Nascida numa família abastada de Castelo de Paiva, Eulália, a quem carinhosamente chamavam Menina Lalita, tinha das janelas de casa a vista para os quadros que compunham o seu mundo. O mundo da família. O jardim de cameleiras na frente da edifício. Dali se ia à vila. O mundo dos trabalhadores da casa, nas traseiras. Uma colmeia de sorrisos tristes. O mundo dos trabalhadores rurais. Estendido pelos montes a perder de vista. O mundo dos que iam e vinham. Estradas, caminhos, carreiros. Os mineiros de Pejão. Os cantoneiros de onde quer que a estrada tivesse parado. Saíam ao domingo à tarde e regressavam à sexta-feira à noite. Lalita mal os conseguia distinguir, de tal modo vinham camuflados pelo pó das minas e pelo negro do alcatrão que espalhavam de sol a sol. Daquela janela, via também os caixeiros viajantes que abasteciam as lojas da vila. E via as mulheres e meninas a equilibrar pesados fardos de lenha à cabeça. De vez em quando, a motorizada do Sr. Padre acelerava por ali fora para ir acudir a uma alma aflita. O carro do pai acudia ao corpo.
O Dr. Brandão, que os mais velhos ainda tratavam por doutorzinho, tinha herdado do avô e do pai a quinta, o consultório, os empregados e o respeito dos habitantes da vila. Só dali saíra para estudar em Coimbra. Pai de três filhas e um filho, rapidamente traçou para cada um deles um destino em conformidade com a tradição da família. O filho estudaria medicina e assumiria o consultório. As duas filhas mais velhas casariam com rapazes de boas famílias. A mais nova iria para freira. O ideal seria ter um filho padre, mas Deus só lhe tinha dado um varão.
Foi neste mundo que Lalita cresceu. A mãe ensinou às meninas as primeiras letras, a tocar piano e a bordar. O Ruizito andava no colégio. Era rapaz. As irmãs, Antónia e Francisca, casaram assim que a idade o permitiu. Já Lalita não mostrava qualquer vontade de desposar Cristo. Preferia a casa. Tímida. Cada vez mais solitária. Empalidecia a cada dia. Dava grandes preocupações aos pais.
⎼ Se a metes no convento, ainda morre por lá. ⎼ dizia a mãe.
E o pai nem se atrevia a falar no assunto. Nem queria pensar. Não bastava não ter uma religiosa a zelar pela sua alma, ainda tinha de ficar com uma filha solteirona.
O Ruizinho, depois de sete anos em Coimbra que lhe pareceram sete dias, regressou. O diploma é que ficou por lá.
⎼ Sabe lá o paizinho como aquilo está. Uma pessoa quer estudar e não consegue. Não é como no seu tempo.
A casa passou a ter outro fulgor. Amigos não lhe faltavam. Até porque o Ruizinho não trouxe a licenciatura, mas trouxe um gira-discos. E as janelas já não serviam só para deixar entrar o mundo. Agora Lalita passeava-se à volta da casa para ouvir as músicas que escorriam lá de dentro e inundavam o jardim. Ouvia cantar em línguas e ritmos desconhecidos. Mas só quando o pai não estava, claro está. Não se conformava, o pobre homem.
Entre os novos visitantes da quinta apareceu um tal de José António. O filho do Brasileiro, um comerciante da vila que tinha feito fortuna no Brasil e regressado há pouco. A fartura do pai não se refletia no corpo do filho. Baixo, demasiado magro, pálido. Tinha sido ele a razão do regresso. O Brasileiro buscava os bons ares e águas da terra natal para ver se o rapaz arrebitava.
Com um olhar doce e os modos de um príncipe, José António rapidamente cativou o coração de Lalita. Não era bem o que o Dr. tinha imaginado. Mas entre um casamento com quem pudesse cuidar dela e ficar para tia, não hesitou. O casamento fez-se sem a presença de Ruizinho, entretanto chamado para a guerra. Moçambique. Os dias da família passavam entre a ânsia e o receio de receber notícias daquele fim de mundo. Lalita tinha o conforto de o seu José António não ter saúde para ir à guerra. Preocupava-a tanto o irmão. Até que um dia chegou uma carta.
– É da tropa! – anunciou a empregada.
A mãe desmaiou antes mesmo de a receber. Lalita correu a telefonar ao pai a pedir que viesse. José António agarrou o envelope. Abriu-o lentamente. Leu.
– É para mim. – disse – Vou para a Guiné.
E a família repetiu o caminho até Lisboa, a despedida, o embarque. Um último beijo, um adeus ao longe já sem a certeza de a quem estavam a acenar.
O vazio da espera entre cartas. A mensagem de Natal na RTP. Não mais de três segundos, mas valiam por uma vida inteira.
O Ruizinho voltou. Mas já não ligava o gira-discos. O seu mundo era agora o fundo da garrafa de aguardente. Acendia um cigarro com o outro e tinha umas mudanças de humor que ninguém compreendia. Ia pela vila, bebendo um copito aqui e outro ali. Arranjando desacatos.
–É para apontar. – pedia.
E os comerciantes envergonhados por cobrar ao Doutorzinho que não merecia tal sorte. E o Dr. envergonhado, a mandar um homem de confiança à procura das dívidas do filho.
Na Guiné, José António cumpriu o seu tempo de serviço na cozinha. Não tinha corpo para combater. E o pai, mesmo ao longe, garantia que não lhe faltava lá nada. Se alguém precisava de um relógio, de uns sapatos civis ou de uma qualquer bugiganga, era só encomendar ao Silva. De tal forma a vida lhe corria bem por lá que não quis regressar. Gostava do clima e das frutas tropicais que lhe recordavam o Brasil da infância. Gostava das pessoas. Gostava da liberdade. Percebeu que Paiva nunca seria o lugar dele. Mas sentia falta de Lalita. Escreveu-lhe a contar que tinha comprado uma casa e estava a montar uma loja. Já todos se tinham habituado a recorrer aos seus préstimos quando precisavam do que quer que fosse. Falou-lhe de um país maravilhoso. De gente boa. Explicou-lhe que a guerra era longe dali. No mato. Muito, muito longe. Em Mansoa não havia qualquer perigo. Para ele ser feliz só lá lhe faltava ela.
De todos os homens que partiram para o Ultramar, José António seria o último que os paivenses imaginariam singrar por lá.
– Fez-se homem! – exclamavam com orgulho no rapaz da terra, de quem antes diziam ser um fraca figura que nem para comer servia quanto mais para trabalhar.
E, perante a incredulidade de todos, Lalita fez prontamente as malas e preparou-se para partir. O seu lugar era ao lado do marido, dizia. Foi num estado de atordoamento que deixou o seu mundo e rumou ao aeroporto de Lisboa. Viu pela primeira vez um avião. Entrou aterrorizada no bicho que a devorou e a depositou num lugar onde os montes não eram verdes. Pensou que teria andado por ali incêndio. Apanhou o voo de ligação do Sal para Bissau. Fez a viagem a pensar como sobreviveriam os donos daquelas quintas e pinhais queimados.
Chegou finalmente ao destino. A terra muito vermelha lembrou-lhe que ali havia uma guerra. Teve medo. Muito medo. E se o José António não a viesse buscar? E se lhe tivesse acontecido alguma coisa desde a última carta? Mas veio. Quase não o reconhecia. Mais cheio, com um bigode farfalhudo, cigarro na mão. O olhar doce e o sorriso franco com que a conquistou. Reparou que usava calções. Riu-se. Nunca tinha imaginado vê-lo assim.
A viagem entre a capital e Mansoa fez-se num carro emprestado por um amigo. Lalita contou a José António sobre o incêndio na Ilha do Sal. Conhecendo-lhe a bondade e inocência e receando que ela ficasse a remoer sobre como sobreviviam as pessoas numa terra tão pobre, explicou-lhe que no outro lado da encosta a ilha era muito verde. Que era ali que vivia a maior parte da população e que o que viu ardido era apenas uma pequena área.
– África é muito grande e muito rica, meu amor!
Lalita estranhou a paisagem. Não era assim que imaginava África. Perguntou-lhe pelas girafas, pelos elefantes, pelos leões… e ele, sempre pronto a esclarecê-la, explicou que estavam mais para o interior.
– Lá no mato.
-E a guerra?
-Também. Lá no mato.
– E o mato é longe daqui?
– Ah, sim. Muito longe. Às vezes ouve-se um bocadinho quando vento está de lá para cá. Mas é muito longe.
Foi a primeira vez que Lalita andou num descapotável. E também a primeira em que sentiu que poderia vir a ter de destapar os ombros em público. Um calor infernal.
– Chegámos!
– Chegámos?
A vila não era de todo o que esperava. Três ruas. O marido ia relatando o que via: o clube, os correios, a igreja, o mercado, a escola, lá adiante o restaurante e virando ali o quartel. A casa, a loja. Estava dececionada, mas não queria que ele percebesse. Decidiu que seria feliz ali.
O Silva era agora o dono do maior estabelecimento comercial da terra. A pequena loja anexa à casa estava cheia de mercadoria até ao teto e fazia sucesso. Colchas pesadas a imitar pele de tigre, tapetes com pavões, garrafas de whisky . Predominavam os motivos orientais: nas toalhas de mesa e de banho, pijamas bordados, serviços de café e chá. Loiça muito fina. Dragões alados em relevo. Os soldados acumulavam tudo isto como podiam. Debaixo das camas. Dentro das gavetas das secretárias. E sonhavam com as férias.
Lalita garantia que nas suas encomendas o marido não se esquecia de mandar vir tela e linhas para os seus bordados. Bordava camélias, rosas, paisagens com montanhas verdejantes. Bordava o mundo em que vivia no interior da casa de que pouco saiu nos anos que ali passou. Nunca aprendeu crioulo. Não tinha jeito para línguas, dizia. O marido fazia a ligação aos empregados e acompanhava-a nas raras saídas. Iam ao cinema. Aos domingos, a missa foi substituída por um almoço no restaurante do Simões e um gelado em Bissau. Lalita era feliz assim.
Mas quando o sol se punha, ouvia tiros. Não lhe pareciam assim tão longe como José António lhe dito que o mato ficava.
– Tens razão. – confirmou – Estes tiros são aqui perto. Os homens, à noite, vão aos coelhos.
E ela cheia de pena de o seu José António não se ajeitar com a espingarda. Tinha saudades do coelho em vinho verde tinto que a cozinheira fazia quando o paizinho ia à caça.
– Não lhes podes comprar um? – pedia com o ar de criança que o deixava sempre desarmado.
– Podia, sim, Lalita, mas os homens comem tão mal no quartel que até tenho dó.
– Coitados. Deixa-os estar. – dizia conformada.
E o ar da noite no rosto. O cheiro do coelho bravo estufado, do arroz no forno e da regueifa quente a entrar pelas narinas. As mangueiras e os cajueiros a libertarem o odor de pinheiros, ulmeiros e castanheiros. Os mineiros e cantoneiros enfarruscados a entrar pelo mato adentro.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.