De vez em quando ainda faço umas viagens sem sair do sofá, pelas canais generalistas, e em certo domingo passei pela TVI, que comemorava os seus 31 anos com uma gala. Este tipo de eventos, só consigo ver em directo, e sem fazer rewind com o comando, talvez para me recordar de quando apenas havia canais generalistas, e de desfrutar dessa memória encantada do tempo real, em que tínhamos de mamar com a publicidade toda, acabando por sabê-la de cor, isto se não quiséssemos perder pitada daquilo que estivéssemos a ver.
Apanhei a gala quase no início. Fui ler a sinopse que dizia:
“O Casino Estoril é o palco escolhido para a grande Gala do trigésimo primeiro Aniversário da TVI, que será conduzida por Cristina Ferreira e Manuel Luís Goucha. Muitos dos rostos do canal subirão ao palco para momentos que prometem marcar para sempre a história da estação.”
Marcaram, mas não pela razão esperada.
Nesse directo, víamos uma espécie de espectáculo auto elogioso, (como é comum a todos os canais nestes eventos), que ia sustentando a ideia de glamour, palavra proferida muitas vezes pelos actores e jornalistas que desfilavam efectivamente pelo palco do Casino Estoril, sendo pagos para isso, suponho. Há mais glamour na secção de roupas do Continente, embora a Maya me desminta, certamente.
Sim, é um exagero.
A transmissão, que paulatinamente, começava a ter laivos de barbárie para quem tivesse de enfrentar o palco e consequentemente, a audiência ao vivo feita de si própria, começou a deixar-me interessado, mas é evidente que também se começou a apoderar de mim um certo ardor.
Há um efeito adverso sadomasoquista, do qual sou acometido por vezes, e que creio, todos temos, dependendo do objecto em questão e que mudará efetivamente de pessoa para pessoa.
No meu caso é a televisão a fonte de singela perversidade.
Há um estudo que diz que existem mais telespectadores a ver as novelas pelo ódio, que pela adoração. Vivemos uma época em que há estudos para tudo. Não sei se será verdade, mas naquele caso ajustava-se o princípio.
Também não sei muito bem explicar estes fenómenos (e há anos que faço auto-psicanálise), mas tenho uma noção clara do problema, admitindo-o (regra primordial para iniciar tratamento), embora seja verdade que só mergulhando no lodo, e dando por lá umas braçadas, é que ganhamos alguma autoridade para falar do pântano, e dos organismos que pululam nessa zona húmida.
Enfim, naquele espectáculo pouco entretido havia biodiversidade do melhor, como se esses organismos estivessem aos encontrões uns aos outros, nuns carrinhos de choque meio gastos, cuja viagem não parecia ter fim à vista, embora hoje, já se vislumbre melhor o destino e o fim anunciado da euforia perpétua (permitam-me a contradição), à qual estivemos sujeitos nas últimas décadas. Pelo menos é um fim, que já não se confunde com o meio.
Quando vemos estas transmissões, podemos achar que estamos naquelas salas de espelhos do jardim zoológico que aumentam e diminuem a nossa imagem, deformando-a, sendo que ela, já por si, pode ser uma caricatura. Muitas vezes, basta ter de dizer o que não pensamos e fazer o que não queremos durante a vida as vezes suficientes, fugindo à nossa verdade intrínseca, para acabarmos no psiquiatra, sendo essa sim, a nova normalidade tão estafada.
Se pensarmos assim, e aludindo aos espelhos-monstro, estamos dentro da pura semiótica, isto para a tentativa de elevação desta análise, não querendo, porém, torná-la pseudo-académica e arrogante.
Como conheço bastantes actores que estão no mercado, sei de antemão que a sua maioria não gosta de fazer figuras tristes, como as de domingo em prime-time. Tenho mesmo um amigo actor que, conhecendo uma boa parte dos colegas de profissão que por lá se arrastavam, recusa-se sempre ver este tipo de galas, muito menos a ir, sendo constantemente atacado à traição pelo triste e inoportuno sentimento da vergonha alheia.
Eu ainda julguei que as coisas más podiam ser boas, depois de ver o filme Ed Wood do Tim Burton, um filme genial por muitas razões, mas também porque transmitia a ideia de que o realizador e personagem do filme era sobretudo ingénuo, e isso aos olhos do realizador parecia interessante. Ed Wood é considerado o pior realizador de todos os tempos.
Quando o vi, parecia ser possível desenvolver actividade artística entre o lado cerebral e matemático de Stanley Kubrick e a idiotice enérgica do Ed Wood.
Anos depois vi um filme real do próprio e não foi fácil chegar ao fim, porque era mesmo mau.
A verdade é que se pode fazer um bom filme sobre um mau realizador, mas nunca um bom filme por um mau realizador.
Sem com isto querer comparar a gala com um filme mau, apenas faço uma analogia com certos critérios de qualidade. Não é que aqui fosse essa a situação, porque não havia efectivamente ingenuidade e pureza na execução do espectáculo como no olhar do Tim Burton sobre o Ed Wood, no sentido do princípio pós-moderno de que tudo o que é muito mau pode ser bom.
O fenómeno sadomasoquista explica melhor certas situações de angústia que, supostamente também são remixes de prazer, o que pode justificar a minha atenção à gala, como aquelas pessoas que vão à tourada na esperança, de ver o touro agredir o toureiro.
Acho é que a estação quis mesmo dar uns tiros aos jornalistas, mas também, se nos fixarmos na cara do director José Eduardo Moniz, podemos constatar que se assemelha cada vez mais a um velho samurai que perdeu a espada e a barba, e anda a norte de nenhum sul, ainda que lidere audiências, sempre confirmadas por audiometrias discutíveis pelo próprio sector.
Mas a vida é feita de acordos.
Eu aqui, não queria mal a ninguém, nem sei como é que isso seria possível.
Caírem? Não saberem o texto? Um incêndio no teleponto?
Bem, pior só mesmo pôr jornalistas a fazer de políticos de forma revisteira…
E não é que minutos depois o desejo se tornou “real”…
De um momento para o outro, apareceram seis jornalistas com péssimos textos, a fazer de pessoas que estão no Big Brother, que por acaso são os políticos líderes do momento e candidatos a primeiro-ministro. Políticos que alguns terão certamente de entrevistar no futuro.
Mas também basta o Araújo Pereira (RAP) querer, e consegue meter inversamente os políticos a fazer de jornalistas no programa dele à vontadex.
A televisão ainda é um prontuário que dá para tudo.
Aproveito a ocasião para dizer que o RAP está mesmo a ficar repetitivo, e cada vez mais parece imitar os trejeitos do Jon Stewart, no seu Daily Show da Comedy Central, de há mais de uma década, quando ainda parecia credível e fracturante fazer este tipo de programas. Agora parece que o americano voltou ao local do crime e não é certamente porque viu o RAP a traduzir Portugal para o pequeno ecrã.
Comecei a perceber paulatinamente que estava a ver um espelho da realidade ali a passar diante de mim e em directo.
Esfreguei as mãos.
Aquilo era demasiado real para ser uma encenação, onde é que já vai o tempo das encenações!
Não estamos a falar de uma gala deprimente encenada pelo Filipe Lá Féria, mas sim de outra coisa bem mais triste e soturna, sobretudo para os actores de profissão, não incluindo evidentemente os jornalistas, que similarmente tinham papeis atribuídos, mas para a área do Shakespeare e não da do Pulitzer.
Só faltava lá o Daniel Oliveira, que nessa semana tinha feito em directo um mea culpa, no Eixo do Mal, referindo-se à catástrofe do espectáculo da política em que nos encontrávamos, aludindo à proliferação de comentadores que analisavam os debates, que eram mais que as mães, matematicamente falando.
Dias depois, lá estava ele na SIC a exorcizar-se e… E a comentar.
Só agora o exorcismo?
O Paulo Salvador, jornalista e editor da TVI, também se retratou muito recentemente, enviando um artigo aqui para o PÁGINA UM, com um texto suicida para o jornalismo. Ainda assim bastante mais nobre e verdadeiro que a declaração inesperada e traiçoeira do tudólogo da SIC.
Estará alguma coisa a mudar? Não creio.
O mundo ainda precisa desta psicose colectiva para o seu desequilíbrio estável e para o seu normal funcionamento. Acho é que vai havendo menos dinheiro para a festarola e as dívidas vão-se acumulando. Há é muito Xanax e Prozac para suportar a ressaca. Como sempre, ganha a Big Pharma.
De certa forma todas as principais caras televisivas do canal andavam por lá, mas parecia que nenhum deles queria acreditar no momento.
Com o andamento da carruagem, parecia um comboio suburbano desnorteado a andar aos solavancos (cheia de ferrugem pelos vistos).
Por vezes o relógio faz partidas e transforma o ponteiro dos segundos em minutos e começava a ficar chato, mas imaginando que ninguém iria criticar aquilo, talvez o Cintra Torres no Correio da Manhã o fizesse, mas era no Correio da Manhã… E a fazê-lo, seria enquanto critico de televisão em que é difícil dar um tiro no próprio regimento. Decidi então investir um pouco mais, imbuído até de espirito de missão e cheguei ao fim da emissão. Agora só faltava escrever qualquer coisa para assinalar o momento. E eis-nos aqui.
O mais absurdo era, o som cacofónico vindo da plateia, estar sempre presente, num péssimo trabalho de sonoplastia, o que denunciava um certo desinteresse por aquilo que ia sucedendo em palco, que na verdade, e aí posso entender a audiência, era… Nada.
Ao menos escondessem esse som estridente que pouco acrescentava ao espectáculo. Parecia a FIL-Auto com o seu caos sonoro assumido.
Quando a câmara focava alguém, era inevitável essas pessoas conhecidas, esboçarem um sorriso televisivo Colgate, voltando depois à actividade social natural, na qual comiam, falavam e olhavam para os seus pequenos ecrãs tácteis.
Os textos não tinham interesse nem piada, já vi muito melhor noutras ocasiões (nos Globos de Ouro da SIC, por exemplo), e os actores lá iam fazendo o seu trabalho, debitando deixas, em conjunto com as outras caras conhecidas do canal, neste caso jornalistas.
Creio que os actores em Portugal têm uma qualidade inegável, tanto que faziam o seu trabalho com a dignidade possível para a ocasião.
O Eduardo Madeira e a Paula Neves, com um texto que envergonhava um doente em coma, esforçaram-se enormemente, já que foi na actuação dele que o público mais ignorou e bebeu champagne. Foi penoso verificar que literalmente ninguém lhes prestava atenção. Os inserts da plateia, revelavam essa situação sem pudor. Até parecia de propósito.
Considero o Eduardo Madeira um excelente cómico e intérprete, o que me fez ter vergonha alheia e perceber o meu amigo que citei há pouco. Não se pode dizer o mesmo dos jornalistas a quem foram atribuídas várias tarefas, como por exemplo, a de cómicos de serviço.
O mais degradante ainda, foi o facto de terem de fazer de políticos, como já atrás tinha referido, parecendo ser essas intromissões a cereja no topo do bolo estragado que nunca ninguém comeu.
A Sandra Felgueiras, a melhor ainda assim a cumprir a tarefa, fazia de Mariana Mortágua, usando para isso uma peruca semelhante ao cabelo liso e comprido que a política nos habituou. O jornalista desportivo e agora director Sousa Martins, fazia de líder do PCP, estando mesmo sem cabelo para interpretar o Paulo Raimundo… mas se nem o próprio Paulo sabe fazer de Raimundo!
Parecia, no entanto, que se vingava de uma prestação que o político, ainda jovem e com cabelo à CDS, teve nos anos 90, no programa da Cornélia, descoberto pela equipa do cómico oficial, RAP e exibido com algum desdém, uma semana antes, no seu programa dos domingos.
Dificilmente me lembro de uma charge tão má como esta dos jornalistas a tentar imitar políticos, mesmo contando com os piores sketches do Prédio do Vasco.
Havia uns que nem os mínimos faziam para se assemelharem aos originais. Ninguém se ria nesses supostos directos à falsa casa do Big Brother.
Fez o Big Brother, que está agora na grelha do canal, parecer um filme do Ingmar Bergman em comparação, e elevou o La Féria a Bob Wilson.
É assim que o mundo por comparação funciona, as coisas parecem sempre melhores do que aquilo que são.
Exemplo disso, foi o aparecimento da CMTV, que fez parecer os outros canais, obras de arte. Mas por pouco tempo.
Não percebo como é que canais tão grandes, para a dimensão do país, passam pelos pingos da chuva que por sinal… Escasseia.
Uma hora antes tinha assistido ao programa do RAP em que gozava com o líder do PS, porque tinha chorado no programa do Daniel Oliveira (director de conteúdos da SIC), programa esse, conhecido pela actividade lacrimal, que todos os portugueses já ouviram falar alguma vez, e que dura há décadas.
Mas será que os convidados não sabem ao que vão? Claro que sabem, mas chorar fica sempre bem, é catártico e depurador.
Ainda assim o Pedro Nuno Santos fazia melhor de Pedro Nuno Santos que o jornalista destacado pela direção para esse papel. Mas se este putativo primeiro-ministro chora assim tão facilmente, podemos prever uma epopeia de lágrimas numa eventual catástrofe sísmica, ou na eventualidade de outra visita da Troika, não nos deixando esse cenário muito seguros quanto à frieza necessária para combater tais hipotéticos teatros de operações. Será assim? Noutros tempos é que se exigia aos políticos mais capacidade de raciocínio e menos espectáculo. A mudança dos paradigmas também não é necessariamente sempre para pior, até porque isso seria absurdo, mas depois de ver jornalistas a fazerem de políticos sem qualquer possibilidade de humor, que havendo, até poderia suavizar a actuação, fiquei aturdido. Por outro lado, parecia ser um espelho bastante realista do nosso momento actual, em que a verdade levou um pontapé e foi dar uma volta ao bilhar grande.
Agora, quando vir esses jornalistas a debitarem a moral do costume envoltos em chroma key a falar da Palestina, não sei…
Ainda assim, nada supera as performances “covidianas” do Rodrigo Guedes de Carvalho nas noites informativas e poéticas da SIC por altura da pandemia.
Logo no início, o Goucha e o Cláudio Ramos fizeram uma brincadeira com uma conhecida música brasileira, em que cantavam e dançavam. Cantar e dançar? Teríamos de rever o dicionário.
Mas o mais incrível de tudo é que imaginamos que tenha havido ensaios. Ensaios? Abram novamente o dicionário. Foi um pesadelo.
Gostava de ver a cara dos criativos, quando conceberam o guião, a exultar de alegria com as ideias. Então naquela de pôr jornalistas a fazer de políticos, devem ter aberto uma garrafa de… Espumante.
Confrangedor também foi ver o director José Eduardo Moniz, que ia aparecendo no palco, a dizer umas piadas escritas, (o improviso parece ser proibido nestes eventos), para festejar e elogiar os 31 anos da estação. Convém lembrar que quando esta estação apareceu, ainda ligada à Igreja, um ano depois da SIC, ele era o director da RTP, encetando uma concorrência severa e desleal aos canais privados, sobretudo à SIC, com dinheiro publico, facto pelo qual foi bastante criticado. E agora quem diria, estava à frente do canal concorrente, a exultar os resultados e a liderança de audiências.
A memória em Portugal parece ser apenas coisa do canal com o mesmo nome, canal esse que ninguém deve ver, muito menos o José Eduardo.
Jornalistas a cantar e a anunciar bandas, jornalistas a dizer piadas, jornalistas a dançar, jornalistas sem responsabilidade a massacrar a arte da representação, deve ter sido um vexame para os actores, que, coitados, lá têm de andar de novela em novela a comer o pão que o Rangel amassou.
O desfile ia ficando cada vez mais grotesco, mas a Cristina Ferreira era a única que se ria, só que das próprias piadas, com um humor pouco refinado e requentado como é habitual, no meio de auto-elogios ao próprio evento, aludindo ao cuidado que tiveram na execução.
Qual execução? Estava tudo mal.
Os Anjos e os D´zrt, entre muitos outros, também animaram a festa, e era nesses momentos de música, com as bandas e os cantores em acção, em que não se ouvia o ruído suicida de fundo, que parecia um programa normal e fluído, tanto que os inserts mostravam pessoas a cantar com os artistas, a bater palmas e a rir que nem loucos sempre que a câmara os focava.
Este modelo de eventos televisivos, inventado pelos americanos, já teve melhores dias, mas como a falta de imaginação parece ser um dos atributos das funestas estações, nada de anormal então na ‘frente ocidental’.
A promiscuidade cada vez mais intensa entre o espectáculo e a política, com a contaminação daquilo que já foi o jornalismo, é que me parecem bastante preocupantes.
Ficamos à espera de uma análise mais detalhada do Daniel comentador, que muito terá a dizer sobre o assunto.
Dizem que temos milhões de anos de existência, mas cada vez estamos mais infantis, e agora é que parece mesmo que estamos a brincar com os dinossauros.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de ©Ruy Otero
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