasão; mas é uma falácia, chama-se falácia da geração precipitada. Se formos ver o universo global do país, o número de imigrantes ainda é uma percentagem muito pequena. E, por outro lado, essa percentagem pequena contribui fortemente para a segurança social… A legalização melhorou porque o Estado precisava de imigrantes porque não havia força de trabalho – para hotelaria, para a construção civil, para a restauração, para a apanha dos frutos vermelhos no Alentejo… Não é que os portugueses sejam calões, mas a classe trabalhadora não quer trabalhar por salários miseráveis. Então, eles também emigram para outros cenários.
Nalguns casos, infelizmente, até em situações de escravatura, porque muitos dos imigrantes estão em situação extremamente precária.
Claro; temos muitos emigrantes que vão procurar ganhar melhor lá fora, e depois são os outros imigrantes que vêm para aqui, que estão disponíveis a dormir… Que aliás, os portugueses a viver em França, nos anos 60, também viviam em espécie de bairros de lata, antes de poderem ganhar peso e ganhar melhores salários. Aqui em Portugal, na apanha dos frutos vermelhos – e houve várias reportagens na televisão – havia 20 pessoas a viver numa sala como esta, num T1. Eles aceitam porque lá no Paquistão ou no Nepal os salários ainda são mais baixos, mas isto não são condições dignas para oferecer a ninguém.
Portanto, entende que deve haver também uma política para esta área, que seja mais inclusiva e mais racional?
Em Portugal; mas a União Europeia também devia ter políticas para África e para outras zonas do mundo, em que devia de estimular crescimento económico e não miséria. Nós estivemos 800 anos em África, deixámos muita miséria lá, e por isso é que depois, como também precisávamos de mão-de-obra, num primeiro momento… Agora, vai-se aos restaurantes de Lisboa e têm todas as nacionalidades; portugueses já são poucochinhos. Eu falei com alguns responsáveis desses restaurantes, e disseram que não há portugueses que queiram vir para aqui trabalhar e precisam de empregados – por isso têm do Nepal, e de países que a gente nem estava à espera que viessem para cá… Porque as nossas pessoas daqui emigram para outras zonas da Europa, como o Canadá, a Suíça; onde se ganha mais. Portanto, é preciso ter políticas também internacionais. Se os racistas e a extrema-direita não querem que venha muita imigração para cá, era acabar com a miséria em África; porque se as pessoas morrem a atravessar o Mediterrâneo, a arriscar a vida, sabendo que uma parte delas morre ali, é porque a solução lá é completamente insuportável. Quem é que andou a explorar África durante séculos? Foram as potências europeias, incluindo Portugal em Angola e Moçambique, a França na Argélia e a Inglaterra na Namíbia e na África do Sul, etc. A Líbia foi destruída pelas potências europeias, por causa do Kadhafi… Portanto, estas pessoas têm que desesperadamente meter-se num barco e tentar chegar à Europa.
Mas ao mesmo tempo, uma Europa com os seus valores de respeito dos direitos humanos, não é estranho que tivesse promovido programas como, por exemplo, vistos Gold, em que se atribui cidadania a quem tem dinheiro, enquanto pessoas morriam no Mediterrâneo?
É, mas é aquilo que já falámos. Lamentavelmente, este sistema está orientado para tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Repare que até as nossas classes médias na Europa, e em Portugal também, estão a perder poder de compra e nível de vida. Um professor, hoje, quando começa a trabalhar – por isso é que já não há professores – ganha 1.100 euros líquidos. E no particular, ainda ganha menos que no público. Mas quem é que pode, com rendas de casas de 500 e 700 euros, e mais um carro – que depois também às vezes tem que se deslocar para longe – como é possível com 1.200 euros. Os nossos salários médios agora estão a ser esmagados, e não tarda muito, os professores também vão viver de salário mínimo. Era preciso aumentar drasticamente o salário médio, que neste momento, devia ser 2.000 euros em Portugal. O salário mínimo líquido de um professor devia ser 1.500 euros, se querem manter professores. Porque assim, não conseguem pagar as rendas de casas. Não é que sejam muito ambiciosos, mas não se consegue com um salário de 1.200 euros, viver dignamente.
É uma questão de dignidade.
Ainda por cima investiram na sua formação, pensaram… O chamado elevador social acabou. Os jornalistas estão precarizados. A sociedade está toda a ser nivelada como no Terceiro ´Mundo: muitos ricos de um lado e muitos pobres do outro. Ou seja, uma minoria muito rica e uma maioria larga, muito pobre. E isso leva, vai levar o agravamento dos conflitos.
Falou aqui de agora da questão dos jornalistas. Temos assistido a uma crise nos grandes grupos de media, nomeadamente na Global Media, dona do DN e da TSF. Mas tem havido algumas vozes que defendem que tem de haver entrada de dinheiro dos contribuintes nestes grandes grupos. Defende essa ideia?
Não, acho isso um perigo. Aliás, vê-se pela Global Media. ATSF era uma rádio super respeitada. Das melhores rádios em Portugal, durante anos. Entrou no universo dos privados e de um grupo que não se sabe sequer quem é o acionista, um fundo que ninguém sabem quem é. Depois, um administrador que tem poucos poderes a não ser cumprir as ordens que vêm de fora. Depois, aquilo não dá dinheiro, fecham. Põem as pessoas na rua. É a lei da selva. E é a precarização completa do sector. Acho que até está provado pela Global Media que a solução não é entrando dinheiro de fora, desses grandes grupos, porque desconfio que vai largar mais no desemprego a classe jornalística.
Portanto, uma decisão de haver dinheiro dos contribuintes, dinheiro do Estado, para financiar estes grandes grupos, não seria uma solução?
Como o jornalismo é muito importante numa sociedade democrática, o jornalismo independente, o Estado devia investir. Acho que não deve investir nos privados. Também não deve cometer os erros do passado de colocar pessoas ligadas ao partido do poder, para tornar correia de transmissão do partido que lá está. Fez isso na RTP e noutros lados. Se os partidos que estão no poder não utilizarem o meio jornalístico para ser correia de transmissão, então aparece a direita a dizer: isto tem de ser privado para ser independente. Não é. O Correio da Manhã, que é privado, e a CMTV promoveram Ventura. Ou o Ventura apareceu por obra e Graça do Espírito Santo? Não. Aliás, o Rangel disse, no tempo dele, que até vendia um Presidente como se fosse sabonetes. De facto, foi assim. Venderam o Ventura como se fosse sabonetes. Puseram-no a comentar crimes e a dizer que era do Benfica durante um ano inteiro. Já reparou que até Presidentes da República são eleitos por fazerem de analistas ao Domingo?
E há muitos comentadores que são políticos.
Provavelmente, se me convidassem para falar todas as semanas na televisão, num canal qualquer, provavelmente já tinha sido eleito. Santana Lopes andou a ser comentador também e foi eleita para todo lado.
Entende que os media têm que se transformar porque não têm estado a responder àquilo que são as necessidades das democracias?
Os comentadores televisivos ou são do PS ou do PSD. É uma coisa inacreditável.
Ou seja, há uma promoção de determinados partidos.
Proença de Carvalho fartou-se de dizer mal da luta dos professores e do STOP e da esquerda, a dizer que são radicais. É tudo só dessa laia, tudo só gente dessa laia. Não se ouve uma voz verdadeiramente independente, já nem digo de esquerda, assim radical… Acho que havia o Francisco Louçã na SIC. Uma cedência táctica. Já não está. A Ana Gomes, também, aparece poucochinho. De resto, é tudo comentadores de direita e às vezes fundamentalistas de direita. Tem muito pouco de plural. O que vocês estão a fazer connosco, ouvir os pequenos partidos, é uma coisa rara. Mesmo em eleições, em que são obrigados a dá voz aos pequenos partidos, o que é que fazem? Fazem dois campeonatos. Os grandes: têm tempo com fartura e depois debatem entre eles. Os pequenos…”Temos que cumprir, a lei, não é?” Então fazem dois, três minutos, cada, a falar na televisão. Uma vez, de 4 em 4 anos, falar 3 minutos… Isso é pouco democrático, dizer para não dizer outra coisa. É pouco democrático.
Mas será que essa atitude também não explica um pouco da decadência em que entrou a comunicação social? Esse quase distanciamento, a colagem ao poder ou a determinadas figuras do poder e o distanciamento daquilo a que é a realidade do país?
Sim. Só tivemos governos do PS e do PSD e do CDS, no país, nos últimos 40 anos. Tirando um período de 74-75, em que havia os governos provisórios, que até o PCP participou nesses governos. Há quase 50 anos. Portanto, é só governo do PS e do PSD. Eles orientaram Estado e as suas políticas de Habitação, da Saúde para favorecerem a economia privada. E quando tinham empresas estatais, vamos chamar nacionalizadas, utilizaram uma coisa que manchou o nome das nacionalizações não é que é utilizar como correia de transmissão no jornalismo. Nomeavam pessoas próximas, ou para a televisão ou para o jornal A ou B, que respondiam perante quem os nomeou. Na banca, na Caixa Geral de Depósitos, quem são os administradores que ao longo dos anos…? Se fizerem uma investigação sobre quem são os administradores que foram nomeados para a direção da CGD, vão ver que estamos a falar de pessoas ligadas ao PS, ao PSD. Está tudo dito.
Ao longo desta entrevista noto, com o seu percurso já vasto, sua experiência em termos de atividade, de intervenção cívica, intervenção política, sente-se um pouco desencantado com a esquerda?
Caminhamos para uma parte decisiva da entrevista que é uma das razões da existência do MAS ou do Agora – do MAS Agora, gostei dessa expressão…Achamos que é indispensável criar uma esquerda alternativa à atual esquerda parlamentar. Porque a actual esquerda parlamentar não apresentou soluções. Se tivesse apresentado soluções, porque é que surgia a extrema-direita? A extrema-direita surgiu quando houve uma geringonça. Sei que há muita gente da esquerda que continua a desejar uma geringonça, porque perante o perigo de um governo de extrema-direita, as pessoas dizem: a geringonça, outra vez. Compreendo isso, obviamente. Não estou de acordo em sustentar um governo PS e dar-lhe o livre curso, como aconteceu, mas um governo de extrema-direita é das das piores coisas que podem acontecer. Mas não podemos estar nessa dicotomia: ou governo de extrema-direita ou um governo dirigido pelo PS. A outra esquerda nunca lutou para construção de uma verdadeira alternativa que transformasse o PS num apêndice dessa esquerda alternativa. Agora, é o PS que cria essa esquerda como apêndice. O PCP e o Bloco foram apêndice do governo PS, viabilizaram os Orçamentos de Estado como uns rebuçados que António Costa distribuiu. A que isto deu origem? Deu origem a que o surgisse alguém da extrema-direita [a dizer]: “isto é o socialismo de esquerda; a esquerda governa o país há 30 anos, estão todos juntos; é o PS, é tudo igual”. E não é só aqui. Quem governou na Europa? Este centro político! Por isso, nas eleições, os votos na extrema-direita começaram a ganhar peso. Os votos da extrema-direita não é são só de gente da direita. Nem pensar nisso. O Chega teve votos no Alentejo, na base eleitoral do Partido Comunista, de certeza absoluta, e do PS. Como aconteceu em França, em Marselha. O Partido Comunista Francês era uma coisa gigantesca, passou para a Le Pen a uma velocidade supersónica. É esse o problema. O problema é que a governação da esquerda tradicional, dirigida pelo PS, em que todos os outros, capitularam, o Bloco, o próprio Partido Comunista. É claro que a direita diz que eles são todos radicais. Mas quais radicais, se eles ajudaram o PS a governar o país durante anos, com uma política para os privados, na Saúde, com o salários baixos, com as rendas caras. O Bloco e o PCP ajudaram o Governo a manter-se!
É preciso uma nova esquerda?
É preciso uma nova esquerda. Se não surgir uma nova esquerda à esquerda, isto vai parar tudo à extrema-direita. Já está! Mas não é só aqui. Onde é que Trump tem força nos Estados Unidos e volta a querer disputar a Presidência? No Brasil, Bolsonaro perdeu por pouco para o Lula, não foi por muito, foi por pouco. Na segunda volta, ele até cresceu mais do que o Lula, se bem que Lula conseguiu o ultrapassar. Agora, na Argentina, um tipo com uma motosserra a fazer campanha eleitoral, assim como quem diz, “eu vou cortar a cabeça a uns quantos”… Ele foi eleito num instantinho e também veio de quase nada. Ventura também. Suporta-se num elemento, assim como dizia o poeta português: para a mentira ser segura e ganhar profundidade há que meter à mistura qualquer coisa de verdade. É isso que Ventura faz. Fala da corrupção no PS. Tem um elemento de verdade. O PS tem muitos casos de corrupção. Ele não fala dos casos da direita. Os vídeos dele são a falar da casa de Pedro Nuno Santos. Do Montenegro e do caso da fuga ao IMI, não fala nada disso. Os problemas que ele tem… Uma revista aqui, em Portugal, esmiuçou os que financiam o Chega e [disso] ele não fala. Dos grandes capitalistas, dos grandes grupos económicos, com que ajudam a ter as maleitas que nós temos, inclusive na Habitação, no imobiliário, na banca. Está tudo por detrás dele, [disso] não fala. Ataca os podres da esquerda. Então a população está confrontada… O que é que surge de novo? A extrema-direita. Então recusam isto e acham que isto é a única coisa que existe, é esta esquerda. Se não romper uma alternativa à esquerda, que é o que MAS/Agora quer construir, estamos com um futuro muito complicado.
Até porque, tem sido com partidos ligados à esquerda ou com partidos e movimentos de ideologia mais de esquerda, que, em diversos países, grandes empresas e grandes indústrias e multinacionais, têm obtido lucros recorde. Isso também tem ajudado um bocadinho, se calhar, há alguma parte da população a questionar. E daí, vindo ao encontro daquilo que diz: temos estado perante movimentos mesmo de esquerda, governos de esquerda?
Claro que os governos não são de esquerda. A demagogia da Iniciativa Liberal, mas do Chega também… O Montenegro também está a alinhar com isso, porque acha que vai ganhar votos a fazer um discurso próximo da extrema-direita… Isso já foi experimentado em França e não deu resultado, mas ele insiste em aproximar o discurso dele à extrema-direita. Mas o problema que existe é o seguinte: se a esquerda que nos governou não trouxe soluções para a Habitação, para o Serviço Nacional de Saúde, … O meu filho nasceu num hospital público. Agora, uma senhora grávida tem de andar na Internet à procura do hospital onde pode ser admitida. Eu escolhi o hospital. O meu filho tem 22 anos. Há 22 anos – não foi há um século – eu e a mãe do meu filho, escolhemos o hospital. Como a mãe dele é do Alentejo, eu sou de Lisboa. Escolhemos que nascesse em Évora. Entrei no hospital, a maternidade estava a funcionar. Agora, um homem tem de andar desesperado. Ou tem uma ‘pipa de massa’ para pagar um [hospital] privado, ou então tem de andar à procura. Em 22 anos degradou-se [o serviço]. E nesses 22 anos houve muitos governos ditos de esquerda, do PS. Por isso é que a direita, demagogicamente, [diz]: “estão a ver, é isto”. Se bem que o governo PSD e CDS também participou neste ‘fartar vilanagem’ que existe em todo esse tipo de sectores. A resposta que as pessoas encontram… O que é que aparece na televisão? O Ventura e o Chega. E, agora, a Iniciativa liberal.
E, em breve, o Agora. Vamos ver aguardar.
É isso que nós queremos: romper com essa dicotomia ou só a esquerda tradicional ou só a direita ou extrema-direita. Não. Pode haver uma alternativa credível pela esquerda. É isso que nós queremos construir.
Transcrição de Maria Afonso Peixoto
Pode consultar AQUI a página do MAS.