RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Duas mulheres de Montalvão, a terra que não quer morrer

por Rui Araújo // Março 8, 2024


Categoria: Exame

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Logo de manhã cedo, Tchá Mourata, amparada na bengala, desce a rua íngreme da farmácia com afã. É dia de ir buscar os remédios. O corpo fingido ou embrulhado no xaile negro não permite imaginar a façanha. A lentidão e a ansiedade são mais do que compreensíveis. A senhora vai fazer 94 anos e não desarma. A caminhada é mais uma forma de enganar os castigos do tempo e os abalos do presente.

Meto conversa com a anciã à saída da farmácia. Vale-me a condição de jornalista e, sobretudo, a presença do seu primo, Rogério Belo, o novo  presidente da Junta de Montalvão.

— Ai, mas, então, eu não trago a máscara. Valha-me Nossa Senhora…

Tchá Mourata.
(Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Depois das cogitações religiosas e de a deixar aconchegar conscienciosamente o lenço negro, pergunto-lhe, sem pressas, se esta terra é boa para os velhos.

— Isso é. Não há mas é aqui quase ninguém. Vou meter a máscara. É uma terra boa e nós somos da geração maior que cá há. Dos Zabumbas, que é a geração do meu primo. Sabe… tudo gente boa. Está-me a filmar…

— É uma terra boa para os velhos?

— É, sim senhor. A nossa terra é saudável, a nossa vila…

— E o que é que falta?

— O que é que falta? Falta-nos, aqui, muita coisa. Não temos cá um transporte. Não temos cá nada!

— Antigamente havia mais gente cá?

—  Na nossa vila não havia casas que chegassem! Agora, está tudo de sobra…

Com ou sem palavras de despeito, feitas as contas, nada consegue indefinidamente resistir ao tempo.

Montalvão chegou a ter câmara municipal, escola, hospital, postos da GNR e da Guarda Fiscal, cadeia, centro comercial, armeiro, ervanária, ferreiro, sapateiro, barbeiro, alfaiates, latoeiro, costureira, matadouro, 12 tabernas, seis salsicharias, quatro talhos, etc.

(Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Hoje, resta uma padaria, um lagar, uma mercearia (só na rua Direita havia quatro antigamente), dois ou três cafés e o posto da farmácia Gavião (três manhãs por semana).

Tchá Mourata cumpriu-se sem queixumes apesar de ter perdido o marido e três filhos. Desde então, o sino só tem repenicado para os outros.

O silêncio que se aninhou nestas casas despovoadas e apagou as memórias é penoso (para não dizer amargo!).

Montalvão é uma aldeia de gente humilde, trabalhadora e honrada, que vivia da enxada e do gado. E do contrabando, quando era preciso. Em 1940 havia, aqui, 2.672 fregueses. A aldeia perdeu, entretanto, 34,5% da população entre os dois últimos censos. Em 2011 havia 442 fregueses. Hoje, já só há 290.

Tchá Mourata volta a enfiar o lenço negro na cabeça e desata a rir. Cada qual parte para seu lado. Vamos calados como aldeões que se conhecem há uma data de tempo.

(Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Desço ao Chão da Porta de Baixo. Olho em redor. Batem as duas. A povoação parece adormecida. Não se vê vivalma.

Tchá Graça lá acaba por aparecer, afogueada. Tem 80 anos, mas teima em caminhar a passos lestos. Decididos. A sua figura é a de uma mulher bonacheirona, alegre e aberta. De mais a mais, a compostura é nobre. Sorri-me.

— Venho aqui para a horta para não estar todo o dia lá em casa. E, assim, corto…

Só paramos depois de ela apressar o passo e desandar à esquerda. É o canto das oliveiras. Fico a ouvir.

— Se eu me levantasse e não saísse de casa chegava a pontos que… que sei lá o que eu era. E, assim, não… Gosto de mexer na terra. Gosto de ver as coisas a nascer. Gosto de as colher quando elas são bonitas. Gosto. (RI-SE) É assim: gosto!

Tchá Graça.
(Foto: Imagem capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

Tchá Graça é uma moira de trabalho, mas, aqui, enche os olhos e a alma de paz.

E hoje, calha ser dia de apanhar azeitona. Há 19 oliveiras carregadas. Dou uma ajuda do cimo do escadote, a fazer de valente, mas atento à perícia da senhora.

— Qual era o seu sonho quando era gaiata?

— A gente dantes não tinha, se calhar, nem sonhávamos… Sonhávamos logo com o que tinhamos de ser porque eu até podia ter ido para estudar, que a minha professora foi pedir ao meu pai que me levava para casa dela para eu estudar lá e que não me levava nada de pensão. Mas eu tinha dois irmãos mais velhos. Que não podia estudar, não podia. O meu pai disse logo que não podia fazer isso porque tinha lá dois filhos homens e não tinham ido a estudar. Não podia mandar a filha. E, pronto, fiquei assim…

Insisto.

— Sei lá, talvez ser professora. Pois. É assim. Mas também gostei do que fiz. Também gostei do que fiz, sim. Fazia roupinhas. Fazia… Tinha uma máquina de tricotar, fazia malhas. Também gostei do que fiz…

— Levou muitas reguadas…

— Ai, não.

— Tem cara disso…

— Não. Não. Não. Não levei. Era uma menina muito bem comportadinha!

Ela desata a rir à gargalhada. A alegria que põe no que diz é contagiante.

(Foto: Rui Araújo)

— E ainda hoje sei as lições de cor…

Recita-me algumas páginas dos livros da 3ª e da 4ª classes.

— Quer mais?

Sorrio-lhe. Tchá Graça, a imensidade de um sonho de antanho numa aldeia exígua.

— É uma mulher feliz?

 À minha maneira, sou. Sim. Sim. Sou.

Tchá Graça sabe o que custa a vida. Tenho uma profunda admiração por esta gente. Desta feita, não me atrevo a dizer mais nada para não ser importuno. E é uma dor de alma ver esta terra alentejana a morrer.

Na aldeia o apetite é madrugador como a cotovia, dizia Aquilino Ribeiro. Não é tarde nem é cedo. Partimos (antes de uma trovoada desabar sobre Montalvão). Esta noite, o meu parceiro e eu jantamos no Regata (Alpalhão) ou no Colmeia (Nisa).


NOTA:

Reportagem emitida originalmente na TVI, em Dezembro de 2021 [VER AQUI].


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