história natural

A palavra é o mais belo dos templos

a group of ants on a table

por Clara Pinto Correia // Março 9, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
Represados clarões, cromáticas vesânias
No limbo onde esperais a luz que vos baptize

As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

Camilo Pessanha

POEMA FINAL

in CLEPSYDRA (1920)


No início do século XVII, com a febre da microscopia que marcou o arranque da Revolução Científica, até Galileu inverteu temporariamente o seu telescópio para tentar ver aquilo que, até aí, só o semi-deus que viajou com os Argonautas era capaz de ver. Quem é que, ainda hoje, consegue resistir ao sonho de trazer guardada dentro dos olhos a visão mágica de Lynceus, aquela que mais ninguém alguma vez teve, que mais ninguém alguma vez terá, e que inspirou a aventura japonesa dos Pokemons, onde pululam criaturas tornadas semi-divinas por um único poder especial?

Mesmo nos nossos dias, ninguém deixa de reconhecer que a capacidade de visão do lince é assombrosa, e indiscutivelmente rara entre todos os animais. Sabe-se agora que esta visão tem uma grande ajuda na audição fora de série que lhe proporcionam os tufos de pêlos no cimo das orelhas, orientando-o para o mínimo ruído nocturno a toda a sua volta[1]. Mas os olhos, aqueles olhos, aquela visão do lince que lhe permite localizar um rato no escuro a 76 metros de distância, isso leva a palma a tudo o resto. É um tecido de espelho organizado por trás dos olhos que reflecte a luz na retina, activando os receptores pela segunda vez e permitindo-lhe ver na sombra como se estivesse a nascer o dia.

a lynx sitting on a rock in front of a stone wall

Desde o princípio dos tempos que toda a gente sabe isto.

A primeira Academia de Microscopistas do mundo, fundada em Roma em 1603 pelo Duque Frederiggo Cessi que era um apreciador endinheirado daquele Universo Perfeito Escondido Debaixo da Lente de que então tanto se falava, chamava-se ACADEMIA DEI LINCEI, em homenagem à visão semi-divina do animal em causa. A Visão Superior do Lince é desde sempre tão bem conhecida que muitos textos sagrados herdados do Paganismo já debatiam se Aquele que Vê Por Nós fôra criado pelas Forças do Bem ou pelos Esbirros do Mal[2]. Em 1300 AC, quando Jasão arrancou com os Argonautas na sua Incrível Viagem em busca do Velo de Ouro, levava consigo a bordo um companheiro muito especial. Foi o piloto do seu barco. Chamava-se Lynceus.

Lynceus era um semi-deus.

Esperava-se deste semi-deus que visse por toda a tripulação o caminho preciso, aquele que nenhuma criatura normal alguma vez poderia ver.

Este detalhe, quase sempre ignorado, é de uma importância enorme na construção de toda a narrativa.

Na mitologia grega, é de regra definir assim um semi-deus: trata-se de uma criatura igual a todas as criaturas que vivem em seu redor[3], com um único poder mágico que a distingue[4]. No caso de Lynceus, esse poder mágico era a capacidade de ver o que mais ninguém via. O marinheiro mágico via através das paredes, das árvores, da pele, e do chão. Há passagens das proezas dos Argonautas em que o semi-deus parece ter a mesma visão-RAIOX que tem o Superman e descobre tesouros escondidos debaixo da rocha, outras em que se revela capaz de ver no escuro, e ainda outras em que é evidentemente versado em geologia, e até em descobrir minas de ouro[5]. Na mitologia popular, Lynceus é aquele que consegue, até, ver o Céu e o Inferno.

person holding eyeglasses

Até consegue ver o Futuro.

Houve uma vez em que conseguiu contar, de uma só vez e a uma distância de mais de duzentos quilómetros, o número de barcos de uma frota acabada de sair de Cartago.

Lynceus devia o seu olhar divinalmente penetrante à grande coroa de cristais que lhe rodeava toda a pupila, cobrindo praticamente toda a extensão da íris.

Olhos de cristal.

Amigos, seriamente – por acaso já algum lince vos olhou de frente nos olhos?

Eu ia a seguir uma equipa de Ecologia Vegetal, no terceiro ano do meu curso, logo no início da campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. Estávamos a esquadrinhar o Matagal Mediterrânico ali para os lados da Serra de Candeeiros, e no regresso eu escreveria uma Grande Reportagem para o defunto semanário O JORNAL, onde costumava publicar os meus textos na altura.

Foi quando se deu aquela epifania.

Fiquem sabendo que uma criatura ameaçada de extinção pode muito bem não deixar por isso de ser uma criatura mágica.

Esta era, certamente, uma criatura com Poderes.

Talvez noutros tempos a queimassem nas fogueiras.

Quem sabe.

É tudo muito confuso, porque aquilo foi tudo muito brutal.

blue eye photo

Um malandrão pardo e lesto, traçado de pintas pretas, que, na opinião avisada dos assistentes, não podia ter mais de oito meses, saltou de trás de um monte de giestas coladas ao chão pelo vento, e travou às quatro patas a olhar fixamente para mim com o recorte majestático dos seus olhos perfeitamente dourados. Depois, no que na irrealidade do nosso sobressalto nos pareceu menos de uma fracção de segundo, escolheu o curso da fuga pela esquerda, no meio do rolar de uns quantos fragmentos de xisto e de outros tantos gritos veementes de pegas rabudas, combinados com os berros roucos das gralhas de bico vermelho.  

Como é que podem acontecer coisas destas a uma pessoa normal?

Ainda por cima, mais tarde um grande amigo que trabalha exactamente em protecção de espécies em extinção disse-me que os casos de contacto olhos nos olhos com um lince são extraordinariamente raros.

Para já, os linces, em si mesmo, são extraordinariamente raros. Não é costume a pessoa andar para aí a tropeçar em animais que estão em vias de extinção.

Além disso, os linces são dos animais mais evasivos deste mundo. Um biólogo dedicado pode passar anos a palmilhar os seus territórios, ouvir os seus vocalizos, encontrar os seus excrementos, descobrir as suas pegadas – e tudo isto sem nunca chegar a ver o animal que estuda.

Quanto a olhar um ser humano nos olhos…[6]

Disse-me aquilo em voz baixa, sem olhar para mim, como se já estivesse com medo de alguma espécie de contágio.

E eu não disse nada.

Olhos de cristal, por favor.

Quarenta e dois anos mais tarde, ainda não encontrei as palavras que entretanto precisava de ter descoberto para escrever um parágrafo inteiro que fosse capaz de falar do arrepio que correu pela minha pele quando foi tocada por aqueles dois olhos tão cintilantes e tão arrogantes, e sem qualquer espécie de dúvida tão vindos de um qualquer outro planeta, que rasgavam o focinho de uma cria silenciosa que podia fazer de nós o que muito bem lhe apetecesse e que estava perfeitamente consciente disso mesmo.

a cat walking on a rock

Nunca consegui domesticar essas tais palavras porque elas são as palavras perigosas do meu caminho, sempre a fervilhar num caldeirão de poção mágica onde a cultura e a ciência ousam constantemente formar uma só linguagem, e a seguir vir borbulhar à superfície num tecido linguístico bordado de uma forma que toda a gente consegue gozar. E eu, mesmo sendo especializada desde há décadas em Comunicação de Ciência, fui tão condicionada como todos os meus colegas para nunca me aventurar dentro do Poço sem Fundo ligado ao País das Maravilhas onde vale tudo, porque é lá dentro que os conhecimentos se combinam por inteiro sem terem medo de nada. É o Poço Psicadélico onde a ciência se casa com a cultura para se cantar na linguagem misteriosa da Lucy in The Sky With Diamonds. É onde o Dodó arbitra uma corrida que não faz sentido vigiada pela Lagarta que está sempre agarrada ao narguilé. E se, enquanto cultores da língua nós tememos aquilo que até a Alice prefere evitar, é porque fomos criados desde pequeninos para termos medo dos mundos que escapam ao nosso controlo.

Falta-nos a coragem que é a Mãe do Caos, de onde tudo veio, e onde tudo nos faz dar um passo de prudência para trás.

Podemos ser todos muito cultos ou muito galardoados cientificamente. E no entanto até nessa condição ficaremos sempre aquém, porque sem o ímpeto da visão combinada que aliou Lynceus aos Argonautas, nem toda a sabedoria do mundo nos ajudará a dar aquele grande passo em frente que nos falta há séculos de visão enevoada.

Mas, no momento em que combinarmos as duas forças e de repente deixarmos de ter medo, vamos viver uma espécie nova de mudança de paradigma em que não haverá nada que não passe a ser possível. Nunca mais ficaremos inertes a desperdiçar os anos com as nossas hesitações. Quando nos libertarmos dessa inércia, conseguiremos soltar conjuntamente os nossos risos. E será então, nesse preciso segundo, no encanto dessa fusão mais universal do que todas as outras, que o nosso pensamento inteiro começará a rodopiar como ainda nunca tinha rodopiado antes.

hands painting

A diferença que vai descer sobre as nossas vidas será tão pequena que quase não nos aperceberemos de que está um milagre a atravessar-se no nosso caminho.

Mas claro que estará mesmo. 

E será assim que, muitos anos mais tarde, se formos capazes de nunca o esquecermos, vindo de parte nenhuma acabará por voltar até nós o olhar do lince, esse olhar do semi-deus inexplicável que nos rouba as palavras, para nos recompensar de repente com a visão distante, renovada, e limpa, de uma galáxia mais rica do que todas as outras, nascida de propósito para que possamos ser tão felizes como a primeira luz da primeira manhã.

Exactamente aquela primeira manhã em ficou escrito que Deus viu que tudo eram bom.

E será nessa altura que saberemos, com toda a certeza.

Fomos abençoados.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] O lince é um predador exclusivamente nocturno. Passa o dia a dormir, ou a tomar conta das crias perto  do esconderijo que tende a utilizar repetidamente ano após ano. Esta exclusividade da caça nocturna é uma das razões que faz com que seja tão difícil observá-lo no seu habitat natural.

[2]Vê o que mais ninguém consegue ver” prestava-se a ser uma criação do Mal. “Vê por nós” parece, claramente, uma criação do Bem. Escolham o vosso lado.

[3] Como por exemplo nós, meros mortais.

[4] Estão a ver os Pokemons? Então pronto. Está explicada a sua entrada em cena.

[5] A propósito, também há uma altura em que Lynceus mata Polux devido a uma questão amorosa. Não se sabe onde andava Castor nessa altura.

[6] Subentende-se: “Achas que o lince é parvo ou quê? Ficar a olhar em vez de fugir? Olha-m’esta!”


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