RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

O admirável povo de Meimão

por Rui Araújo // Fevereiro 29, 2024


Categoria: Exame

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— É pá, Meimão sempre foi uma aldeia à parte. (Ri-se) O nosso concelho, nós dizemos Penamacor, mas Penamacor não queria nunca nada com Meimão. Eles tinham medo do Meimão. A gente com Meimão não se mete. Sempre foi gente à parte. Sempre! Não sei, foi… foi o facto de estarmos isolados muito tempo das outras aldeias que fez de nós pessoas diferentes…

Mário Cameira

— A vida… Tínhamos junta de vacas, tínhamos cabras e semeava-se por ali a vinha… E, agora, está tudo cheio de mato.

Maria da Glória Martins

— Foi tudo a caminho de França. A França é que deu as casas novas que há. Veio tudo quase da França. A França deu muita alma a Portugal. A Portugal e a muitas coisas. É verdade.

— E o senhor foi alguma vez ao estrangeiro?

— Nunca.

— E Lisboa?

— Nunca lá saí nem entrei. (Ri-se)

Ti Domingos

— Éramos umas mourinhas a trabalhar. E cantávamos muito…

— Com 9 ou 10 anos a trabalhar. A sachar…

— Eu é que começava as cantigas. Não era, Maria?

— Pois.

— Começava as cantigas e ela depois ajudava-me. (Ri-se).

— O que é que cantava?

— Ai… Era a «Rita, arregaça a saia…»

— Como é que é?

— Rita, arregaça a saia, Rita, arregaça-a bem… Não era?

Lurdes e Maria

— Esta aldeia para mim é tudo. É tudo. É porque foi aqui que eu nasci, que eu cresci. Tenho os meus amigos. Tenho, aqui, a minha família. E tenho, aqui, muitas raízes, muitas, muitas, muitas recordações. E essas recordações estão gravadas até ao infinito. Não há… Não há palavras.

Arménio Pires


Beira Baixa. 

Terra Quente.

Meimão fica ao fundo de um vale, nos contrafortes da Serra da Malcata.

Há 40 ou 50 anos, este lugar desterrado arribou ou conseguiu tirar alento da força ou dos dons dos homens e da Fé… em Deus e no padre, José Miguel. E muita coisa, então, mudou…

A aldeia tem 238 habitantes. Hoje. Aquando do primeiro censo realizado em Portugal (1864), havia aqui 389 fregueses ou, por outros números, 193 varões e 196 fêmeas.

Ao cimo da escadaria, no campanário, Maria de Fátima Andrade, 74 anos bem contados. Quando o sacristão morreu, ela tomou mão a isto. Pôs-se a tocar o sino sem ninguém a ter ensinado. Tal e qual.

Meimão, nos contrafortes da Serra da Malcata. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

— Há regras. Há regras porque o povo sabe quando há um funeral, morre gente, e a gente dá sinais durante as 24 horas que há o velório do defunto. Todo o povo sabe. Está tudo descansado. Quando há um fogo, é doutra maneira: é o sino ao rebate. Quando, por exemplo, há a missa no dia de semana, toca-se uma vez. E nos domingos, tocava-se três. E era o sinal da missa. Só que eu só venho uma vez para não subir tanta vez isto…

E mudou radicalmente as regras, mas há razões que o Céu entende. As badaladas, aqui, são frenéticas e, como se não bastasse, duram uma carrada de tempo…

Mas vamos ao essencial: as curas milagrosas do Padre José Miguel.

— Era um homem que protegia os pobres. E, então, vinham doentes e abalavam bons. E ele não dizia mais nada. Só dizia assim: — Tende Fé, ide comungar, recebei o Senhor que ele está cá na Eucaristia por nós. E, então, havia muitas pessoas que vinham doentes, não sei o mal delas, mas elas, umas vinham de sua maneira, e, então, ele só dizia: – Estai em paz.  E ide em paz. Mais nada. Uma pancadinha às vezes na cabeça, outras nada. — confessa-me Maria de Fátima Andrade.

 Vinham camionetas e mais camionetas…

— Vinha muita gente. Era, olhe… Quando era nos domingos nem aqui cabiam no adro, nos dois lados do adro, nem na igreja. Era tudo atacadinho… E alguns nem chegavam a falar para ele. Mas ele, eu conheci-o eu andava na escola quando ele veio, e sempre o conheci igual. Ele não dizia nada a ninguém. Contavam-lhe as coisas, ele só dizia assim:  «Tende Fé e ide em paz!» Não dizia mais nada.

— São quase horas de tocar o sino…

— Pois são. Pois são… Já estão. Já está na hora. E é assim… (Ri-se)

Vai fazer em Dezembro 20 anos que o Padre José Miguel Garcia Pereira faleceu. Tinha 89 anos.

O seu cadáver insepulto está, agora, dentro deste caixão, exposto no memorial do Soito.

É a chamada para a missa na Igreja Matriz de São Salvador.

A maioria do povo emigrou, já lá vão muitos anos,  sobretudo para terras de França.

A história de Meimão começa muitos séculos antes noutro vale…

Mosteiro de Santa Maria de Salzedas.

Tarouca.

Esta fachada data de finais do século XVIII, mas a construção do mosteiro masculino da Ordem de Cister é iniciada muito antes, mais exactamente em 1168 (com o patrocínio de Teresa Afonso, a segunda mulher de Egas Moniz).

O túmulo dela está, aliás, embutido desde 1789 numa parede da passagem lateral Norte.

A igreja foi sagrada em 1225.

O mosteiro foi ampliado nos séculos XVII e XVIII. 

Hoje, é neste monumento nacional, que ainda serve de lugar de culto, que um dos nomes maiores da pintura quinhentista portuguesa deixou a sua marca: Vasco Fernandes, vulgarmente designado por Grão Vasco.

É o autor, designadamente, de um retábulo  4 painéis com as figuras de Santo Antão, Santa Catarina, Santa Luzia e São Sebastião, pintados entre 1511 e 1515.

A grandiosidade do edifício (apesar das profundas alterações que sofreu e não foram poucas) contrasta com a modéstia apregoada nos primeiros tempos já que, como rezava a Regra de São Bento, “aos monges incumbia o cultivo das terras, o trabalho de mãos e a guarda de rebanhos”.

Os fiéis, compadecidos com o trabalho dos monges, deixavam-lhes os  bens em testamento, ou doavam-lhes propriedades. Faz parte da devoção…

As primeiras referências a Meimão datam de 1168, mas há testamentos lavrados em 1170.

O Mosteiro de Salzedas também tinha padroado sobre aquele lugar, situado a quase 200 quilómetros mais a norte.

— A aldeia de Meimão era uma das propriedades mais longínquas que eles tinham. Isso também justificará como no século XV Meimão tenha deixado de ser da sua posse, mas esta ordem religiosa tinha uma preocupação de intervenção no território através da constituição de povoações, de vilas, de casais e das suas famosas granjas que eram quintas, unidades agrícolas que permitiam o sustento não só da própria Ordem como também dos moradores ou rendeiros que trabalhavam para essa Ordem. — explica o historiador Nuno Resende da Universidade do Porto.

O padroeiro da paróquia é São Salvador, aliás Jesus Cristo, Salvador do Mundo.

E é muito possível que os monges cistercienses tenham trazido a devoção a São Salvador para Meimão.

No século XVIII a aldeia passa a pertencer ao Rei de Portugal.

Igreja Matriz de São Salvador.

Hoje, é dia do Senhor.

Os fiéis (incluindo alguns emigrantes e as beatas do costume) aninharam-se na cochia. Os mais ágeis — todos homens — treparam ao coro.

Celebração da missa dominical.

O padre Bruno Lopes é natural de Castanheira, Trancoso. Tem 29 anos. É pároco há quatro. Tantos quanto as paróquias que tem ao seu cuidado desde a ordenação.

Estes cristãos fazem os possíveis por se abeirarem de Deus ou do Céu. As ladainhas, decididamente, não chegam…

Fim da eucaristia.

Meimão é — e sempre foi ou quase — terra de emigração: muitos abalaram para França, Luxemburgo, Alemanha, Itália e Américas.

A emigração custou muita lágrima, mas para a imensa maioria valeu a pena.

Na Travessa Eanes é dia do arraial de Arménio Pires, um homem  (nascido e criado na aldeia) alegre e bonacheirão, que acabou de chegar. de Lyon.

Emigrar era preciso… (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

— Eu decidi vir ver a minha mãe porque com 92 anos não posso esperar muito tempo. Mas a vida é assim…

Arménio tem 63 anos. 38 de França.. Tem a mãe num lar perto de Meimão.

A travessa Eanes faz, hoje, de palco para a representação da vida, mas mesmo aqui as coisas mudaram. E muito…

— As pessoas são mais… Como dizer… Não têm aquele à vontade como antigamente. Antigamente, era muito mais agradável e muito mais… muito mais alegre a vida aqui. — conta Arménio.

— Agora, nós vimos cá uma vez, um mês por ano, mas é muito diferente.

— E havia mais gente…

— E havia mais gente. Aqui, na rua onde estamos, que é a antiga rua onde vivia o avô da minha esposa, antigamente a rua era cheia. As casas eram todas habitadas. Hoje, está uma tia, que é esta senhora que está aqui ao lado, a tia da minha esposa, mais um primo que mora ali, mais ninguém… Duas pessoas durante o ano. Agora, chegámos. Vai haver 50…

A única mocidade que há, agora, na aldeia está na travessa. A escola de Meimão encerrou há uma data de tempo…

Arménio Pires: um homem alegre e bonacheirão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Metemos conversa com Lisete Pires, a esposa de Arménio.

— Vir cá, uma pessoa vem. Exacto… Quando a gente estiver na reforma, se vier cá um mês, dois meses ou três meses, mas vir para ficar, viver sempre, não. Tenho as minhas filhas em França. Tenhos os netos e isso também faz com que a gente… goste dos dois lados.

— Mas o seu marido gostava de voltar um dia…

— Exacto. Ele… Para ele é tudo. Ele aqui é… está no céu. Quando está com os amigos… ele aqui está… é… está… Como é que se diz? Está rico de… Como é que é? De sentimentos. Rico de sentimentos. Ele adora isto. Adora. Eu também adoro. Eu adoro. Eu adoro. Eu também adoro isto. Isto aqui… A gente, aqui, é… Já viu como é? Mas… vir para cá definitivo, não!

Ao cabo de uma hora, logo após o almoço, é a vez de desligar o rádio do carro e de escutar a jovem cantora L-ZA ou Elsa dos Santos (residente no departamento francês 91), que a casa tem de reserva.

— Cantora de RAP, de R&B (Rhythm and Blues), Pop, o que desejar… (Ri-se)

— Queres fazer a tua profissão?

— Sim. Eu quero fazer isso toda a minha vida.

— A música para ti é o quê?

— A música para mim é toda a minha vida. É um sentido. É o que me faz avançar na vida. É a única coisa que eu sei fazer bem na minha vida.

— E Portugal para ti representa o quê?

— Portugal para mim é o quê? É as minhas raízes, é a terra dos meus avós, da minha família. Até o meu pais nasceu em Lisboa. Para mim, se eu não vier a Portugal cada ano não é normal. É preciso que eu volte todos os anos. É algo que tenho de fazer…

Hoje não há espaço para a tristeza na travessa Eanes.

Daqui a nada, estão todos a cantar. É o ritual. A alegria confunde-se com o esquecimento.

Meimão é o torrão nativo de Mário Cameira.
(Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Meimão é o torrão nativo ou o berço de Mário Cameira. 63 anos. 30 de França.

Hoje, o ex-emigrante (pai de 3 filhos) mata o tempo com a mecânica e a horta.

O primo Zé Manel, 59 anos cumpridos no dia de Natal, acompanhou-o como um velho amigo até aqui acima.

É preciso abrir regos com o sacho, arrancar batatas, sachar feijão frade e regar as alfaces (apesar de a aldeia estar entre duas barragens, não há água de regadio!)…

Não há que ver. Metemos conversa.

— A minha vida começou de jovem. Aos 10 anos, fui para o seminário. Fui para os Combonianos para Viseu pois naquela altura não havia hipótese de estudar aqui na zona. Não havia colégio, não havia nada, pronto. E a gente tinha que… que… fiz-me à vida com 10 anos. 10 anos. Os meus pais em França e eu aqui sozinho. Foi um bocado difícil ao princípio. Aquilo havia assim umas regras, uma disciplina que a gente não estávamos habituados a ela, não é? A gente… garoto quer… quer é brincadeira. Mas agora, agora, ao relembrar esses tempos, percebo que mudaram a minha vida de forma positiva. O que sou… O que sou agora também devo muito a esse tempo…

Em França, Mário Cameira lutou por uma vida melhor. Não lhe faltava coragem, fé e sonhos. E o seu instinto nunca o enganou. Desiluções, nunca as teve. Mas um dia assistiu a uma tragédia que jamais esquecerá.

25 de Julho de 2000.

O Concorde despenhou-se perto do aeroporto de Roissy. (Foto a partir de imagem de Mário Cameira)

— Concorde estava a arder mesmo antes de descolar. Foi a própria torre de controlo do aeroporto Charles de Gaulle que avisou o piloto, mas era tarde demais para abortar a manobra de descolagem… — conta Mário Cameira. 

Os detalhes.

— A gente estava quase a largar o trabalho. Era por volta das 16:40, mais ou menos. Quando lá chegámos, aquilo estava tudo em chamas. Não é? Aquilo… estava lá um hotel e o hotel já nem existia. E pronto. Ali, não houve sobreviventes. Não podia ser que aquilo… Foi a história mais dramática. Para mim, foi a mais dramática da minha vida, pronto, porque foram centenas… E aquilo era tudo reformados. Era gente reformada, alemães que queriam fazer uma viagem a Nova Iorque. E, portanto, acho que foram 100 pessoas mais três pessoas que estavam no hotel e que morreram também. É que eles tiveram ali um fim muito triste. Aquilo para as famílias foi terrível…

A morte é a morte, em qualquer lugar…

E a memória colectiva é tenaz. Tanto para os calvários como para os desígnios milagrosos do destino…

3 de Abril de 1811.

3ª invasão francesa. Batalha do Gravato.

— Houve aqui uma batalha no Gravato, aqui no Sabugal. Em 1811 houve aqui uma batalha no Sabugal. Passaram ali por aquela zona da Ponte da Pedra. Chama-se Ponte da Pedra. E havia lá familiares da minha mulher. Lá, quando viram aquelas tropas, tiveram medo. Fugiram, mas esqueceram-se de uma menina, uma garota. (Ri-se) E os franceses quando viram lá a garota a chorar, coitadinha… acho que lhe deram até uma maçã e perguntaram pelos pais, mas a menina não percebia nada de francês, claro, não pôde explicar. Isso foi a história que chegou até nós. — narra Mário Cameira.

A paisagem é deslumbrante.

E, ali ao fundo do caminho velho de pedra, Forninhos, um paraíso abandonado ou suspenso, que deu vida a Meimão.

Depois da quinta de Forninhos não havia mais nada. Só serra e mais serra: pinho, carvalho, figueira, castanheiro, oliveira e sobreiro.

Antigamente, havia aqui gente e festa rija.

No Carnaval, os tocadores de concertina davam a volta ao forno do lugar e à rua dos vizinhos. Percorriam a cantar as casas dos seis moradores. Eram uma família pegada do cimo ao fundo. É assim mesmo.

Esta terra dava de tudo: trigo, centeio, batata, milho, feijão…

Restam as ruínas que o tempo e a natureza ainda não cobriram.

E resta ainda, pelo sim, pelo não, a lembrança dos velhos…

— Tive quatro filhas. Nasceram lá todas nos Forninhos naquela casinha que tem o telhado…

— E a senhora nasceu lá com a sua irmã?

— Eu nasci lá com a minha irmã, mas foi mais cá para baixo. 

Rua do Cruzeiro, esquina da Travessa das Andorinhas.

Uma manhã destas.

— Nós somos cinco irmãos. Nenhum aprendeu a ler porque não havia cá escola. E ó depois estávamos na quinta, ainda pior. — diz uma.

— Claro. — acrescenta a outra.

— Ó depois começaram… é que fizeram cá uma escola, que eu já me lembro de a fazerem. E começaram a ir à escola…

— Obrigavam-nos!

— Ninguém sabia de ler.

— Eu tenho quatro filhas. Uma não sabe nada. E a outra começou a tirar de cabeça, a tirar de cabeça, e ali tirando já sabe alguma coisa.

— Porque é que a aldeia morreu?

— A aldeia morreu porque uns morreram. Outros, ficaram velhos como nós. Ó depois…

Outras vidas. E outros tempos, decididamente.

A memória é tenaz por estas bandas.

Insistimos com as manas.

— Éramos seis moradores. Uns, tinham seis ou sete. Outros tinham… Estava lá um que tinha 10 filhos ou 12.

— Era o Zé Pedreiro.

— O Zé Pedreiro. Eram 12 filhos.

— Eram 12?

— Eram. E, agora, já só são quatro. Já morreu tudo.

— Eu contava 10…

— E depois começou tudo a desaparecer.

— Só contava 10, eu.

— Não. As pequeninas, tu não as conheceste…

— Ah…

—Era a Ana e a Amélia, que era a nossa mãe-madrinha.

— Ah, então era.

— Era.

— Essas, então, não as conto. Eu só conto 10 irmãos.

— É assim.

— Nasceram lá, viveram.

— Nós também.

— Sempre a trabalhar lá. Era uma vida…

O senhor Domingos Mendes Vaz, mais conhecido por Ti Domingos ou Domingos Pesetas.
(Foto: Rui Araújo)

Existências que têm realmente que se lhe diga.
Domingos Vaz, mais conhecido por Domingos Pesetas, faz 100 anos no dia 7 de Dezembro.

É o homem mais velho que vive na aldeia. Toda a vida foi pastor.

— Quando fui para pastor tinha oito anos. Já contei. E as cabras ainda passavam de 150. Mas 150 sempre eram certas. E ó depois com a criação, às vezes eram 200… E o que passava. Mas naquele tempo havia lobos. (Ri-se) Olhe que uma vez a mim mataram-me 14.

Não queremos saber de desgraças.

Meimão era um povo isolado, esquecido e pobre.

Freguesia de Meimão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Era terra de agricultores e de pastores. Foi terra de milagres.

Gente humilde, honrada, alegre. E severa, quando é preciso…

E havia muito mais gente do que hoje.

— Oi, oi, oi. Aqui, chegou a estar mais de 300 ou 400 pessoas. Hoje, são umas 200 e tal. Têm morrido. E… E não há quase garotos nem nada cá. Antigamente… quando a minha filha andou na escola eram mais de 30 garotos e garotas. Ai, 30 e talvez 40. Chegaram a estar cá 3 professoras. Agora, não há cá nada. Vinha cá uma médica… Agora, por causa destas coisas também não vem cá.

— Para onde é que as pessoas foram?

— Morreram. Ah, e outras foram para a França. O Meimão foi quase tudo para a França. Agora, vêm de férias uma temporada… — conclui Ti Domingos, sorridente.

Meimão: o retrato é pungente. E é ao mesmo tempo assaz genuíno.

A aldeia não parou de definhar.

A lembrança dos velhos é peremptória.

— Hoje, só penso na morte! Não penso noutra coisa. (Ri-se) Eu não escapo. (Ri-se) Eu não escapo. Ela tem de vir. E mais hoje ou mais amanhã ela vem cá. Custa-me a morrer porque a gente tem muitas dores, que ela faz sempre a gente passar por muitas dores. Mas Nosso Senhor me levasse, que eu faço… dores. (Chora)

— O que é a morte para si?

— Ah… O que é a morte? Eu sei lá o que é a morte. Ficamos como os passarinhos. É verdade. Não ficamos cá ninguém, Senhor. Uns mais velhos, outros mais novos… Há palavras cruas que têm a força de um testamento.

É preciso matar o tempo… (Foto: Rui Araújo)

Soito.

Lar da Santa Casa da Misericórdia.

Arménio Pires já não vê a mãe há dois anos por causa da pandemia.

ARMÉNIO — Eu tenho de tirar a máscara, que ela… que ela já não me conhece.

— Tire um bocadinho. Tire um bocadinho… — propõe o empregado.

ARMÉNIO — Então, quem sou eu? Quem eu sou?

DONA ODETE — O Fernando…

ARMÉNIO — Não!

DONA ODETE — O Fernando.

ARMÉNIO — Não.

DONA ODETE — José.

ARMÉNIO — Não.

DONA ODETE —

ARMÉNIO — Então, quem sou eu?

DONA ODETE — …

ARMÉNIO – Então já não me conhece?

DONA ODETE – António.

ARMÉNIO — Não.

DONA ODETE — Zé.

ARMÉNIO — Sou o Arménio. (Choram os dois.)

Mais prosa para quê?

Meimão.

Damos conta que domingo é o dia da procissão (motorizada por causa da pandemia de Covid-19).

Logo a seguir à missa, a pick-up do presidente da junta arranca. Ninguém faz caso da ladainha dos altifalantes. O que conta é São Salvador, o padroeiro da aldeia.

O resto é gente fabulosa, uma serra alheada do mundo e carradas de granito encardido pela torreira, que ainda havemos de recordar um dia (com ou sem amargura, pouco importa).


NOTA:

Reportagem emitida originalmente na TVI, em Agosto de 2021 [VER AQUI].

O vídeo de LZ-A pode ser visionado AQUI.


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