Obscurantismo mais obscurantista não há. O Código dos Contratos Públicos já tem 15 anos, mas ainda perdura um número indeterminado de avenças e outras relações comerciais que fogem a todas as regras da transparência e livre concorrência, perpetuando-se no tempo, sem sequer caírem no ‘radar’ do Portal Base. O PÁGINA UM descobriu uma estranha avença entre a sociedade de advogados BAS – onde ainda tem assento Lacerda Machado, o amigo íntimo de António Costa no epicentro da Operação Influencer – e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que começou no dia 17 de Fevereiro de… 1994. Ou seja, fez há dias 30 anos. Ninguém no sector do Estado sabe dizer quantos contratos desta natureza ainda existem, nem a razão para persistirem, porque as renovações nem sequer são obrigatórias.
Há um número indeterminado de contratos públicos de prestação de serviços teoricamente vitalícios na Administração Públicas, escondidos até do Portal Base, mas ninguém sabe quais os montantes nem sequer se existe uma fundamentação legal para se perpetuarem. São contratos ‘invisíveis’, completamente fora do ‘radar’ da fiscalização pública e até do Tribunal de Contas.
Esta conclusão é obtida depois do PÁGINA UM ter identificado uma prestação de serviços jurídicos entre a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e a sociedade de advogados BAS que perdura desde 1994, mas sem que essa relação contratual seja assumida através de um contrato público formal divulgado no Portal Base.
Foi apenas após um pedido expresso do PÁGINA UM à ACSS para consultar os eventuais contratos de serviços jurídicos prestados pela BAS, recorrendo à Lei do Acessos aos Documentos Administrativos (desta vez sem necessidade de apresentar intimação em tribunal administrativo) que foi assumido que aquela sociedade de advogados tem vindo a beneficiar de sucessivas renovações de “um contrato de avença para acompanhamento judicial dos processos em que este Instituto [ACSS] é parte, celebrado em 17.02.1992 [17 de Fevereiro de 1994] e que foi objecto de adicionais (nos anos de 1998 e 2008) e de adendas sucessivas que prorrogam o prazo de execução”.
Esta situação consta de uma informação de Janeiro passado escrita por uma técnica superior da ACSS, consultado pelo PÁGINA UM, com vista à autorização da despesa e aprovação da minuta de adenda da renovação deste patrocínio judiciário – e que tem permitido, por exemplo, à ACSS manter em ‘despique’ jurídico o legítimo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, mesmo depois de o PÁGINA UM ter conseguido vitórias sucessivas, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Recorde-se que é nas instalações da sociedade de advogados BAS que se mantém, ainda hoje, o endereço profissional de Diogo Lacerda Machado, o amigo de António Costa que está no epicentro da Operações Influencer. Isto apesar de a BAS ter negado já em 2016 não ter relações com Lacerda Machado, quando foram noticiados contratos ganhos a entidades associadas ao Ministério da Saúde, mas a ligação ao escritório manter-se quando implodiu a Operação Influencer. Desde Novembro do ano passado, as ligações formais mantêm-se de pedra e cal, tanto mais que o registo do endereço não é um pro forma; é uma obrigação imposta pela Ordem dos Advogados, tanto aos advogados como às sociedades.
Para justificar esta avença – que em 2023 atingiu os 54.000 euros, pagos mensalmente –, a ACSS argumenta com uma alegada “jurisprudência do Tribunal de Contas” que determinará que “os contratos celebrados ao abrigo do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de junho [anterior ao actual Código dos Contratos Públicos de 2008], não estão sujeitos a qualquer limite de vigência”.
Mas existe um outro problema com estes ‘contratos perpétuos’, para além da evidente violação do princípio da livre concorrência: na verdade, estas prestações de serviços estarão a ser ocultados na actual plataforma da contratação pública, o Portal Base.
De acordo com a informação da ACSS, e outros documentos consultados, a renovação deste contrato com a BAS, através de um parecer prévio vinculativo do Governo, tem sido sistematicamente deferido tacitamente – ou seja, autorizado por ausência de resposta – e depois também tacitamente aprovado pela Secretaria de Estado da Saúde. E nada disto é depois remetido para o Portal Base.
Sobre esta matéria, a resposta do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) – a entidade responsável pela gestão do Portal Base – é completamente dúbia e completamente evasiva. Apesar de questionado pelo PÁGINA UM sobre se o caso concreto das renovações sucessivas da avença com a BASA deveria ou não ser inserido naquela plataforma pública, aquele instituto diz apenas que o actual Código dos Contratos Públicos “não se aplica a prorrogações, expressas ou tácitas” em procedimentos que tenham sido iniciados “previamente à data de entrada em vigor daquele”, ou seja, em 2008.
E acrescentando ainda que “o Portal dos Contratos Públicos constitui um espaço multifuncional destinado a disponibilizar a informação sobre a formação e a execução dos contratos públicos sujeitos às regras de formação ou execução”, pelo que “assim, todos os contratos celebrados após a entrada em vigor do CCP devem ser registados no Portal BASE”, não respondendo explicitamente se aqueles que se prolonguem por adendas artificiosas não devem ser considerados novos contratos. Saliente-se que são proibidos ‘contratos perpétuos’ no actual Código dos Contratos Públicos e limites de vigências.
Além de tudo isto, ninguém sabe quantos contratos, além daquele detectado pelo PÁGINA UM, andam aí a circular sem sequer serem ‘apanhado no radar’ do Portal Base, tanto mais que o IMPIC também não respondeu se tinha conhecimento de casos similares.
O PÁGINA UM sabe também que, até final de 2020, existia forma de conhecer, pelo menos no caso concreto das prestações de serviços jurídicos, quais os contratos estabelecidos pela Administração Pública, uma vez que estavam sujeitos ao parecer prévio do Centro de Competências Jurídicas do Estado (JurisAPP), que começou a funcionar em 2018.
Contudo, mesmo para o curto período em que havia necessidade de parecer prévio, a directora da JurisAPP, Virgínia Silva, admite que entre 2018 e 2020 muitos contratos de avença jurídica “possam não ter sido enviadas a parecer prévio [as] renovações de avenças nos casos em que a entidade contratante” tenha feita outra interpretação sobre a obrigatoriedade, “escapando tal facto ao controlo ou escrutínio deste Centro”.
Ou seja, obscurantismo mais obscurantista não há. O PÁGINA UM detectou um contrato de uma longa vida de 30 anos com outras tantas renovações. Pode ser só este? Claro que sim; é uma hipótese com um certo grau de probabilidade. Ou podem ser milhares; também com um certo grau de probabilidade. Mas, neste caso, misturando a lei das probabilidades com o empirismo tende a acreditar-se que os contratos sem limite temporal (e bem escondidos) sejam tantos quantas as baratas que realmente existem num imundo compartimento cheio de mobiliário quando vemos uma a passear-se descontraidamente pelo soalho, e a pisamos. Percepcionamos, nessa altura, que centenas, senão milhares, nos miram pelas frinchas. Talvez seja mesmo aquilo que sucede, mas com uma diferença: ninguém quer saber quantas são nem parece estar interessado em ‘fumigar’ estes contratos ‘vitalícios’.
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