Dois dias depois da primeira notícia do PÁGINA UM, a Câmara Municipal de Portimão, liderada pela socialista Isilda Gomes, apagou o registo original do Portal Base sobre o ajuste directo para programação das comemorações do centenário da cidade, e criou um novo, acrescentando-lhe o caderno de encargos. Com isto, fez-se mais luz sobre a polémica e irregular escolha do italiano Giacomo Scalisi para programar as comemorações dos 100 anos da cidade algarvia: além da ausência de fundamentação adequada para evitar um concurso público, o caderno de encargos para um contrato de 910 mil euros é um chorrilho de banalidades que nem sequer defende o município em caso de incumprimento. E muito menos consegue justificar a razão de Giacomo Scalisi (com a sua cooperativa) ser a única pessoa (entidade) capaz de programar e gerir as festividades. Além disso, o caderno de encargos tem uma cláusula de confidencialidade e sigilo, o que contaria a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, e o director artístico trabalhou pelo menos dois meses sem qualquer suporte legal.
São apenas catorze as linhas com palavras a sustentar um ajuste directo de 910 mil euros. Ontem, o município de Portimão decidiu colocar no Portal Base o caderno de encargos que acompanha (e integra) o contrato celebrado pela presidente da autarquia, a socialista Isilda Gomes, e o director artístico da cooperativa Lavrar o Mar, o encenador italiano Giacomo Scalisi, para a aquisição de serviços de criação e execução de um denominado “projecto artístico” que consiste na programação e pagamento de eventos comemorativos dos 100 anos daquela cidade algarvia.
Conforme o PÁGINA UM revelou na passada segunda-feira, para programar eventos culturais do primeiro centenário da cidade de Portimão, a autarquia local contratou a cooperativa algarvia Lavrar o Mar, presidida pelo encenador italiano Giacomo Scalisi, por um valor de 740 mil euros, que ascende a 910 mil euros com IVA incluído. O contrato celebrado no final de Fevereiro, e divulgado no início da semana passada, invocava um falso argumento previsto pelo Código dos Contratos Públicos, para um ajuste directo desta natureza, porque equipara a programação e gestão de 38 eventos culturais e festivos – que se iniciaram no passado mês, e se prolongam até ao final do presente ano – à aquisição (compra) de obra de arte, contratação de um artista ou de um espectáculo.
O registo inicialmente inserido no Portal Base (com o número de identificação 10605060) foi integralmente apagado pela autarquia de Portimão – porventura, numa tentativa de negar a veracidade de alguns aspectos da primeira notícia do PÁGINA UM sobre este assunto – e, em sua subsituição, criou ontem um novo registo nesta plataforma oficial dos contratos público (com o número de identificação 10626097) onde acrescentou algumas peças procedimentais antes não divulgadas, designadamente a carta convite e o caderno de encargos.
Este último documento, apesar de possuir 14 páginas, ‘gastas’ com generalidades e cláusulas habituais que acabam repetidas no contrato, somente dedica 14 linhas às especificações técnicas. Por norma, seria de esperar num caderno de encargos para um contrato de programação cultural que nas especificações técnicas estivesse listados e discriminados os eventos ou tipologias de eventos a ser obrigatoriamente executados, até pelo simples facto de assim se justificar o valor do contrato e, em certa medida, poder avaliar-se à posteriori se o adjudicatário cumpriu integral ou apenas parcialmente o contrato.
Porém, as singelas 14 linhas das especificações técnicas, que fazem parte da cláusula 14º do caderno de encargos com 14 páginas, diz apenas que a autarquia pretende a “concepção e operacionalização do projecto artístico de comemorações do centenário da Cidade de Portimão”, acrescentando que “a entidade a contratar [sabendo a autarquia que seria a Lavrar o Mar] deverá, em coerência com o projecto artístico para as Comemorações, a apresentar até Novembro de 2023 e após a aprovação do mesmo pelo Executivo, planear as tarefas necessárias à operacionalização do programa, designadamente coordenando a sua pré-produção e produção, assegurando a contratação dos espectáculos programados e a assistência técnico-artísticas aos mesmos, realizando o acompanhamento das companhias e artistas e promovendo a sua interação com os públicos”.
E terminam, as ditas especificações técnicas, referindo que “as tarefas atrás indicadas serão acompanhadas pelo Município através de reuniões regulares com o Director artístico do Projecto e com outros colaboradores e da elaboração e apresentação de relatórios e memorandos escritos”, assumindo que “todos os encargos inerentes à execução do projecto que venha a ser aprovado serão da responsabilidade da entidade a contratar”.
Além de se assumir, neste aspecto, que o ajuste directo que se pretende sustentar numa criação artística foi, na verdade, a contratação de um programador, sob a denominação de “Director artístico do Projecto”, nada nas curtas e vagas especificações técnicas do caderno de encargos se pode encontrar uma razão para a escolha da autarquia de Portimão, com dinheiros públicos, pelo programador Giacomo Scalisi.
Recorde-se que o município de Portimão defendeu, na passada segunda-feira, que a escolha da Lavrar do Mar teve como pressupostos “o desenho e operacionalização de um programa de comemorações [que] exige que o mesmo seja acompanhado artisticamente por uma entidade de reconhecida competência no domínio da programação artística, visando assegurar a articulação entre os vários setores da produção e o acompanhamento de públicos em coerência com o programa artístico a conceber”, e também a necessidade de que a entidade escolhida possuísse “um conhecimento profundo não só de programação, mas também das companhias e artistas que possam vir a integrar o programa das Comemorações do centenário da Cidade de forma a potenciarem as interações artísticas e formativas entre os artistas e os públicos”.
E a mesma fonte oficial da autarquia liderada por Isilda Gomes salientou então ao PÁGINA UM que Giacomo Scalisi e a Lavrar o Mar seria a única entidade capaz para “colaborar, com valor acrescentado, face a outras eventuais opções [por exemplo, concurso público para se procurar alternativas de programação] , na conceção e operacionalização do projecto artístico de comemorações declinando-o através de um planeamento adequado num conjunto de tarefas de conceção, pré-produção e produção que lhe caberá, depois, coordenar”, será a entidade Lavrar o Mar”. Ou seja, para o município socialista o “serviço pretendido apenas pode ser confiado” à Lavrar o Mar, o que se mostra duvidoso face às especificidades técnicas do caderno de encargos.
De acordo com o programa já disponível pela Câmara Municipal de Portimão, apenas dois dos espectáculos do centenário da cidade serão produzidos pela Lavrar o Mar: o primeiro, em Outubro, é do próprio Scalisi; e o outro será um espectáculo que combina dança e música da autoria da bailarina e coreógrafa Madalena Victorino, co-diectora artística da cooperativa. Dos restantes eventos, que decorrem entre Fevereiro e Dezembro de 2024, encontram-se concertos, espectáculos circenses, exposições e outros eventos com a produção executiva ou organização por outras entidades, que foram programados pela cooperativa a partir do ajuste directo.
Uma outra evidente irregularidade deste contrato por ajuste directo está no facto de Giacomo Scalisi e a sua cooperativa – cujas contas não são públicas, ao contrário do que sucede com empresas – terem começado a trabalhar para a autarquia de Portimão, e a dar a cara publicamente pela programação do centenário da cidade, muito antes da assinatura do contrato de 910 mil euros, algo que o Código dos Contratos Públicos não permite. Com efeito, no passado 12 de Dezembro, dia da Cidade de Portimão, foi já Giacomo Scalisi o cicerone da apresentação do esboço da programação, prometendo então que haveria uma “forte presença de espectáculos de novo circo, de teatro, de música, de dança, das artes plásticas”, cuja intenção seria “construir uma ocupação progressiva da cidade de Portimão”.
Ora, uma das cláusulas do contrato refere que este somente “produz efeito a partir da data de aposição da última assinatura”, terminando no final do presente ano. Tanto Isilda Gomes como Giacomo Scalisi assinaram o contrato na tarde do dia 26 de Fevereiro, ou seja, o director da Lavrar o Mar esteve mais de dois meses a trabalhar para a autarquia sem qualquer suporte legal.
Saliente-se também que o caderno de encargos possui uma cláusula de sigilo e confidencialidade “sobre todos os assuntos previstos no objecto da contratação”. E acrescenta mesmo que as duas partes (autarquia e Lavrar o Mar) devem “tratar, como confidenciais, todos os documentos a que tenham acesso no âmbito do seu desenvolvimento, abrangendo essa obrigação os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que se encontrem envolvidos na prestação de serviços ou no procedimento ao qual o mesmo deu origem”. Essa cláusula contraria, obviamente, a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
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