A socialista Isilda Gomes quis, o município sonhou e as comemorações do centenário da cidade de Portimão estão a avançar com um custo de 910 mil euros. Tudo sem concurso público, e atropelando as mais elementares normas de transparência e de livre concorrência no criativo e competitivo mundo cultural. Alegando ser a única entidade capaz de executar a programação para os 100 anos da cidade, a autarquia de Portimão celebrou um contrato por ajuste directo com a cooperativa algarvia Lavrar o Mar, fundada e liderada pelo italiano Giacomo Scalisi, e para contornar a abertura de um concurso público invocou uma norma de excepção do Código dos Contratos Públicos apenas usada para a compra de uma obra de arte ou a aquisição de um simples espectáculo. Além disso, a edilidade acaba por confessar que Giacomo Scalisi já está a prestar serviços desde Outubro do ano passado, embora o contrato só tenha sido celebrado quatro meses depois.
Um chorudo ajuste directo, sem concorrência, de mão-beijada. Para programar eventos culturais do primeiro centenário da cidade de Portimão, a autarquia local contratou a cooperativa algarvia Lavrar o Mar, presidida pelo encenador italiano Giacomo Scalisi, por um valor de 740 mil euros, que ascende a 910 mil euros com IVA incluído. O contrato celebrado no final de Fevereiro, e divulgado no início da semana passada, invoca um falso argumento previsto pelo Código dos Contratos Públicos, para um ajuste directo desta natureza, porque equipara a programação e gestão de 38 eventos culturais e festivos – que se iniciaram no passado mês, e se prolongam até ao final do presente ano – à aquisição (compra) de obra de arte, contratação de um artista ou de um espectáculo.
De acordo com o registo inserido no Portal Base – que omite a proposta da Lavrar o Mar, apesar de se salientar “fazer parte integrante deste contrato” –, a decisão de contratar por ajuste directo a cooperativa sediada em Aljezur, e criada em 2014 por Giacomo Scalisi e Madalena Victorino, ocorreu em 6 de Dezembro do ano passado, invocando-se critérios materiais para contornar a abertura de um concurso público, ademais tendo em conta o elevado montante em causa.
O uso de ajustes directos para a “criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico” costuma ser uma prática banal e legal, embora discutível, mas aquilo que, no caso do centenário da cidade de Portimão, está em causa não é a mera aquisição de espectáculos ou a contratação de artistas, mas sim a “criação e execução de projecto artístico” com a duração de 397 dias.
De acordo com o programa já disponível, apenas dois dos espectáculos são produzidos pela Lavrar o Mar: o primeiro, em Outubro, é de Scalisi; e o outro será um espectáculo que combina dança e música da autoria da bailarina e coreógrafa Madalena Victorino, co-diectora artística da cooperativa. Dos restantes eventos, que decorrem entre Fevereiro e Dezembro de 2024, encontram-se concertos, espectáculos circenses, exposições e outros eventos com a produção executiva ou organização por outras entidades, que foram programados pela cooperativa a partir do ajuste directo.
Em respostas a questões colocadas pelo PÁGINA UM, o município liderado por Isilda Gomes, que dirige a autarquia há mais de uma década, limitou-se basicamente a reafirmar a fundamentação invocada no contrato bem como o objecto do concurso: “o desenho e operacionalização de um programa de comemorações” do centenário da cidade.
Na verdade, ninguém parece esconder que a função da Lavrar o Mar nos eventos associados às comemorações é a de programação. Ainda hoje, o diariOnline Região Sul, anunciava “o primeiro espetáculo da programação artística criada e apresentada pela Lavrar o Mar Cooperativa Cultural para assinalar esta importante efeméride [centenário da cidade], com diversos momentos a decorrer até ao final do ano, numa parceria estabelecida com o Município de Portimão”. O espectáculo nada tem a ver com a cooperativa, uma vez que tem “a produção executiva da Unnica Arts”, conforme revela o jornal algarvio. E, obviamente, não se trata de uma parceria, mas sim de uma prestação de serviços.
O próprio município não esconde ao PÁGINA UM que a Lavrar o Mar tem funções de programador e de gestor, e que tudo foi antecipadamente negociado com o director artístico Giacomo Scalisi, o que imediatamente deveria retirar a possibilidade de se invocar o ajuste directo por critério material para justificar um ajuste directo de 910 mil euros.
Segundo a autarquia de Portimão, “todos os encargos inerentes à execução do projecto que venha a ser aprovado serão da responsabilidade da entidade a contratar”, sendo acompanhadas pelo município através de reuniões regulares com o diretor artístico da Lavrar o Mar, e pela “apresentação de relatórios e memorandos escritos”. Ou seja, uma mera prestação de serviços que dificilmente se enquadra nos critérios materiais de criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico.
A autarquia de Portimão defende que a escolha da Lavrar do Mar teve como pressupostos “o desenho e operacionalização de um programa de comemorações [que] exige que o mesmo seja acompanhado artisticamente por uma entidade de reconhecida competência no domínio da programação artística, visando assegurar a articulação entre os vários setores da produção e o acompanhamento de públicos em coerência com o programa artístico a conceber”, e também a necessidade de que a entidade escolhida possuísse “um conhecimento profundo não só de programação, mas também das companhias e artistas que possam vir a integrar o programa das Comemorações do centenário da Cidade de forma a potenciarem as interações artísticas e formativas entre os artistas e os públicos”.
Mesmo estando em causa a eventual violação do Código dos Contratos Públicos – e a eventual fiscalização do ajuste directo pelo Tribunal de Conta pode vir a declarar mesmo ilegalidades e nulidades –, o município de Portimão insiste ter sido esta a melhor opção, embora tal seja difícil de provar quando se trata de um adjudicatário escolhido a dedo, sem concorrência.
Fonte oficial do município disse ainda ao PÁGINA UM que “considerando que Giácomo Scalisi aceitou pensar connosco o passado e desenhar num programa artístico, o futuro cultural para a cidade, através das festividades do seu centenário (…), afigura-se-nos que a [única] entidade que poderá colaborar, com valor acrescentado, face a outras eventuais opções, na conceção e operacionalização do projecto artístico de comemorações declinando-o através de um planeamento adequado num conjunto de tarefas de conceção, pré-produção e produção que lhe caberá, depois, coordenar, será a entidade Lavrar o Mar”, concluindo que, desse modo, o “serviço pretendido apenas pode ser confiado a esta entidade”.
A autarquia liderada por Isilda Gomes até admite que a Lavrar o Mar começou a desenvolver o projecto artístico para as comemorações em Outubro do ano passado, ou seja, quatro meses antes da assinatura do contrato por ajuste directo, algo que constitui uma outra evidente ilegalidade.
Antes deste ‘jackpot‘ de 910 mil euros, o contrato com entidade pública de valor mais elevado que a cooperativa Lavrar o Mar tinha obtido foi um do município de Odemira, em 2018, no valor de cerca de 112 mil euros (IVA incluído), relativo à “aquisição de serviço de espectáculos e workshops pedagógicos”.
Para o município de Portimão, este ajuste directo corresponde ao quarto maior contrato de sempre feito sem concurso. O maior ajuste directo foi adjudicado em 2011 para a construção da nova escola EB 2,3 na zona da Bemposta, no valor de quase cinco milhões de euros. O segundo maior, efectuado em 2010, no valor de 4,3 milhões de euros, destinou-se à “Ampliação e beneficiação do Centro Escolar do Pontal”. O terceiro maior ajuste directo, em 2018, foi efectuado com a EDP, para o “fornecimento de energia eléctrica para as instalações alimentadas em MT, BTE, BTN e BTN – Iluminação Pública”, no montante de 756 mil euros.
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