Viajar a alta velocidade na vida deve deixar para trás a carne dos ossos, porquanto, de novo, aqui se apresentar este menino franzino, com as rugas da camisa a caírem nas esquinas dos cotovelos de forma leve – como se, em verdade, nem estivesse vestido, já assim andasse, nu, braços e pernas a soltarem-se no caminho.
Os cabelos firmes e grisalhos agarram-se com força, a ele. A sua barba rala e rija é que denuncia os hábitos matinais segurando-lhes os despertares da insónia, mas os círculos em volta dos olhos atestam a geometria que lhe navega as noites por galáxias distantes e nebulosas roxas, entidades de outras dimensões e sussurros a baralharem-se nos gritos internos do seu desespero.
Estacou frente a mim na paragem de autocarro do Bolhão, eram três da manhã. Mediu-me com atenção para decidir se depositaria em mim o que recolheu na última viagem, até se convencer a sentar-se ao meu lado para conversar sobre o estado, de então, do Conde de Ferreira – entenda-se, o hospital, não o sangue azul escorraçado pela populaça ao fim de umas noites de prevaricação de regras sagradas no burgo.
O mundo que ele me mostra é dos jogos dos impossíveis. Nada há de mais agonizante do que forçar alguém a ver o Preço Certo na televisão com companheiros que babam, alienados – e ele, ali, com tanta fúria que saiu para ir comprar uma televisão só para ele, porque quer ver muito os documentários. Aqueles, sabes, de Física, do Universo, da matéria negra, mares nunca dantes navegados que, esses sim, esses sim, ah! Se pudéssemos erguer caravela de chapas rebitadas a caminho de Saturno, só para ver aqueles anéis a girar de perto.
Mas sabes, comprei a televisão, que era boa, e a doutora que lá anda pegou e afiambrou-se a ela. Já viste isto? Quer-se dizer, fui falar com a auxiliar, queixei-me, e ela vira-se para mim a dizer que eu podia ficar com a pequena, a grande, fica para a doutora…
Ora já viste? Não é de os carbonizar? É ou não é? Diz-me. Que farias tu? Que eu vejo que tu sabes ouvir e que sabes do que falo. Que farias tu? Olha que eu vou carbonizá-los!
Porque, sabes, a maçã podre, não apodrece a boa, mas também não a torna melhor! É, ou não é? Ora ouve bem: a maçã boa, não apodrece a boa… Mas também não a torna mellhor! É que é mesmo assim, sabes?
Não sei. Nem sei. Já viste o estado de coisas? E depois… é sempre os mesmos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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