É qualquer coisa como uma calma natural – não diria paz, diria harmonia. O motor segue, trabalhando, naquele compasso próprio, e ronronado, mais rápido do que nós poderíamos andar, talvez mais seguro, dependendo apenas da capacidade de ele, o carro, curvar, como se quer e para onde se quer, mesmo se a chuva martela o seu fino tecto sem piedade.
Mãos calejadas de bate-chapas. E a forma como, numa curva, se desfaz a manobra, largando o volante na pressão exacta para deslizar pelas mãos, e pelos calos, de uma forma suave, macia, meiga, num shush arrastado, parecendo um corpo a esfregar-se nos lençóis ainda quentes da manhã.
Tanto assim é que, aliás, estamos sentados, a bordo da “viatura”, veículo, nave, como que argonautas percorrendo o mundo. E o mundo se move lá fora, tanto que estamos, aliás, sentados, a bordo, gestos suaves nos pedais, pressão suave no volante. E o mundo se abre à chuva, lá fora, e o sol tímido de Primavera surge e nos cega pelo vidro, ali, enquanto estamos, aliás, sentados.
Sentados.
Sentados.
E o mundo é que se move lá fora.
Cheiro a óleo de motor numa cave escura, panos esfarrapados tingidos de negro, tinir de martelos na distância, chapa amolgada, a queda de uma peça, metal, metal, metal. Calos nas mãos, e a pressão exacta que se exerce, com paciência, na condução, metade do caminho nem por nós é feito, mas pelo mundo que se move lá fora, forças cinéticas que nos levam, alguns a segurarem o leme, outros só à boleia.
A acidez industrial que nos penetra as narinas, e sabemos que o mundo se constrói assim, de forma suja, veloz, violenta (mas a pressão exacta e a suavidade do couro nos calos das mãos, shush, shush).
Fatos macacos azuis, semanas de segundas a sábados. Domingos desmaiados num sofá, que se esmaga debaixo de ossos, que vibraram em demasia em cada martelada. Sestas com sonhos nebulosos, e a pressão da água a ferver em radiadores que se preparam para declarar a sua irritação. Velas, faíscas, ar, combustível.
A forma de condução diz tudo de uma pessoa (já viste, já viste?) – se tem o sangue quente de novos imortais ou a frieza conformada de velhos curvados (que força é essa, que força é essa que trazes nos braços?).
A espacialidade, a navegação, a rota imaginária. O olhar de soslaio para um retrovisor na esquerda, na direita (em cima?) e o não parar e o parar também.
Há homens que nascem para conduzir uma vida inteira (eterna), conduzem e engatam mudanças, quebram ciclos com o pé na embraiagem, travam ao de leve, gerindo a poupança de calços, nariz no ar a medir a máquina, ouvidos afilados a auscultar os sussurros.
Se tirais a máquina ao homem, que conduz, é vê-lo lá, desmaiado a um domingo eterno, durante a sesta, a premir ligeiramente o pé direito no acelerador e a mão (e os calos) a engatar a mudança, o volante a deslizar na curva de saída da via rápida, e o horizonte agora tão longe, porque a máquina se vai sem eles (e agora? E agora?).
Agora, é montar puzzles, cismar, sem saber se envelhece, porque parou, ou parou porque envelhece.
Como podemos nós envelhecer se ainda nos lembramos tão bem de ter sangue quente de jovem imortal, mas dentes que caem, gengivas que retraem, calos que amolecem, joelhos que petrificam se sentados.
Sentados.
Sentados.
Ajustes na máquina. Calibragem, nariz no ar, a medir, ouvidos afilados, a auscultar. Reserva de combustível tem impurezas, contamina o circuito e tolhe os movimentos.
Fatos macacos azuis.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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