Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
58 – A fundamentação ética dos atos humanos
Empregando um timbre de voz que me surpreendeu, porque eu parecia estar falando como um juiz ao fim de um julgamento, sentenciei:
– Georges Sim Et Non!
De imediato, o francês apontou o cachimbo para mim, como se ele fosse uma pistola, e disparou:
– Te cuida, malandro! O inferno está cheio de neguinho dedo-duro! Se tu provar o que tu diz, dou meus punhos pro delegado enfeitar com algemas. Mas se tu não provar, eu vou botar meia dúzia de advogados em cima de tu. Calúnia e difamação. Os causídicos vão te arranjar tantos processos que tu vai ter que alugar um apartamento perto do Fórum. Pra economizar na condução.
– Não tente amedrontar minhas testemunhas! – berrou Aroeira, em meu auxílio, e bateu com a mão na mesa. – Se um sujeito aqui tem o direto de encagaçar alguém, esse sujeito sou eu. Pronuncie-se, jornalista!
Assustado com a ameaça pistoleira do francês, inseguro, recomecei então a falar com uma voz tão baixa que quase nem eu mesmo me ouvia:
– Tentarei reproduzir aqui frases estranhas que o senhor Sim Et Nom pronunciou. Porém, se eu estiver enganado, espero que ele, por favor, me corrija.
– Deixe de ser cagão, Campestre! – urrou Aroeira. – Vamos ao que interessa!
– Enquanto investigava o apartamento, o senhor Sim Et Non levantou a tese de envenenamento do almoço de dona Miguela. Como mostrou o laudo, arsênico foi misturado à comida. Seria só coincidência? Não me parece. Além disso, o senhor Sim Et Non chamou dona Miguela de “bruxa espanhola” e disse que ela morreria envenenada se mordesse a língua. Seria outra coincidência? Não me parece.
– Sacanagem! – reagiu o francês. – Esse moleque é um pilantra. Eu jamais misturaria arsênico francês num prato de feijão-com-arroz. Ainda se fosse um fricassé de faisão… Delegado, quero registrar já o meu mais veemente protesto…
– Envie seu protesto ao embaixador da França – respondeu o policial, fazendo uma vênia. – Prossiga, neto de Getúlio Vargas!
– Dona Águeda disse que o senhor Sim Et Non odiava profundamente dona Miguela porque ela era a escritora policial mais apreciada pelos críticos franceses.
– Nunca vi pivete mais otário que esse aí! – resmungou o escritor francês e, com dedos visivelmente trêmulos, encheu de fumo seu cachimbo. – Como é que eu, um francês de Paris, um verdadeiro monsieur, poderia ter inveja de uma espanhola?
– O senhor quer dizer que não tem nada a ver com a morte de dona Miguela? – indagou o delegado.
– Isso também não! – respondeu o gaulês, em tom de mofa ou galhofa, não identifiquei bem. – Eu também tirei a minha lasquinha.
A seguir, baforando, com as mãos às costas, ele passou a caminhar pela sala:
– Vou falar a verdade. Na batata. Depois do almoço, eu passava pelo corredor. Trazia na mão uma caneta esferográfica baratinha, de plástico transparente, sem carga dentro. A caneta estava pronta para funcionar como uma pequena zarabatana.
Estávamos todos tão atentos à narrativa do francês que o silêncio entre uma palavra e outra poderia ser cortado com uma tesoura.
– Aprendi a soprar zarabatana na África – continuou Sim. – Quando moleque, eu passava férias na fazenda do meu avô, que criava hipopótamos no Senegal. Lá, de manhã, eu lia Molière para os nativos que, em troca, à tarde, me ensinavam a soprar zarabatana… Pois bem, hoje, vinha eu por este corredor pensando. Aliás, franceses estão sempre refletindo sobre coisas como o obscuro sentido da existência, o trágico destino da humanidade e a fundamentação ética dos atos humanos. De repente, virei o rosto. O que vi eu pela porta aberta do apartamento? Miguela de Alcazar comodamente instalada em uma poltrona lendo um livro. Num movimento muito rápido, furtivo, levei a zarabatana improvisada aos lábios. E, pronto, fiz o que pensava fazer: soprei.
59 – Abrir o coração não é o mesmo que confessar
A forma descontraída com que Sim Et Nom confessou ter mandado uma zarabatana em direção a Miguela de Alcazar deixou-nos aturdidos, como se nós também tivéssemos sido atingidos pelo dardo peçonhento. Não podíamos esperar tal reação depois da forma veemente com que ele protestara contra as minhas suspeitas.
– O senhor poderia nos dizer o que havia dentro da zarabatana? – perguntou Aroeira.
– Um pequeno dardo – respondeu o francês.
– E o que havia na ponta desse dardinho?
– Não apenas na ponta – detalhou o escritor francês. – O dardo todo era puro veneno, uma substância líquida endurecida por congelamento.
– Em que direção esse dardo foi soprado?
– Ora, como já disse, o alvo era uma velha senhora espanhola.
Um mosquito sobrevoou a mesa. No seu voo errático, avançava de lado, como um avião de caça atingido na asa. Provavelmente havia picado Fedorova.
Aroeira, que começou a piscar doidamente os olhos, como se tivesse perdido o controle das pálpebras, indagou:
– De que sustância fora feito o tal pequeno dardo?
– De peçonha de víbora. Mais que pura. Concentrada.
Muitas cadeiras se movimentaram ao mesmo tempo. Os escritores pareciam dispostos a sair correndo daquela sala.
– Onde se alojou o tal dardo? – indagou o policial.
– Em uma grossa veia azulada de um enrugado pescoço.
– Parece que o senhor Sim Et Nom é o primeiro a admitir aqui, claramente, que pretendia matar a vítima.
– Não, meu irmão, não foi tentativa de homicídio. Eu só soprei aquela zarabatana pra ganhar uma aposta literária.
Três cadeiras movimentaram-se traduzindo claramente a reação de seus ocupantes: inquietude, desconfiança e incredulidade.
– Explique-se! – rosnou Aroeira.
– Quando desembarcamos no aeroporto do Rio de Janeiro, Miguela me perguntou se eu conhecia algum método realmente surpreendente e criativo de assassinato. Contei a ela que cientistas franceses inventaram recentemente um método de congelar veneno na forma de pequenos dardos. Carregados em estojo térmico, esses dardos só podem ficar uns poucos segundos na mão de quem vai arremessá-los. Soprados em zarabatana, matam a vítima na hora, caso acertem numa veia. No Rio de Janeiro, quando concluí minha fala, Miguela caiu na risada e disse: “Dardo de veneno congelado? A única invenção científica decente dos franceses é o perfume, que eles criaram para substituir o banho”.
Batota soltou uma bela gargalhada. Compreendi sua reação. No Brasil, é raro alguém contar uma piada que não seja de português. E, pelo que ouvi falar, os portugueses preferem fazer piadas de alentejanos. Não fazem piadas de brasileiros porque acham que os brasucas, por falarem outro idioma, não as entenderiam.
– Putisgrila! – grunhiu Sim Et Non, com os lábios tremendo. – Naquela hora, o sangue me subiu aos cornos. Pensei: tu vai ver só, mocreia, se existe ou não o tal dardo! Ao chegar aqui neste hotel, meti na geladeirinha do meu apartamento uma mostra do tal veneno, que eu trazia comigo. Então, quando passava pelo corredor, me veio a ideia. Fui ao meu apartamento, abri a geladeirinha e…
– Confissão plena, completa e absoluta! – determinou Aroeira. – Considere-se preso!
– Manera, delegado! Eu não confessei nada, apenas abri meu coração, como fizeram Bugres e Dornascostasviskáya. Eu, em tese, sou apenas o terceiro assassino.
– O senhor, por acaso, também vai alegar que sua dose não foi letal?
– Não! Eu não vou usar uma desculpa tão esfarrapada. Tolice! Eu posso provar que não sou o assassino por uma simples razão: Miguela já estava morta quando meu dardo lhe atingiu o pescoço. Além disso, veneno de víbora não mata víbora. A homeopatia diz que semelhantes se anulam. Soro antiofídico se faz com veneno de serpente.
60 – Da impossibilidade de se assistir a um filme francês até o final
À beira de um ataque de choro, Aroeira deixou cair a cabeça. Tivera três suspeitos debaixo do olho, mas eles, embora tivessem mais ou menos confessado, haviam tirado o corpo fora. O pobre policial brasileiro sentia que estava sendo enrolado e se desesperava por isso.
Apiedado daquele que era o meu único compatriota ali, aproximei-me dele e murmurei:
– Ainda não acabei de ler minha relação de suspeitos, delegado.
Aroeira voltou-se na minha direção e o olhou-me de um modo estranho. Creio quer levou algum tempo para reconhecer-me.
– Sim, Campestre – disse, por fim, sem convicção. – Leia lá então o nome do próximo acusado.
– Lady Águeda Christine – anunciei com voz firme. – Ela começou a se incriminar quando defendeu no início das investigações a tese do envenenamento das folhas da Bíblia. Desconfio que seja cúmplice de dona Fedorova. Cúmplice ou mentora! Não acredito em simples coincidências.
– Eu também não – concordou Aroeira. – A senhora Águeda teria algo a nos dizer sobre isso?
– Uai, admito que é coincidência estranha demais da conta. Mas é muito pouco provável que uma aristocrática e culta dama britânica possa ter ideias semelhantes às de uma russa de baixa extração.
Aroeira voltou-se para mim:
– Continue, com as acusações, promotor! Vamos lá acabar com isso!
– Lady Águeda garantiu que dona Miguela havia sido assassinada quando a porta de seu quarto já estava fechada. Insistiu nisso com muita segurança. Por que teria essa convicção?
O delegado dirigiu-se à a escritora inglesa:
– O que a levou a pensar assim?
Depois de fuzilar-me com um olhar que pingava sangue, Águeda Christine respondeu:
– Elementar, uai! Eu vi o gerente abrir a porta do apartamento e Miguela estava lá dentro, morta. Raciocinei logo: foi assassinada com o quarto fechado. Reconheço que é uma hipótese sofisticada, inaceitável num país primitivo. Mas apostei nela porque, afinal, aqui estão reunidos escritores de livros policiais. E mesmo os escritores mais imbecis são mais espertos que a média das pessoas…
Reunindo coragem, decidi interrompê-la:
– Lembro que o senhor Georges Sim Et Non insinuou que a senhora odiava mortalmente dona Miguela por causa do sucesso que ela teve com a adaptação cinematográfica dos seus romances.
A escritora inglesa explodiu numa gargalhada pouco britânica, contorceu as mãos cheias de anéis e sacudiu negativamente a cabeça de cabelos azuis:
– Eu me recuso a responder a insinuações de um francês. O que um francês pode saber sobre cinema? Quem consegue assistir a um filme francês sem sair correndo antes do fim?
Depois de comemorar com um cacarejo a piada que fizera, a escritora da pérfida Albion continuou a falar:
– Este interrogatório estúrdio está me fazendo perder a elegância. Mas quem leu meus livros sabe que os interrogatórios ingleses transcorrem sempre em clima de alta civilidade. As pessoas vão sendo paulatinamente acusadas. As suspeitas ora convergem ora para um, ora para outro. Aí, de repente, quando o leitor acha que identificou o assassino, eu puxo o tapete. Aparece então o verdadeiro culpado.
Parou por uns segundos e girou um dedo apontando para todos os que estavam em redor da mesa, como se aquele dedo estivesse municiado. E continuou:
– Mas o que estamos vendo aqui? Seis escritores, um policial, um repórter e um português. O que têm em comum? Estão bêbados como bodes. Pergunto: o que se pode esperar de um trem desses?
Irritado, Aroeira deu um formidável murro de mão fechada na mesa:
– A senhora pode ser mais chique e coisa e tal, mas, no fundo, só quer tirar o corpo fora! Porém, se acha que vai escapar da cadeia porque no Brasil só os pobres vão em cana, está muito enganada!
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).